Da passagem da torrente de personalidades e empresários com
o Primeiro Ministro de Portugal, José Sócrates, oito ministros e sete
secretários de Estado à frente e do frenesim, criado na sua esteira, ficou no
ar uma questão: Mas tudo isso era acerca de quê?
Uma pergunta que o próprio PM português procurou responder em
entrevista citada pela TSF. Sócrates disse que inicialmente o objectivo era dar
um novo fôlego à agenda de cooperação. Mas foi-se além: a dado momento, a agenda de cooperação deixou os temas do passado para acabar por se
centrar nas novas tecnologias de
informação e comunicação, nas energias renováveis e no conhecimento. O
destaque, porém, era homenagear o grande sucesso de Cabo Verde. Uma homenagem
dirigida, de facto, ao Primeiro-Ministro caboverdiano, José Maria Neves, que
também respondeu na mesma medida.
Elogiou o Governo de Sócrates com expressões como ousadia, espírito empreendedor, capacidade de liderança e de transformar,
expressões que gosta de ver coladas ao seu próprio governo. Cortesias que
podiam simplesmente significar o elevado grau de relações entre Cabo Verde e
Portugal. Mas considerando o momento escolhido para a visita terão
provavelmente algo mais.
Os dois chefes de governo são líderes de partidos da mesma
família, a Internacional Socialista, e preparam-se para eleições. Sócrates tem
três eleições para enfrentar este ano. José Maria Neves, depois da derrota nas
eleições autárquicas, ainda está a consolidar as “tropas” para o embate de
2010/2011. E a calar as críticas internas, feito que, em Dezembro passado, já
tinha realizado em grande medida mas que prejudicou com a sua declaração pouco
cuidada a propósito da candidatura de Aristides Lima. Declaração que já lhe
custou uma carta anónima, vinda, tudo leva a crer, do interior do seu próprio
partido. Nestas condições toda a solidariedade é pouca.
A solidariedade devida não apaga porém interesses mais
mundanos. Como o PM português bem sublinhou, o relacionamento com Cabo Verde representa uma relação comercial de
maior importância para Portugal.
Portugal, segundo ele, exporta
todos os anos para Cabo Verde 250 milhões de euros. Nesse quadro,
compreende-se perfeitamente que os objectivos principais da visita a Cabo Verde
sejam manter e expandir o mercado caboverdiano para as exportações portuguesas.
Nos tempos difíceis de hoje, de notória contracção da
procura global e de reaparecimento do monstro do proteccionismo, mostra-se perfeitamente
lógico que países engendrem formas inovadoras para manter cativos os mercados.
Particulamente, quando as suas exportações são pouco competitivas no mercado
aberto. Sem a possibilidade de desvalorizar as suas moedas para se tornarem
mais competitivas recorrem à criação de
facilidades de crédito para assegurar mercado.
Portugal assinou vários acordos com o Governo de Cabo Verde
que criam novas linhas de crédito ou ampliam as já existentes. Assim ampliou
uma linha de crédito da Caixa Geral de Depósito de 100 milhões para 200 milhões
de euros para a construção de infraestruturas portuárias. Passou um empréstimo
directo do Estado português de 40 milhões para 100 milhões de euros para a
construção de novas estradas. Criou uma nova linha de crédito de 100 milhões de
euros para as energias renováveis, salientando o facto de ter a quarta empresa
mundial nesse sector, a EDP, mas evitando pronunciar o nome dessa empresa para
não relembrar o governo caboverdiano da
forma como tratou o assunto da Electra. Uma outra linha de crédito, ainda de 7 milhões
deverá ir para o que convencionaram chamar de Cluster do Atlântico para as TIC
(Tecnologias de Informação e Comunicação).
Segundo o Secretário de Estado do Tesouro e Finanças
português, a assinatura desses acordos potenciam
as exportações e a internacionalização das empresas portuguesas. Adiantou
ainda que os acordos têm como condição
que os projectos sejam desenvolvidos por
empresas portuguesas.
É, assim, que finalmente se compreende a razão porque todos
esses anúncios nos jornais de concursos públicos do Estado de Cabo Verde para a
construção e fiscalização de obras são dirigidos a empresas portuguesas. Recentemente
as empresas caboverdianas foram aceites, mas em consórcio com empresas
portuguesas e com o entendimento que o consórcio deve ser liderado pela
entidade portuguesa.
Naturalmente que o condicionante imposto no uso do dinheiro
dos empréstimos, que certamente Cabo Verde irá pagar na íntegra, não se limita às
empresas construtoras das infraestruturas. Como a linha de crédito visa
potenciar as exportações é natural que também se faça uso dela na compra de
bens e serviços exclusivamente portugueses. É evidente que isso ficará caro a
Cabo Verde, considerando a fraca competitividade dos produtos portugueses e, em
consequência, o seu preço mais elevado relativamente a produtos similares, oferecidos
no mercado internacional.
