sexta-feira, novembro 14, 2008

Fazer mais

Tempo de crise pode ser o momento de mudar a forma de fazer as coisas. Para Emanuel Rahm, o braço direito de Obama,  a regra número um é: nunca desperdiçar uma crise. É oportunidade para criar vontade e ultrapassar definitivamente inércias, vícios e métodos gastos. Oportunidade para um olhar mais atento sobre a qualidade dos resultados obtidos e para a necessidade de um retorno maior e duradoiro de tudo quanto a sociedade no seu todo investe, particularmente,  através da acção do Estado.

Deixar projectos de desenvolvimento como os de S.Vicente passar por uma verdadeira odisseia é o que não pode acontecer. Nem tão pouco deixar a cúpula do sistema judicial em Cabo Verde chegar à situação anómala em que se encontra actualmente com todos os mandatos dos juízes terminados há mais de seis meses.   

De facto, vistas bem as coisas, o que está descrito nas reportagens do jornal asemana de 17 e de 31 de Outubro sobre os projectos em S.Vicente parece puro surrealismo. Não é compreensível nem aceitável que projectos potenciadores do crescimento e emprego fiquem anos dependentes da guerrilha institucional entre Governo e câmaras municipais. Em vários casos, só se avança com os projectos quando o investidor ou promotor concorda em pagar mais uma quantia ao Estado, a ajuntar-se ao que já tinha pago à Câmara.

Parece que não interessa a perda de um, dois, três ou mais anos nesse braço de ferro. Não interessa se, entretanto, janelas de oportunidades retraem-se e se a bolha na imobiliária, cuja exuberância também fazia-se sentir em Cabo Verde, arrebenta com efeitos globais desastrosos. Nem causa muita preocupação que provavelmente ter-se-à de aguardar, por mais uns anos, o ressurgimento de um forte interesse na imobiliária turística e de segunda residência.

Nas referidas reportagens da jornalista Constança de Pina, fica-se a saber que desde do Verão 2007 o projecto do Viana Club Resort estava bloqueado enquanto decorriam as negociações com o CI. Também o administrador do projecto de Salamansa diz que há o mais de dois anos que estão em diálogo com a CI para tentar desbloquear o processo. O Cesária Resort, segundo a reportagem, em três anos já gastou milhões em consultores e já enfrentou situações complicadas. Não há previsão ainda para o início das obras. Só o projecto do Fortim del Rei já deu o passo de assinar com uma empresa construtora.

A impressão que se fica é que os múltiplos e complexos efeitos da execução desses projectos na economia, na sociedade e nas pessoas são postos em segundo plano. E que a atenção das autoridades é arrebatada pela questão dos terrenos. Razão para isso não é o desejo de transmitir imagem de segurança jurídica na titularidade dos terrenos nem o de evitar especulação no preço dos mesmos. É para se saber quem se impõe e quem retém os proventos da venda de terrenos. Se as receitas ficam para o Estado, para as câmaras ou se vão para os particulares.     

De acordo com o decreto legislativo 3/93 as ZDTIs são essencialmente zonas identificadas pelas suas condições geográficas e pelo valor paisagístico as quais o Estado dota de planos de ordenamento turístico com vista a gestão adequada do uso e ocupação do solo. A lei prevê a possibilidade de expropriação de terrenos nas ZDTIs mediante declaração de utilidade pública, mesmo os pertencentes aos municípios. O que na lei é acessório e instrumental, a titularidade dos terrenos, na prática, passa a ser o essencial, em detrimento do que, em primeiro lugar, obriga o Estado: dotar essas zonas de um Plano de Ordenamento Turístico.

Isso ficou evidente na forma como o Governo em Agosto último procura resolver o problema do projecto da Salamansa Sands, há mais de dois anos em negociações. Segundo o jornal asemana, o Projecto de Salamansa Sands tinha sido aprovado pela CI e pela CMSV e projectava criar 1286 postos de trabalho. Em nota de 30 de Julho de 2008 a CI fazia saber aos Deputados que já tinha acordado com os promotores que eles anulavam a escritura pública que detinham dos mais de 500 hectares em Salamansa e a que a CI afectaria de novo o terreno mediante um novo preço.

Tudo leva a crer que o acordo não foi avante. O BO de 25 de Agosto trouxe a decisão do Governo de criar uma ZDTI de 506 hectares na Salamansa. Com isso ficou evidente a instrumentalização do processo de criação das ZDTIs. Salamansa já tinha plano de ordenamento turístico aprovado pelas autoridades competentes. Dotar a zona de um plano turístico não foi, por conseguinte, a razão de fundo da decisão tomada. Só podia ser a possibilidade de expropriar os terrenos num quadro de conflito com a Câmara Municipal.

