sexta-feira, outubro 24, 2008

Pela defesa do Poder Judicial

As sondagens do Afrobarómetro de 2008 apontam para uma quebra de 16% na confiança dos caboverdianos nos Tribunais, em relação ao ano 2005. A interpretação primeira é que essa quebra resulta da percepção pública de um nível de funcionamento dos tribunais abaixo do esperado. O relatório sobre a Situação da Justiça do Conselho Superior da Magistratura (CSM), apresentado ao Parlamento para discussão na próxima segunda feira, contradiz frontalmente essa assunção, sem deixar de reconhecer dificuldades e constrangimentos existentes no sistema.

No relatório o CSM chama a atenção para o facto que “qualquer avaliação da situação da Justiça com desconsideração pela autonomia e responsabilidade específica dos diversos subsistemas que integram o sector(…) pode concorrer para a desresponsabilização institucional uma vez que fomenta a expectativa e a ilusão de que a realização da Justiça ou que a Situação da Justiça depende tão somente dos Tribunais”. O Relatório constata ainda que “disfunções do sistema decorrentes de actos ou omissões dos outros Poderes do Estado, das outras instituições ou operadores judiciários, ou são minimizadas, ou são comodamente debitadas aos Tribunais”. E refere-se concretamente a fenómenos - a Função Policial e a sua ligação à percepção da segurança ou da insegurança dos cidadãos, bem como as disfunções do sistema prisional-. que se verificam a montante e a jusante do Sistema de Administração da Justiça e que concorrem para juízos desabonatórios da Justiça.

O CSM afirma peremptoriamente que os Tribunais assumem-se como um Poder, cioso da sua independência. Acrescenta porém que isso não deixa de gerar algum ressentimento, particularmente naqueles que se julgam detentores de um direito especial de impor aos juízes o acatamento das suas pretensões. Direitos especiais supostamente derivados do facto dos tribunais não serem órgãos de soberania de eleição directa.

A corresponder aos factos, as afirmações do CSM retratam uma situação de pressão real e actual sobre a Justiça em Cabo verde. E isso é um caso muito sério.

Um dos pilares fundamentais da democracia liberal e constitucional e do Estado de Direito democrático é a independência do Poder Judicial. A legitimidade do seu Poder, que não deve ser nunca posta em causa, vem da aderência estrita dos juízes à Constituição e às leis nas suas decisões. Para isso a  independência dos juízes é fundamental. Independência que implica irresponsabilidade pelas decisões tomadas e garantia de inamovibilidade.

Para a independência do Poder Judicial concorre ainda a operacionalização do princípio de separação e interdependência dos órgãos de soberania, princípio esse definidor do nosso sistema político. Razão porque, conjuntamente com os direitos fundamentais, constitui um limite material de revisão constitucional, não estando portanto à mercê de maiorias conjunturais.

Ora, nesse particular, de onde, no sistema, pode surgir o maior perigo para a independência dos Tribunais é precisamente do poder executivo, ou seja do Governo e da Administração que dirige e superintende. Daí que se deva tomar com um grano salis, com alguma reserva e cepticismo, as declarações do Sr. Primeiro-Ministro quanto a defesa da independência dos Tribunais pelo seu executivo. Facilmente governos recorrem, por exemplo, a considerações securitárias para impulsionar e justificar a expansão do poder executivo, à custa dos direitos dos cidadãos e da independência dos Tribunais. 

Em Cabo Verde, tentativas de condicionamento dos tribunais vêm-se tornando frequentes, como bem refere o Relatório do CSM. As insuficiências materiais, organizacionais e operacionais de quem tem a responsabilidade primeira de garantir a segurança dos cidadãos e combater o crime são minimizadas ou escondidas em ataques mais ou menos velados à Constituição, ás Leis e aos Tribunais e seus magistrados por, pretensamente, protegerem os criminosos. Certas declarações de entidades oficiais e, mesmo, de membros do Governo não dão combate a  essa interpretação enviesada e perversa. Pelo contrário.

