O
debate nacional dos três projectos de revisão constitucional parece já
estar comprometido. E nem se iniciaram os trabalhos preparatórios da
comissão eventual.
O
risco de constrangimento do debate emerge, particularmente, da tendência
em se encaminhar para a polarização de posições com base partidária. E
sabe-se que esta é a fórmula certa para inibir consideravelmente a
participação de muitos.
Extradição,
por exemplo, tem sido matéria para os partidos se degladiarem em
sucessivos encontros na comunicação social e para pronunciamentos
calorosos de líderes partidários. Curiosamente nem é tema central do
projecto de revisão de deputados do PAICV, nem consta do projecto dos 18
deputados do MpD. Mas tem como subtexto, ou narrativas associadas,
matéria que no passado recente serviu para suportar acusações
irresponsáveis de relacionamento da classe política com o mundo do
tráfico de drogas e do branqueamento de capitais. O que desvirtua o
debate e dá à participação do MpD um carácter quase masoquista.
Particularmente, quando o que, de facto, se trata é de ganhar
flexibilidade constitucional para que Cabo Verde seja parte da
cooperação jurídica internacional de luta contra o terrorismo e o crime
organizado transnacional. A exemplo do que muitos estados democráticos
como Portugal, Alemanha e França fizeram, ao alterar normas
constitucionais sem pôr em causa os direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos.
O
escopo do debate também diminuiu quando a reforma da Justiça deixou de
ser prioritária. A reforma foi a razão principal para se despoletar o
processo de revisão da Constituição. Mas a designação política dos
juízes do Supremo Tribunal de Justiça, com base no artigo 290º das
disposições transitórias da Constituição, alterou tudo. O mandato de
cinco anos, estabelecido pelo n.1 desse artigo, retirou urgência à
reforma da Justiça nos moldes preconizados.
O
novo modelo de Justiça devia iniciar-se com o fim da interferência
política no Poder Judicial, o que não aconteceu. Pelo contrário, a
interferência renovou-se.
A
agravar a situação está-se a prever, ainda, uma outra interferência: a
possibilidade de interromper o mandato dos actuais juízes, em sede de
revisão constitucional. Entre as várias consequências de se tornar
transitório o mandato, é de perguntar se, não cumprindo os cinco anos
estabelecidos, os juízes do STJ poderão vir a beneficiar do n.6 do
artigo 8º dos Estatutos dos Magistrados que os coloca no topo da
carreira da respectiva magistratura, findo o mandato.
Nada
ficou firmado no sentido da transitoriedade do mandato. Vai depender de
entendimentos que eventualmente os partidos poderão chegar, tendo
sempre presente a oposição de círculos próximos do Presidente da
República.
Entretanto, a contestação do juiz conselheiro Raul Varela, vinda dos mesmos quadrantes de sempre, persiste.
A iniciativa do Procurador Geral da República, que seguramente nada tem
a ver com isso, introduziu um quê de controverso ao novo STJ, ao qual importa
ao órgão superar rapidamente com uma decisão tempestiva quanto à
constitucionalidade ou legalidade da nomeação do juiz Varela. De
qualquer forma, prevê-se que os sobressaltos no STJ vão continuar. Se a
contestação, nas suas diferentes formas, levar ao fim prematuro do
mandato do Juiz abrir-se-á uma nova frente de disputa entre os partidos
para se saber quem deve propor o novo juiz e como garantir a maioria de
dois terços dos deputados para a sua eleição.
Com
os novos desenvolvimentos há quem diga que a revisão constitucional não
irá à frente. Nota-se, entretanto, que, no ambiente distorcido criado,
outras matérias constantes dos projectos de revisão constitucional e de
importância para o funcionamento do sistema político já se vêem
secundarizadas. Nomeadamente, as que resultam de convivência prática e
diária entre órgãos de soberania e que dão soluções para se ultrapassar
tensões derivadas dessa interacção.
Tensões
na relação entre orgãos de soberania existem e manifestam-se
particularmente na operacionalização do princípio fundamental de
separação e interdependência dos poderes. Algumas competências
sobrepõem-se ou são concorrentes A tendência natural, especialmente do
governo, é subtrair-se à fiscalização do parlamento.
Um caso actual revelador dessa tendência e das tensões, que gera, é a taxa rodoviária.
O
caboverdiano tem hoje alguns dos seus custos agravados devido à criação
dessa taxa, por decreto do Governo. É uma taxa controversa porque, entre
outras razões, é tida como um verdadeiro imposto e, portanto, fora da
alçada do governo. Mas não pode ser suspensa. A única saída deixada à
oposição foi pedir a fiscalização abstracta e sucessiva do decreto-lei
ao Tribunal Constitucional. O que aconteceu há mais de dois meses. E o
que já tinha acontecido anteriormente em relação a outros decretos do
governo, designadamente o decreto-lei que alterava a base de incidência
do IVA. Esse decreto-lei só foi revogado pelo Tribunal Constitucional
mais de dois anos depois do requerimento feito. Entretanto, todos
suportaram os prejuízos e nunca foram realmente compensados pelo que
pagaram a mais.
