sábado, janeiro 24, 2009

Tempo das vacas magras

No dia 22 de Janeiro, nas festividades do Dia do Município em S. Vicente,  o Sr. Primeiro Ministro proclamou, que “todos os investidores terão o título de propriedade necessário para a realização dos investimentos, independentemente da forma em que foi feito o negócio”. E que, relativamente à questão da legalidade ou não das vendas efectuadas, [isso] este será tema de discussão entre a Câmara Municipal e o Governo, entidades que farão directamente o “ajuste das contas” e resolverão os problemas em “diálogo, concertação e negociação”.
Tudo indica que o Governo, finalmente, resolveu mostrar bom senso. Mas, para S.Vicente, foi tarde de mais. A crise já está cá, o imobiliário turístico residencial está paralisado pelo congelamento internacional do crédito, os emigrantes retraem-se nas remessas e no investimento e a construção civil sofre com o impasse no registo dos terrenos. 
E a recuperação não está à vista. A recessão nas economias europeia, americana e japonesa ameaça precipitar a economia global numa depressão, com consequências devastadoras para todos. Na saída da crise, quando acontecer, já é claro que o mundo não será o mesmo. As oportunidades de ontem não se repetirão. 
S Vicente vive hoje mais uma frustração. Vê recuar para mais longe as suas legítimas expectativas de adquirir a base económica sólida necessária para resolver o grave problema de desemprego, combater a pobreza, reencontrar a sua voz e contribuir decididamente para o desenvolvimento de Cabo Verde. 
Aparentemente, oportunidades para ultrapassar a letargia sócio-económica da ilha não faltaram. Que o diga o Governo com os seus múltiplos anúncios de milhões e mesmo biliões de euros que iriam ser investidos na ilha. Todos se lembram dos masterplans, apresentados com pompa e circunstância, mostrando grandes resorts, campos de golfo e hotéis de cinco estrelas. Tudo isso ficou para trás a meio de intransigências institucionais, sobranceria política e ganância pelos dinheiros de terrenos. 
E não por falta de aviso. Ao longo dos anos vem-se chamando a atenção do governo para a sua responsabilidade principal em pôr fim aos conflitos entre o Estado e a Câmara Municipal e em acabar com as incertezas dos investidores e a insegurança jurídica geral, que já tantos prejuízos fez na imagem de Cabo Verde. 
Finalmente o Governo ouviu. Ouviu mas não assumiu. Agora culpa a crise pelo não arranque dos projectos. Crise que há bem pouco tempo nem reconhecia. Envolto na sua própria propaganda, vinha-se iludindo e iludindo a todos que o país não seria grandemente afectado pelo que se passava lá fora. Depois da fase de pavonear-se com a gestão macroeconómica, que supostamente punha o País a salvo da crise, passou agora à fase de atirar as culpas para a crise pelos objectivos não atingidos e promessas não cumpridas. 
Joga para ganhar sempre. Por isso envolve o País numa névoa de meias verdades, desinformação e propaganda, que não deixa ver os magros resultados realmente alcançados no combate aos males do presente - desemprego à cabeça – nem prepara o futuro, criando as condições certas para ganhos reais de competitividade e de produtividade. 
Não é a primeira vez que S.Vicente sofre na pele as consequências das políticas desastrosas do Governo do PAICV. Nos primeiros anos desta década as oportunidades na indústria esfumaram-se. Desapareceram a meio de omissões, posturas dúbias e alguma incapacidade em reconhecer e aproveitar oportunidades, designadamente, a de acesso ao mercado americano no quadro do AGOA, do African Growth and Opportunity Act. Milhares de postos de trabalho foram perdidos em S.Vicente. Empregos directos e indirectos. Principalmente de jovens mulheres, muitas delas mãe solteira.      
Oportunidades para S.Vicente quando são reais, perdem-se. Promessas, essas são repetidas até à exaustão. 
Prometeu-se porto de águas profundas. Porto com 15 metros de profundidade capaz de receber os maiores porta-contentores, os de terceira e quarta geração. A exemplo do porto de Shanghai que optou por fazer tais obras para passar a sua capacidade de escoamento de 3 milhões para 9 milhões de contentores/ano. Não é esse, propriamente, o nível de tráfico nesta sub-região que, de acordo com certos relatos, não chega a um milhão de contentores/ano. Repete-se incessantemente a promessa mas depois acrescenta-se que se está à espera de manifestação de interesses de operadores privados e correspondentes investimentos. 