Pode-se, provavelmente, concluir que não foi só a percepção de deficiências no  funcionamento dos Tribunais que levou a perda de confiança, registada pelo Afrobarómentro 2008. Também é sentida a guerrilha que lhes é movida a partir de certos quadrantes.

O Governo não esteve à altura no caso em que o Palácio de Justiça, na Praia, viu-se cercado por elementos da Polícia Nacional, por largas horas, enquanto se verificava a legalização de prisão de um agente. Aparentemente, houve quebra grave na cadeia de comando de uma força de segurança e subsequente ameaça a um órgão de soberania. Não há notícia de medidas tomadas então, nem posteriormente, para responsabilizar e prevenir situações de tamanha gravidade.

Questionado, em sede de audição pública pela Comissão Especializada de Assuntos Jurídicos sobre o papel do Ministério Público enquanto defensor da legalidade democrática e primeira linha de defesa da independência dos juízes, o Procurador Geral só deixou transparecer que há a decorrer um inquérito interno na polícia. Sete meses depois ainda está-se por um inquérito sobre algo, caracterizado pelo CSM como “insólito ajuntamento de polícias em manifesta e notória predisposição para condicionar ou desacatar uma decisão dos Tribunais” e que, para o qual, exigiu, publicamente, responsabilização disciplinar e criminal.

O suporte que o Governo e a Administração, o Poder Executivo, presta ao poder judicial  deve ir além de simples razões de solidariedade e lealdade institucionais. Garantir a independência dos Tribunais é boa governança. Disponibilizar recursos humanos em quantidade e assegurar formação especializada de magistrados judiciais e do ministério público e de funcionários das secretarias judiciais devem ser vistos como investimentos sérios na competitividade do país, particularmente na atracção de capitais. Ter tribunais céleres e magistrados especializados, capazes de responder, com competência, à complexidade crescente dos casos de disputas de propriedade, de cumprimento de contratos, de problemas laborais, de reclamações fiscais e de processos de falência diminui custos e minimiza riscos de investimento no País.

Por isso, espera-se que, com a entrada em vigor do novo regulamento do Cofre de Justiça,  condições estejam criadas para que as suas receitas sejam aplicadas, essencialmente,  no desenvolvimento do sector de Justiça. O Governo deve, com as suas opções orçamentais, assumir os custos de outros subsistemas do Estado, também importantes para a prossecução de Justiça e para garantia da tranquilidade e segurança da população.   

 A preocupação fundamental pela independência do Poder Judicial ganha uma dimensão no mundo actual de ameaças transnacionais, sofisticadas e altamente violentas. Os magistrados não podem recear pela sua integridade física nem pela da suas famílias, sob pena de perderem a sua independência e Justiça não se realizar. O Estado deve garantir a segurança dos magistrados, particularmente os que lidam com narcotráfico e lavagem de capitais. O Governo deve, com firmeza e determinação, mostrar a sua disposição em não permitir que o Poder Judicial seja intimidado. 

A independência dos Tribunais passará para um outro patamar com a plena implementação da Revisão Constitucional de 1999: A instalação do Tribunal Constitucional e a renovação do Supremo Tribunal de Justiça com juízes recrutados com prevalência do critério do mérito e por concurso. Toda a tentação de se ainda manter um Supremo Tribunal judicial híbrido com um juiz nomeado pelo Presidente da República, como está presente na proposta de lei do Governo agendada para a sessão do Assembleia Nacional de Outubro, deve ser descartada. Com o Tribunal Constitucional, o STJ já não terá matérias jurídico-políticas. Não se compreende que ainda vá manter nomeações políticas. É no mínimo incoerente e bole, profundamente, com o modelo adoptado pela Constituição na revisão de 1999.

Bom senso espera-se, para que se avance definitivamente com as reformas da Justiça.   

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