Conflitos dessa natureza têm sede própria para serem dirimidos: os tribunais. Mas o Governo opta por resolve-los politicamente. Pela força, sem considerar como, com isso, torna precário o direito de propriedade. E as opções não terminam aí. Há ainda a via legislativa. Novas leis, porém, implicariam avaliação de interesses em causa, negociações, give and take, e respeito pelas regras, processos e procedimentos democráticos. Ou seja, tudo o que é necessário para a prossecução do interesse público na democracia. Mas que é anátema num ambiente político em que se prefere confrontos a compromissos, ao mesmo tempo que se apregoa amor louco pelo consenso. 

Certamente que não se realiza o interesse público quando se deixa estender indefinidamente uma situação que, independentemente da origem, resulta em que particulares, emigrantes, operadores económicos e investidores não conseguem fazer registos de terrenos em vários pontos do território nacional. Se há omissões na lei que sejam preenchidas, se surgem disputas que sejam resolvidas e ultrapassadas, se falta clarificação que decisões sejam tomadas em tempo útil. Evitar a asfixia da construção civil, com o seu potencial de emprego e efeito de arrastamento sobre o resto da economia devia sobrepor-se a outras considerações. Porque sem registo não há hipoteca, sem hipoteca não há credito, sem crédito as obras param ou não arrancam e sem obras o desemprego aumenta.

Não se pode prejudicar empreendimentos, vultuosos e sensíveis quanto ao momento de implantação, porque se falha no essencial que define a governação: a definição de objectivos e metas nacionais, a construção da vontade colectiva para os atingir e a persistência, não obstante os percalços, em os realizar.

E, no excuse, como diria Obama. A responsabilidade da governação pertence ao Governo eleito. Assim como não partilha com a população a responsabilidade primeira do Estado de assegurar a segurança, a tranquilidade e a ordem pública também não compartilha com as Câmaras e nem com a Oposição a responsabilidade central de implementar o programa político que fez sufragar nas urnas. Tem é que saber lidar com o sistema, com todas as suas salvaguardas, seja no domínio dos direitos fundamentais, dos direitos das minorias, dos direitos específicos das populações nos municípios e do que mais a Constituição e as Leis impõem.  

Este é o mar que se navega na democracia. E não é aceitável a desresponsabilização do capitão pelo desvio do rumo do navio porque ondas se fazem sentir com mais força e determinação.

Da mesma forma que não se aceita que o Governo venha desresponsabilizar-se culpando a Câmara pelo não andamento dos projectos em S.Vicente também não é de aceitar desculpas pelo adiamento de pacotes legislativos concernentes à Justiça. As condições para o impasse que se vive hoje foram postas em marcha há mais de cinco anos atrás.

A revisão constitucional de 1999 criou o Tribunal Constitucional (TC). Nos anos seguintes, uma lei orgânica desse tribunal e outra lei definindo o molde de acesso e a constituição do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deviam ser produzidas. O MpD apresentou projectos de lei nesse sentido e o PAICV recusou-se a viabilizá-las. No vazio legal que ficou, em 2003, o Conselho Superior de Magistratura nomeou três juízes  o Presidente da República um juiz, em moldes já ultrapassados pela revisão de 1999 e, por isso, constantes de disposições transitórias. A Assembleia Nacional recusou-se a eleger um juiz nesses moldes. O MpD argumentou que interesses partidários do PAICV impediam a criação do TC.

Em 2005, finalmente o PAICV e o MpD aprovaram por unanimidade a lei de instalação do TC, mas não se pode ir adiante porque o Governo recusou-se a prever verbas para esse Tribunal nos Orçamentos de 2006 e 2007. Provavelmente queria, por razões que nunca explicitou, que o mandato do actual STJ enquanto Tribunal Constitucional completasse cinco anos. Só que tardiamente apresentou a proposta de lei que define a nova forma de acesso ao STJ. Um mês depois do fim do mandato dos juízes. E é essa proposta que foi retirada porque simplesmente o partido no governo não aceita que deve negociar para chegar à maioria de dois terços dos deputados, imposta pela constituição para a aprovação de actos estruturantes da República.

A realização de políticas públicas falha quando se tem em sempre em mira ganhos políticos partidários instantâneos. Não é possível construir a vontade colectiva para a realização de políticas públicas pela via de encurralar o adversário, atirar sectores de interesses contra ele e desrespeitar o papel que o sistema lhe confere como garantia de equilíbrio e de co-participante, sob pena de bloqueio, em decisões chaves e estruturantes.

Em tempo de crise, tudo se acelera porque intervêm processos de criação do novo. Pode ser a oportunidade para se rever os métodos de acção e compreender, definitivamente, que na democracia a escolha de meios justos, legais e constitucionais é essencial para a consecução dos fins.

     Publicado no Jornal ASemana de 14 de Novembro de 2008

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