A
Constituição caboverdiana, diferentemente da constituição de vários
países com sistemas políticos parlamentares, não permite que o
Parlamento chama a si o decreto do Governo para ratificação, com a
consequente suspensão temporária dos seus efeitos. O resultado é que, se
o Presidente da República não formular um pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade do decreto-lei, para que o Tribunal
Constitucional reaja em vinte dias, os indivíduos as famílias e
as empresas poderão ficar sujeitas a custos acrescidos, com
consequências gravosas para toda a economia.
Recentemente, no âmbito de um pedido de fiscalização preventiva, a taxa de iluminação
foi considerada um imposto e dada como inconstitucional a forma como
criada. O mesmo devia acontecer com a taxa rodoviária, visto que,
aparentemente, padecem dos mesmos males. Mas como se trata de
fiscalização abstracta e sucessiva, sem prazos estabelecidos, leva-se
tempo a decidir, talvez sem a devida conta pelas consequências disso nas
instituições, na economia e na sociedade.
Propostas
contidas nos dois projectos de revisão de deputados do MpD vêm, em
diferentes graus, restaurar a primazia da Assembleia Nacional enquanto
órgão legislativo, ao alargar o poder de ratificação (artigo 182º da
CRCV) de decretos legislativos para os decreto-leis, no 1º projecto, e
para decretos de desenvolvimento no outro projecto de revisão. Em
conformidade, aliás, com o carácter parlamentar do regime político
caboverdiano e em coerência com posições assumidas politicamente e
levadas à apreciação do Tribunal Constitucional, em várias ocasiões.
O
projecto de revisão de deputados do PAICV tem uma outra abordagem em
relação a essa matéria. Propõe alteração da maioria de votos necessária
para a aprovação de leis sobre impostos e o sistema fiscal (artigos
159º, 160º e 175º). Quer passar dos dois terços de deputados,
actualmente exigidos, para a maioria absoluta dos deputados. Nesse caso,
a responsabilidade completa para o lançamento de impostos ficaria
essencialmente com o Governo e a sua maioria parlamentar.
Há
quem dispute da bondade da solução, introduzida na revisão de 1999, que
obrigou a maioria a conseguir o apoio da oposição para criar impostos e
alterar taxas e bases de incidência dos impostos. Hoje sabe-se que a
alteração constitucional serviu bem para conter a tentação de aumentar
impostos. Mas tinha um outro lado. Obrigava a oposição, em certas
situações, a ser co-responsável por medidas do governo, medidas intrinsecamente controversas porque derivadas de opções de governação.
Um
aspecto globalmente positivo do regime apertado, criado com a revisão de
99, foi de instilar na sociedade caboverdiana a importância de se
baixar a carga fiscal. Tanto na perspectiva de forçar uma maior
racionalidade e eficácia nas despesas como de contribuir para a
competitividade das empresas caboverdianas. Hoje, esse sentimento é
generalizado e é reforçado pelo acordo cambial. O acordo limita o
governo em matéria de política monetária e exige, para a manutenção da
paridade da moeda caboverdiana ao euro, uma política fiscal que favoreça
a competitividade geral do País.
Relaxar
ou manter rígido o sistema é tema para discussão profunda. De ambos
lados há argumentos fortes. O tempo de crise que se vive actualmente irá
necessariamente condimentar o debate, alterando alguns dos seus
pressupostos. Muitos que já vinham cedendo à possibilidade de
flexibilização das exigências constitucionais na aprovação de matéria
fiscal já podem estar a rever as suas posições.
De
facto, está-se a passar de um período conservador em matéria de política
fiscal para um período em que défices orçamentais são aceitáveis para
financiar a economia, evitar a recessão e criar emprego urgente. Porém,
nestas mudanças de ideias todo o cuidado é pouco para não se passar de
um extremo ao outro. E com isso levar o Estado a incorrer em custos que
poderão vir a constituir sobrecargas para governos e gerações futuros.
Provavelmente
não é este o melhor momento para a alteração preconizada. Entendimentos
alargados entre os partidos talvez se mostrem ainda necessários para
não se hipotecar o futuro com políticas fiscais desabridas. Mas o debate
deve continuar. Assim como deve continuar para outras matérias
constantes dos três projectos de revisão constitucional.
Melhorar
o funcionamento do sistema político, adequar o País na sua globalidade a
relacionar-se consigo próprio e com o mundo e daí extrair a dinâmica
para sustentar crescente prosperidade para todos são objectivos que
devem nortear todo o processo de discussão da revisão constitucional.
Para isso é fundamental que não se deixe o debate enviesar-se. É de
evitar particularmente o monopólio da discussão pelos partidos e
excessivas manifestações de interesses puramente conjunturais ou
politiqueiros.
Publicado pelo jornal A Semana de 7 de Fevereiro de 2009
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