A questão de oficializar ou não o crioulo ganhou
uma outra dinâmica com a apresentação do projecto de revisão constitucional,
apresentado por um grupo de deputados do PAICV. Anteriormente a questão, ciclicamente,
recebia impulsos políticos de diferentes quadrantes. Momentos houve, no passado
recente em que Ministros,
Primeiro-Ministro e o próprio Presidente da República se desdobraram em
declarações, pontuadas por elementos de retórica nacionalista, clamando pela
sua oficialização.
A pressão pela oficialização do crioulo tem um
conteúdo essencialmente ideológico.
No projecto
de revisão constitucional, o PAICV quer “dignificar” o crioulo face ao
português. Assim propõe que o nº 1 do artigo 9º da Constituição passe a ter o
seguinte texto: 1. São
línguas oficiais da República o Cabo-verdiano, língua materna, e o Português. Com
isso pretende retirar o crioulo de algum suposto estatuto inferior e finalmente
libertá-lo da opressão da língua portuguesa. O facto porém é que, em Cabo
Verde, diferentemente de outros países onde se
procura oficializar línguas maternas, não há discriminação do crioulo.
Fala-se
crioulo no Parlamento, o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e os
Ministros falam crioulo com o País através dos órgãos de comunicação social,
nenhum cidadão está impedido de fazer declarações nos Tribunais em crioulo e a
Administração Pública responde a solicitações colocadas oralmente pelos
utentes. No País, não há uma elite que só fala a língua do colonizador, como
acontece em outras sociedades racialmente mistas, designadamente nas Caraíbas. Também
não se acusa de elitismo os escritores, intelectuais e políticos que, no dia a
dia, só falam português. Não se pode, pois, seriamente, erigir o crioulo como
uma putativa língua de resistência em confronto com o português. Só se for para
atiçar chamas nacionalistas em proveito próprio.
O
crioulo parece ter emergido do estado de isolamento, abandono e pobreza extrema
vivido nas ilhas que não permitiu a subsistência de uma comunidade
metropolitana homogénea capaz de impor a sua língua ao resto da população. Como
aconteceu, por exemplo, no Brasil, mas também, na generalidade das colónias
europeias nas Américas.
Procurando
a origem dos crioulos, Derek Bickerton, um linguista norte-americano da
Universidade de Hawai e autor do livro “Dinâmica das Línguas Crioulas”, diz que
o estudo do crioulo do Hawai demonstra que o processo inicia-se, em ambientes
poliglotas forçados, com uma linguagem de recurso, o chamado pidgin, caracterizado por variações, de
pessoa para pessoa, consoante a sua origem étnico-linguística. E que na
sequência disso as crianças nascidas em tal ambiente apropriam-se do pidgin dos pais e vizinhos, imprimem-lhe
uma estrutura, padronizam o seu uso e fazem a língua aceitável para gerações
sucessivas de crianças.
Um
fenómeno que parece indiciar a existência de uma gramática universal inata,
como defende Noam Chomski, o linguista do MIT. Bickerton concorda com o modelo
gramatical inato mas diz que só não é suprimido nas comunidades onde a língua
de comunicação é o pidgin, ou seja,
em comunidades sem uma língua estruturada preponderante. Para ele, a língua
crioula nasce quando essa estrutura gramatical inata absorve e modela os
vocábulos já disponíveis.
Steven
Pinker, professor de ciências cognitivas no MIT relata um caso no seu livro The Language Instint que parece
confirmar esse processo. Nas primeiras escolas de surdos- mudos na Nicarágua as
crianças reunidas pela primeira vez desenvolveram a partir dos gestos de
comunicação que traziam de casa um conjunto de sinais com as características e
as limitações de expressão de um pidgin.
A leva seguinte de alunos mais novos aprenderam esse pidgin e, ainda, segundo Pinker, reinventaram a linguagem, agora já
com gramática, uma maior versatilidade e outra capacidade expressiva. E a
gramática revelou-se similar à dos crioulos falados.
Os
estudos referidos mostram-se pertinentes em vários aspectos. Põem de lado a
ideia de que o crioulo teria importado a sua gramática de alguma língua
africana que, até agora, ninguém parece
ter identificado. Por outro lado, ao ressaltarem o carácter inato das estruturas
gramaticais, ajudam a compreender a resistência que as crianças manifestam em
abandoná-las. E levam a considerar as possíveis implicações no ensino e na aprendizagem
da segunda língua.
Do
efeito surpreendentemente resistente do crioulo caboverdiano fala Baltazar
Lopes da Silva no seu livro Dialecto Crioulo: “Bem cedo o crioulo das ilhas deve ter disposto de uma estrutura
coerente e de um vocabulário bastante para as necessidades; e, assim, bem cedo,
ao que me parece, o homem crioulo se sentiu idiomaticamente auto-suficiente.
Acrescentou ainda que a aproximação [do
português] tem balizas nítidas que a
contem dentro de limites naturais. E os limites são, na essência, o sistema
morfológico, definitivamente simplificado e fixado há séculos e o agenciamento sintáctico do discurso”.
A
resistência do crioulo é também visível no facto de, em matéria de uso da
língua, Cabo Verde ir à contra corrente do que se passa na generalidade dos
países africanos, designadamente dos PALOP. Nesses países, as línguas europeias
dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais e continuam a ganhar terreno,
suportando-se na crescente urbanização e escolarização. Em Cabo Verde, apesar dos altos níveis de educação e de
urbanização, o crioulo continua inabalável na sua condição de língua materna.
