Na sexta feira passada o Banco Central de Cabo Verde actuou face à crise que avassala o mundo. Alterou em 50 pontos a taxa directora lançando a taxa de redesconto para 7.5% e a taxa de facilidade de cedência para 8.25%. O objectivo é controlar os fluxos da balança de pagamentos e a inflação. Os aumentos das taxas praticadas pelo BCV têm o condão de, pela via do encarecimento do crédito, travar o consumo e, por aí, conter importações dissipadoras das reservas externas. Também no sentido inverso, taxas mais favoráveis incentivam emigrantes a fazer depósitos em Cabo Verde. Com isso pretende-se conservar algum conforto ao nível de reservas e garantir estabilidade do peg da moeda caboverdiana ao euro.
A actuação do BCV verifica-se num momento em que bancos centrais em todos os continentes movem-se para assegurar liquidez ao sistema financeiro internacional e restaurar confiança entre os seus operadores. Procura-se evitar que o aperto ao crédito lance a economia real na maior das crises desde da Grande Depressão de 1929. Até agora tem sido bastante limitado o sucesso conseguido pela operação conjunta de bancos centrais e governos. Medidas como seguro dos depósitos, injecção directa de capitais via compra de acções nos grandes bancos e garantia do Estado a novos empréstimos não conseguiram evitar que o espectro de recessão económica paire e já assombre o mundo inteiro.
Países que dias, semanas atrás achavam-se a salvo da crise por não se terem envolvidos com os chamados produtos financeiros tóxicos, subprime e outros derivativos, vêem-se agora no olho do furacão. De facto já não é só a Islândia, mas também outros países como a Ukrânia e a Hungria, a solicitar pacotes salvadores do FMI. Amanhã poderá ser a Rússia, a Africa do Sul ou o Brasil, países que pensaram estar protegidos atrás das enormes reservas externas acumuladas na base de vendas em alta de matérias-primas, produtos agro-pecuários, petróleo e metais preciosos.
Ninguém consegue prever a dimensão da recessão global que se aproxima. Nem como afectará a economia de países e regiões. Tudo leva a crer, porém, que o mundo saído da crise não será o mesmo. O que permitiu o crescimento de um sector financeiro de bancos de investimento, fundos de risco (hedge funds), e fundos privados de investimento (private equity), armado de produtos, cada um mais esotérico do que o outro, paralelo ao sector bancário e com um mínimo de regulação.
Poderá vir a ser um mundo em que a actual distribuição do poder económico terá representação adequada nos centros de decisões das organizações internacionais de supervisão da economia mundial. Particularmente as de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, criados em 1946, que ainda espelham a relação de forças saída da II Guerra Mundial.
Países como a China, o Brasil e a India não podem ficar de fora. Devem assumir responsabilidade comensurada com o seu peso nos fluxos globais. De facto, na origem dos problemas financeiros de hoje também se encontra o ambiente de crédito barato nos países desenvolvidos. Países com largas reservas externas como a China, para evitar a valorização da sua moeda, reinvestiram muito das suas reservas na América, fazendo baixar as taxas de juro e contribuindo para o endividamento das famílias. No processo geravam forte procura para os seus produtos e garantiam crescimento das exportações, o sector motor da economia.
A crise veio, porém, demonstrar que não é possível manter por muito tempo o mundo dividido em países com grandes excedentes e países com enormes défices na balança comercial, sem que algo acabe por ceder. A extrema interligação de todas as economias na fase actual da globalização não permite que ninguém fique incólume quando isso acontece. É o que se vê hoje.
Economias pequenas como a caboverdiana são as mais vulneráveis. Não têm dimensão para condicionar em favor próprio as relações económicas internacionais. O mercado interno é exíguo e não pode compensar, em tempos de recessão global, pela queda na procura de bens e serviços nos mercados externos. Em existindo recursos naturais, a recessão também faz cair os preços das matérias-primas, contribuindo para perda de receitas externas.
No caso concreto de Cabo Verde, a situação é ainda mais grave. Não tem recursos naturais e tem uma base exportadora exígua que, segundo o relatório de Julho do FMI, restringe-se cada vez mais ao turismo. Quer dizer que a sua sustentabilidade económica e financeira actual depende dos fluxos financeiros que poderá mobilizar. No ambiente de crise essa dependência excessiva do exterior e de factores que não tem controle directo, pode tornar-se crítica.