Desde de há algum tempo atrás, acena-se insistentemente com a possibilidade de S.Vicente ser uma zona especial da China, quando já se sabe que as ilhas Maurícias foram as únicas ilhas escolhidas para albergar uma das cinco zonas especiais em Africa. Segundo o Financial Times, as Maurícias vão beneficiar de 700 milhões de dólares  de financiamento inicial da China. 
S.Vicente precisa de acção consequente. E de uma visão integradora capaz de potenciar as suas múltiplas valências, designadamente como cidade de eventos, conferências, e centro universitário, para além de prestação de serviços internacionais na área portuária e de pescas. Uma futura MICE city. Há que cortar com o círculo vicioso de optimismo excessivo seguido de grandes frustrações ou mesmo desânimo, que corrói a alma. 
Um exemplo, do que pode acontecer por falta de sistemática na implementação estratégica de opções feitas, é o aeroporto de S. Pedro. O aeroporto está construído mas, para receber voos internacionais regulares, a ilha precisa de quartos suficientes. E ainda não os tem. O atraso na implementação dos projectos ameaça encalacrar tudo. 
Nos tempos de crise, que se vive, de oportunidades perdidas e do consequente falhanço no arranque da dinâmica económica de algumas ilhas, é fundamental que se avalie as razões porque se ficou tanto aquém dos objectivos pretendidos. E com essa avaliação se tome uma outra atitude na procura do desenvolvimento do país e de todas as suas ilhas e deixe-se desse comportamento quase bipolar que oscila entre a euforia com que se recebe projectos ou ideias de projectos e a fase depressiva em que se dificulta tudo
Urge agora ajudar o País a enfrentar o mau tempo que vem aí, o tempo das vacas magras. O Governo já agiu rapidamente para segurar a administração pública, no quadro da sua estratégia politico-partidária de posicionar o PAICV como partido dos funcionários. Aumentou os vencimentos, diminuiu os impostos e abriu a possibilidade de novas admissões. 
Ainda não se sabe é o que vai fazer com as ilhas mais expostas à economia mundial, como são as ilhas do Sal, Boavista e S.Vicente, para evitar o aumento do desemprego e consequentes males sociais, que daí virão. Nem que acções tem em mente para as outras ilhas e para o interior da ilha de Santiago, que não deixarão de ser afectadas pela diminuição das remessas dos emigrantes e pela contracção da procura dos seus produtos agro-pecuários. Pode-se já contar com o recrudescer de migrações para as cidades, mas particularmente para a cidade da Praia, onde o peso das despesas correntes do Estado (salários e compra de bens e serviços) se fazem mais sentir e maiores são os efeitos de arrastamento na economia local. 
Os investimentos públicos previstos incidem sobre grandes projectos cujo impacto imediato é limitado. Isso por duas razões: Uma porque não empregam muita gente e outra por estarem nas mãos de empresas estrangeiras. O Governo tem que suprir essas deficiências e investir fortemente em obras, em todos os municípios do País, para fazer face ao desemprego e à perda de rendimento das populações. O melhor investimento será aquele que procurará empregar o maior número de pessoas, mas também constituíra um ganho para o futuro, em termos de criação de condições para ganhos de qualidade e produtividade. 
Para isso é fundamental a colaboração do governo com as câmaras municipais. O Governo, certamente, já se apercebeu dos enormes prejuízos que advêm da persistência de conflitos com as autarquias. É de evitar que o que se passou em S.Vicente volte a acontecer noutros pontos do território nacional. 
Os órgãos municipais foram eleitos e prestam contas às suas respectivas populações. O Governo tem o dever de respeitar isso e mostrar-se leal na relação institucional com órgãos democraticamente eleitos e proceder à repartição justa de recursos públicos entre o Estado e as autarquias, que a Constituição estabelece.   