A
ansiedade, com a imaginada perda de terreno do crioulo em relação ao português,
só existe nos círculos que procuram tirar proveitos políticos de conflitos
identitários exacerbados. Para o cidadão comum não há crise. E nem há para os
escritores, músicos e artistas diversos que têm conseguido passar com sucesso
para o mundo inteiro a alma e a arte caboverdianas, sem quaisquer
constrangimentos.
A Constituição
estabelece no nº2 do artigo 9º que o Estado deve promover as condições para a
oficialização da língua materna cabo-verdiana, em
paridade com a língua portuguesa. Uma dessas condições seria a estandardização da escrita do crioulo, com impacto em
duas áreas: a comunicação escrita do/e com o Estado e a língua de ensino.
Em
termos de comunicação a oficialização obrigaria a que todos os documentos do
Estado fossem disponibilizados em crioulo para quem quisesse acede-los nessa
língua. A Administração Pública teria que se tornar apta a responder a
solicitações escritas dos cidadãos, sem equívocos provocados pelo
desconhecimento de uma escrita padronizada. Os custos que tudo isso acarretaria
poderão não se justificar. Corre-se o risco de subutilização ou por falta de
alfabetização generalizada no crioulo ou por falta de interesse.
No
ensino, a somar aos custos de produção e publicação de manuais juntar-se-ia, a
exemplo do que se passou noutras paragens, designadamente Aruba e Curação, a
reacção dos pais. Uns a querer a educação só em português para os filhos em
escolas privadas e outros a resignarem-se e a ficar por escolas públicas onde
se ensina em crioulo. Em África, a grande maioria dos países tem uma única
língua oficial, que também é língua do ensino, a todos os níveis. Poucos se
aventuraram em levar as línguas maternas para o sistema de ensino
O
argumento de uso do crioulo para facilitar os alunos nos primeiros anos só
parece ter sentido porque o Estado falha em propiciar às crianças o acesso ao
português desde da tenra idade. A consagração constitucional da língua
portuguesa como língua oficial obriga o Estado a agir no sentido, por exemplo, de redefinir todo o
pré-escolar como o centro focal do esforço nacional em tornar verdadeiramente
bilingue o caboverdiano. O caboverdiano
não é bilingue por deficiência do seu crioulo, mas sim por falhas no domínio do
português. E é isso que urge remediar.
O
Governo com o decreto-lei nº8/2009 aprovou um alfabeto para a escrita
caboverdiana, o chamado ALUPEC. Não ficou definido uma forma padronizada de escrita.
Simplesmente fez-se uma opção de como escrever o crioulo nas suas diferentes
variantes. E, provavelmente, não foi boa opção ter seleccionado o alfabeto fonético
– fonológico, em detrimento do alfabeto etimológico.
O
próprio preâmbulo da lei dá conta do uso generalizado do alfabeto etimológico
nas publicações dos escritores, poetas e ensaístas caboverdianos nos séculos dezanove
e vinte. Assim fala de Adolfo Coelho, Cónego Teixeira, Napoleão Fernandes,
Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Dulce Almada, B.Leza, Sergi
Fruzoni, Luís Romano, Jorge Pedro Barbosa, Ovídio Martins, Kaoberdiano Dambará,
Kwame Kondé, Emanuel Braga Tavares, Ano Nobo, Manuel d´Novas e muitos outros. A
experiência no uso do alfabeto fonético – fonológico, para além do caso do António
Paula Brito no século dezanove, só a registar trabalhos na recolha e transcrição
de tradições orais, obras do doutor Manuel Veiga, actual Ministro da Cultura, e
algumas traduções de clássicos portugueses feitos por José Luís Tavares.
O alfabeto
etimológico aparenta ter uma outra vantagem, para além do seu uso abrangente
por vários autores ao longo de mais de um século. O crioulo é classificado como
uma língua neolatina. Quase a totalidade do seu léxico deriva de línguas
latinas. Num ambiente em que, em simultâneo, se aprende duas línguas, português
e crioulo, ou mais de duas línguas (português, crioulo, francês e mesmo
inglês), obrigar as crianças caboverdianas a escrever palavras com a mesma origem
etimológica, usando alfabetos diferentes, causa a maior apreensão. O nível
actual de rigor ortográfico dos alunos no ensino primário e secundário já traz sérias
preocupações a pais e professores. Imagina-se a evolução dos alunos com a generalização
do uso do ALUPEC .
Quanto
á variante do crioulo a adoptar na padronização necessária para a oficialização
do crioulo, isso não parece fácil, nem despido de controvérsias. Baltazar Lopes
dizia que “Era preciso que já existisse uma literatura, um passado literário
escrito para nós podermos escolher um crioulo padrão” . E advertiu, “não
confundamos viabilidade da língua escrita com a da língua oral. O uso oral do
português data do século V ou VI… mas o português [escrito] só no século XIII”.
Em Cabo Verde, a abertura constitucional
para a oficialização do crioulo existe mas as condições adequadas terão que ser
criadas. As autoridades devem ser pacientes e resistir à tentação de usar uma
questão tão séria, e com implicações múltiplas e complexas, para o presente e
futuro do País, como elemento de agendas político-partidárias, ou outras.
Publicado pelo Jornal A Semana de 10 de Abril de 2009
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