Porque as remessas de emigrantes são afectadas pelo nível de emprego e pelas expectativas de crescimento nos países de acolhimento. A diminuição do investimento directo estrangeiro, em consequência de fortes constrangimentos ao crédito ao nível internacional, já é sentida na quase paralisia do sector imobiliário e turístico, em várias ilhas. A ajuda externa não deixará de se ressentir, no futuro próximo, com as dificuldades orçamentais dos países doadores, derivadas das acções de restauro de confiança no sistema financeiro. E a capacidade do Estado em contrair empréstimos para investir em infraestruturas e no sector energético sofrerá certamente com o encarecimento inevitável do crédito nos mercados de capitais.
No mundo inteiro todos estão a preparar-se para maus momentos a curto e a médio prazo. A preocupação em muitas paragens é de aproveitar a crise para um renovado olhar sobre o país, a sua sociedade e a sua economia. Procura-se vislumbrar o que de essencial se precisa fazer para elevar a produtividade nacional, tornar as empresas nacionais competitivas e o país atractivo para capitais estrangeiros, visitantes e turistas.
Cabo Verde não é excepção. Não pode ver-se como imune ao que se passa lá fora. A fotografia macroeconómica actual até pode mostrar-se tranquilizadora para alguns. Mas, em ambiente de crise, fragilidades não aparentes podem emergir e mudar tudo. É o que aconteceu na Islândia e noutros países. Na Hungria, no Brazil e na Austrália, por exemplo, empréstimos individuais e empresariais, feitos em moeda estrangeira e a taxas mais baixas do que as praticadas ao nível nacional, que até recentemente sustentaram investimentos diversos e expansões rápidas na imobiliária, agora, com a valorização do dólar e do yen japonês, contribuem para a queda do valor das moedas desses países e a fuga de capitais.
Recentemente, de diferentes quadrantes políticos, institucionais e empresariais vieram sugestões no sentido de total liberalização de capitais em Cabo Verde. Isso não obstante a experiência negativa da crise financeira de 1997 que da Tailândia, Indonésia e Coreia do Sul passou para o Brazil, a Rússia e a Argentina. Esses países, muitos deles com peg fixo no dólar, sofreram os efeitos do chamado hot money, os capitais de curto prazo que podem entrar e sair rapidamente e que, em certas circunstâncias, podem ser altamente destabilizadores, mesmo quando, aparentemente o quadro macroeconómico não prenuncie problema nos os fundamentals da economia. Espera-se que a falada facilitação de acesso a crédito exterior directamente por privados nacionais à cata de taxas de juro mais baixas, a ter-se concretizada, não se revele, hoje, como mais um ingrediente na fragilização da balança de pagamentos do País.
A pequenez da economia nacional e a fraca densidade empresarial limitam, por outro lado, os instrumentos que o Estado poderá socorrer-se para estimular a economia e fazer face à crise. Isso porque qualquer aumento da procura tem efeito directo nas importações, com as consequentes tensões nas reservas externas. Diferentemente do que se passa noutros países, onde estímulos fiscais têm o efeito de arrastamento na economia nacional porque uma parte considerável de bens e serviços são produzidos localmente. Isso não significa naturalmente que o Estado não deva procurar responder às dificuldades das populações, particularmente das mais vulneráveis e que mais sofrem com os efeitos da crise, designadamente com os efeitos de diminuição de remessas de familiares e da alta de preços devido à inflação.
Todos os países procuram responder à crise reajustando as prioridades nacionais e mobilizando a vontade nacional. Baixa-se mesmo a tensão política. Dada a especial vulnerabilidade de Cabo Verde esse exercício é urgente.
À partida, porém, parece evidente que o Estado deverá orientar-se resolutamente para estimular actividades económicas em áreas de serviços particularmente de exportação que criam emprego e potenciam o fluxo turístico para Cabo Verde. No sector da educação a atenção nacional deverá focalizar-se intensamente na qualidade. A estruturação do mercado de trabalho poderá potenciar o esforço nacional na formação profissional, na criação do emprego e no aumento da produtividade. A eliminação dos múltiplos entraves à unificação do mercado nacional certamente introduziria uma nova dinâmica na economia nacional. A organização de uma oferta de serviços com base na cultura caboverdiana claramente é uma opção a fazer.
Tempo de crise. Oportunidade para deixar para trás ilusões de dependência e fazer o que dignifica os indivíduos e engrandece a Nação.
Publicado no Jornal ASemana de Novembro de 2008
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