      Publicado pelo Jornal Asemana de 24 de Janeiro de 2009

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Votos no dia 13 de Janeiro

A 20 de Janeiro Barack Obama torna-se no 44º Presidente dos Estados Unidos da América.

Há um ano atrás poucos acreditavam que isso seria possível. Depois da vitória nas primárias de Iowa, os americanos e o mundo começaram a prestar atenção. Após duas dezenas de debates com Hillary Clinton, audiências em todo o planeta estavam fascinadas. Depois vieram as convenções dos partidos democrático e republicano, o fenómeno Sarah Palin e finalmente a crise financeira com a falência dos Lehman Brothers. Obama, o mais cool de entre os políticos, manteve-se sempre à altura dos desafios da campanha e atento e sintonizado com a conjuntura económica emergente a partir da segunda quinzena de Setembro.

A revista Economist, em editorial, manifestou o seu apoio à eleição de Obama. Reconhecia nele qualidades para ser o próximo presidente da América, não obstante o currículo político limitado. Qualidades reveladas no estrondoso sucesso obtido, em termos de pensamento estratégico, de capacidade organizativa e de energia combativa, sobre as duas maiores máquinas político-partidárias da América: a máquina dos Clinton e  máquina da direita conservadora.

O triunfo de Obama tem vários componentes. É primeiro de tudo o triunfo de uma ideia da América. A América é um país originariamente de imigrantes que se construiu como nação à volta da ideia da Igualdade, da Liberdade, da Democracia, do império da Lei (rule of law), do poder judicial independente e da Constituição. Como tal é uma fonte inspiradora da Humanidade, não obstante as profundas contradições ainda existentes. A escravatura e o racismo institucionalizado de séculos deixaram marcas profundas.

Sempre que América fica aquém dos seus ideais é fortemente fustigado por todos. Guantanamo é um caso gritante. Mas, quando se confirmam as oportunidades de afirmação e de realização individual, que a Liberdade e o primado da Lei propiciam, o seu simbolismo é reforçado e uma onda de esperança varre o mundo. È o que está a passar com o Obama.

Todos esperam a liderança americana para evitar que crise financeira desemboque numa recessão global, ou mesmo depressão. E também para encontrar soluções energéticas, para além do petróleo, e coordenar a acção planetária de contenção de mudanças climáticas, potencialmente catastróficas.

Diz-se que Obama é pós racial. A realidade é que pôde vencer porque nunca se deixou apanhar nas redes de vitimação pessoal, racial, étnica ou religiosa. Vitimação cria paixões, polariza a sociedade e bloqueia o debate social e político. É uma óptima via para se perpetuar a dependência do opressor de ontem e erigir a desresponsabilização como modo de vida. Obama caminhou sobre o campo minado de política identitária hasteando sempre a bandeira da responsabilidade: responsabilidade pessoal, familiar, social, cívica e patriótica.

Diz-se ainda que Obama é um político pós partidário. Não se deixa apanhar por interesses fechados sobre si próprios no interior do partido, nem se resume ao uso de tácticas de conquista ou de manutenção de poder, a todo o custo. Obama provou que é possível fazer política sem que o stock nacional de cinismo cresça e sem inibir os que se aproximam da política por idealismo, por vontade de participação cívica ou por sentido de urgência que é preciso algo, já e agora, para mudar as coisas. Por isso, pôde atrair jovens e fazer muitos acreditar na política, suportada por princípios e guiada por uma visão compartilhada.    

A eleição de Barack Obama emocionou o mundo. Cabo Verde não foi excepção. Impõe-se porém que se vá para além do entusiasmo inicial e se retire ilações desse feito realmente extraordinário. Uma dessas ilações é que política não tem que ser sinónimo de cinismo e de hipocrisia.

De facto, Obama vem demonstrar que se pode vencer com verdade, assumindo a responsabilidade de apresentar à sociedade factos fidedignos e propostas de políticas e rejeitando demagogia e populismo. Que se pode vencer sem ir pela via da mobilização de paixões primárias, geradas pela vitimação pessoal ou do grupo, a diabolização do outro e a exploração de temas fracturantes, que mais se aproximam da esfera moral e pessoal de indivíduos do que do espaço da lei e de políticas públicas.