A questão que se coloca é porque que o Governo de Cabo Verde
aceita um negócio desses. Vasco Pulido Valente, numa crónica no jornal Público
de 15 de Março foi claro quanto à relação de muitos governos com as infra
estruturas: (…) “política do betão”é
fácil de explicar. Para começar, não implica um pensamento político, não exige
mais do que uma velha tecnologia, usa sobretudo mão--de-obra não qualificada,
abre largamente a porta à corrupção, o resultado fica bem à vista e o país
julga que se “modernizou”. (…) Claro que uma auto-estrada pouco ou nada
contribui para o desenvolvimento e a produtividade(…).. Só ajuda a fingir que [se]
progride e isso basta. Ainda, no
mesmo tom e a respeito do Magalhães, disse que esse portátil (…) tinha a mesma vantagem de uma
auto-estrada - não pedia, em princípio, nenhum esforço de inteligência,
imaginação ou conhecimento. Bastava encomendar a coisa, pagar a coisa e
distribuir a coisa.
Os entendimentos feitos com o Governo português no domínio
da sociedade de informação incluem a manifestação de interesse do executivo
caboverdiano em adquirir 150 mil computadores portáteis para o sistema escolar.
A concretizar-se com o Magalhães, ou comum seu clone próximo, estar-se-ia a
falar de valores de mais de 49 milhões de euros, partindo do preço unitário do
Magalhães de 329 euros. Uma excelente venda para Portugal!
É interessante ver a abordagem de Moçambique na realização
desse desiderato de massificação do acesso a computadores. Para abastecer o
mercado, o Ministério da Ciência e Tecnologia desse país fez uma parceria com a
empresa sul africana Sahara para instalação de uma linha de montagem de
computadores que poderá a chegar a 19 mil computadores por ano, quando em
velocidade de cruzeiro. Ou seja, fez-se aí uma opção em construir uma
capacidade interna abrangente no domínio das TIC que certamente não fica
limitada às fórmulas, produtos e serviços que a Cooperação permite comprar. Tal
aposta pressupõe desenvolvimento de capacidades endógenas em institutos
tecnológicos e centros de formação profissional. Sem esquecer o incentivo ao
empreendorismo, dinamicamente conectado com centros de aprendizagem e de
investigação, na perspectiva de venda de serviços no mercado local e
internacional.
Hoje é ponto assente que a crise actual marca o fim de uma
era. Um mundo novo irá emergir em que muitas das facilidades e oportunidades
anteriores deixarão de existir. Para Cabo Verde, que deixou de beneficiar da
condição de país menos desenvolvido
para ser encarado hoje como um país de rendimento
médio, insistir na lógica do curto prazo, do ganho político imediato e do “parecer” em vez de “ser” pode vir a revelar-se desastroso.
A pequenez da economia caboverdiana alimenta a crença que a
transferência de fundos de outras paragens, via as mais diferentes formas de
cooperação, não deixará de manter o país a andar. Tal crença desvia o foco da
governação. O governo, em vez de se centrar em resultados, nomeadamente, aumento
do emprego, exportações e melhoria da
competitividade global do país, fixa-se na captação de fundos. Em vez de
desenvolver projectos com vista a garantir sustentabilidade e retorno dos
investimentos feitos ocupa-se essencialmente da montagem dos mesmos,
esquecendo-se das outras fases. Em vez de publicitar o efeito dos investimentos
na qualidade de vida das pessoas, na capacitação do País em atrair investimento
e na criação de mercados para bens e serviços nacionais, quase que transforma a
governação num desfile incessante de anúncios e inaugurações.
Esta crise não tem que ser mais uma oportunidade a perder.
Para evitar que assim seja, as energias da nação têm que ser mobilizadas. E
certamente que não é com a cooperação internacional que isso será feito. Mesmo
que venha vestido de outras roupagens e envolta numa linguagem moderna
salpicada de TICs e clusters.
A Irlanda ou a Índia atraíram capitais e exportaram bens e
serviços designadamente através do outsourcing
e offshoring porque souberam construir
capacidade endógena. Formação e qualificação da mão de obra foram elevados ao
nível de prioridade máxima. Com isso mobilizou-se a vontade dessas nações, exigiu-se
maior responsabilidade das famílias e os indivíduos sentiram-se motivados num
ambiente que recompensa trabalho árduo, o mérito e a criatividade. O resultado
viu-se no alto nível de ensino das ciências e engenharias, no desenvolvimento
das tecnologias de informação e comunicação e na aquisição de competências
linguísticas de importância e valor no mercado global.
È um caminho similar que Cabo Verde deve seguir para que a
frustração dos últimos anos não persista. O País tem que acreditar que é capaz
de baixar significativamente o desemprego e crescer. Crescimento que aumente
significativamente o rendimento e a qualidade de vida das pessoas e diminua a
dependência da generosidade dos outros. O momento para isso é agora. Não deve
ser desperdiçado. E cantos desviantes de sereia não devem ser ouvidos.
Publicado pelo jornal A Semana de 13 de Março de 2009
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