Muita política feita em Cabo Verde explora e potencia resquícios de culturas políticas,  salazarista e de partido único, do passado recente que, em comum, têm o escarnecer do pluralismo e o fascínio pelo consenso. O exercício do contraditório é visto como perda de tempo e não servindo o interesse público. Em consequência, o interesse público não deve ser matéria de discussão. Alguém, Salazar ou o PARTIDO, superiormente já o incarna

O resultado é que muitos movimentos tácticos de sujeitos políticos concentram-se no furtar ao debate, em nome de consensos, e na fuga a negociações, para forçar os outros á capitulação. Para isso recorre-se à mobilização de apoios em grupos de interesses específicos. Se se trata de políticas públicas, são muitas vezes grupos profissionais que são chamados à liça. Se são disputas municipais, opõe-se naturais contra residentes ou o município é apresentado como vítima. Se é disputa entre partidos, alguém reivindica estar a defender o interesse público, enquanto o outro é denunciado como antipatriótico. Se é matéria intra-partidária apela-se á unidade para calar vozes discordantes ou lança-se a disputa por lugares, actuais e futuros, para manter complacentes os mais ambiciosos e conter ou isolar os inovadores. Chega-se mesmo a reivindicar, à socapa, ou às vezes nem tanto, o direito de uns vetar outros para cargos centrais da república, com base na demografia das ilhas.
Paradigmático de uma certa forma de fazer política foram as últimas reacções do Governo e partidos à situação da Justiça em Cabo Verde.
As notícias da soltura de arguidos, condenados em primeira instância, mas à espera de recursos interposto junto ao Supremo Tribunal de Justiça, por excesso de prisão preventiva, foram muito mal recebidas pelo público. As pessoas pensaram que os assassinos das italianas no Sal tinham ido em liberdade, ou seja tinham ficado ilibados da condenação e da pena. O sentimento público de choque, em grande medida resultante dessa má percepção dos acontecimentos, foi prontamente explorado por interesses políticos.
Em vez de contribuir para desvanecer o engano do público, a preocupação do Governo foi aproveitar-se dos equívocos criados e retomar o discurso de que a reforma de Justiça falhou por culpa da oposição. Deixa passar a ideia que a falha do STJ seria por falta de juízes, ou dito de outra forma, por excesso de trabalho dos actuais juízes. Não é o que diz o Conselho Superior de Magistratura, em comunicado de 6 de Janeiro. Na origem dos “habeas corpus” estão duas correntes ou sensibilidades jurisprudenciais, que se formaram no interior do Supremo Tribunal Justiça, com interpretações diferentes quanto a questão dos prazos da prisão preventiva
O Governo insiste e diz que é preciso alargar o STJ. Mas alargar já, ou seja no modelo que já só existe nas disposições transitórias da Constituição, no modelo de nomeação política dos juízes. À revelia de todos, designadamente do comunicado referido do CSM que explicitamente se refere a necessidade de reestruturação do STJ num novo figurino, com um número de juízes suficiente.

Para conseguir os intentos do Governo de retirar dividendos políticos da situação, o Primeiro Ministro lança-se numa operação “duvidosa” de audição de ex-presidentes da república, ex-primeiro ministro, e outros antigos governantes. Procura projectar imagem de procura de consensos nacionais, onde não devia, para não ter que trabalhar entendimentos necessários com a oposição. Votos do MpD e do PAICV somam os dois terços necessários à revisão da Constituição, revisão hoje por todos reconhecida, como essencial à reforma de Justiça, e também à eleição dos juízes do Tribunal Constitucional e do Provedor de Justiça.

Prefere fazer capitular o MpD na onda de indignação, artificialmente sustentada com meias verdades e desinformação, encontrando-se com o presidente desse partido a meio da leva de personalidades que escolheu receber. Em Outubro último, tinha recusado terminantemente ao encontro de líderes partidários. Encontro que a outra parte via como essencial à criação da vontade política parlamentar indispensável à reforma da justiça.

A celebração de 13 de Janeiro deve lembrar a Opção feita pela Liberdade e o pluripartidarismo, pela instituição de uma democracia liberal e constitucional. Deve reforçar em todos os caboverdianos a determinação de pôr fim a resquícios de culturas políticas, que ainda assombram o presente.

Hoje a América tem a sorte de enfrentar a maior crise desde da Grande Depressão dos anos trinta com uma nova liderança. A liderança de um presidente que soube trazer de volta para a participação na esfera pública muitos que a ausência de ideias dos partidos e a degradação dos mesmos num cinismo e partidarismo asfixiantes tinham afastado.

Vamos fazer votos para que Cabo Verde também realize esse feito de ganhar uma liderança à altura dos seus desafios. Vamos fazer votos no dia da Coragem e da Dignidade. No dia 13 de Janeiro.

       Publicado no jornal Asemana de 9 de Janeiro de 2009