John Adams, o 2º presidente dos Estados Unidos e um dos pais
fundadores da república, em 1787-88, avisou num dos seus escritos que gritos
de gratidão têm enlouquecido mais
homens e estabelecido mais despotismos no mundo do que todas as outras causas
possíveis. Mais avisou que líderes
políticos a declararem-se despidos de interesses pessoais e motivados somente
pelo amor pelo povo não constituem garantia de liberdade.
A Africa está repleto de exemplos de como a utilização da
política de gratidão pelos protagonistas da independência tem sido desastrosa. Exigir
gratidão foi a via encontrada para se arrogar o direito ao exercício do Poder
com exclusão de todos. Com isso dividiu-se a sociedade e legitimaram-se
tácticas políticas de exploração de diferenças étnicas, linguísticas e
religiosas. Construíram-se cumplicidades continentais para garantir o
reconhecimento do direito dos heróis da luta anti colonial ao Poder nos seus
países.
Subsequentemente o controle dos recursos naturais e da ajuda
externa serviu para perpetuar a exploração do sentimento de gratidão das
populações. No sistema rentista
instituído, governar passou a significar dar
prendas às pessoas, realizar sonhos das populações, e contemplar grupos seleccionados com
acesso a recursos ou a oportunidades. Actos do governo transformaram-se em rituais
diários de demonstração da generosidade dos governantes e de manifestações de
gratidão das populações, altamente mediatizados via comunicação social,
em especial a televisão.
As consequências vêem-se na história pós independência da
generalidade dos países africanos: Guerra civil, golpes de Estado e atraso
económico indiscutível, particularmente quando comparados com a Coreia do Sul e
Singapura, países que nos primórdios da independência, tinham o mesmo
rendimento per capita do Gana e da
Nigéria. Onde, então, houve luta armada anti colonial a política de gratidão
resultou, quase sempre, em guerra civil. Zimbabwe, Moçambique e Angola são
casos paradigmátios.
A turbulência política na Guiné Bissau é o exemplo mais
recente e notório da verdade nas palavras de John Adams. Trava-se aí uma
variante da guerra civil. De uma primeira fase de eliminação de potenciais ou
imaginários adversários com o massacre dos antigos comandos africanos e outras
figuras guineenses, o PAIGC entrou em intermináveis conflitos internos que
dilaceraram o país. O culto de gratidão pelos combatentes da independência pôs
o destino da Guiné nas mãos deles e tem justificado a sua permanência no Poder,
não obstante a desgovernação de décadas a que sujeitaram o País. O resultado é
que hoje, segundo Aristides Gomes, antigo primeiro-ministro, citado pelo
Público de 9/6/2009, “os políticos
dependem de tal forma do apoio de facções poderosas nas forças armadas que o
país se tornou impossível de governar. As forças armadas não são mais um
exército no verdadeiro sentido do termo, mas uma mescla de várias milícias”.
Nelson Mandela destaca-se de todas as manifestações
despudoradas de ganância de Poder em Africa. Figura central da luta anti-apartheid na
Africa do Sul não se candidatou para mais um mandato após realizar o seu
desígnio de construção de uma democracia multi-étnica, multiracial e
multicultural. O seu gesto teve significado similar ao do general George Washington
que se retirou para a vida civil logo que terminou a guerra da independência. O
mesmo George Washington que, mais tarde, chamado a servir a jovem república
como presidente, retirou-se ao fim do segundo mandato, para que a voz do povo nas urnas tivesse expressão
mais distinta e clara, criando o precedente de dois mandatos universalmente
referenciado.
Robert Mugabe, pelo contrário, é o exemplo acabado de como
um herói da guerra da independência se sente no direito de até destruir o país,
se o seu poder for questionado. Logo após a independência, procedeu ao
aniquilamento de rivais do ZAPU, também combatentes da independência.
Posteriormente desferiu ataques contra a minoria branca destruindo a economia
do país no processo. O espectáculo do Zimbabwe, um país outrora dos mais
prósperos na região, a ser engolido pela hiperinflação, é elucidativo do que
acontece quando reina o despotismo de quem reivindica eterna gratidão pelos
seus feitos no passado.
O mais complicado é a complacência generalizada em relação
aos actos destrutivos de Mugabe. Demonstra o quão muitos se revêem na política
de gratidão. E como as narrativas de vitimação, do esclavagismo e do
colonialismo são instrumentais para a manutenção do Poder em Africa.
Cumplicidades extraordinárias são forjadas no esforço
permanente de controlo da memória pública dos acontecimentos históricos. A
exaltação da luta pela independência e dos seus protagonistas ou heróis caminha
lado com uma leitura oficial e unidimensional da história que a justifica. Por
isso, gera permanentes divisões na sociedade e insiste que o presente seja
sempre visto com os olhos do passado. O País vê-se roubado de coesão social,
capacidade de governança e perspectiva do presente e futuro para que se
eternize o poder dos que se fazem proclamar “melhores filhos”.
Causa alguma estranheza a cumplicidade das antigas
potenciais coloniais na manutenção de narrativas independentistas. E a
deferência demonstrada em relação aos seus protagonistas oficiais. Talvez
resultado de interesses económicos, de complexos de culpa ou, ainda, de
resquícios de paternalismo. Em todos os casos, só os ajudam no controlo da
memória pública e, por essa via, a munirem-se dos meios de manutenção no
governo ou de regresso ao Poder.
Mesmo em situações extremas como as da Guiné-Bissau, em que
se assiste à implosão progressiva do país e a sua transformação num Estado
falhado, não se vai ao fundo do problema. Deixa-se ficar pelas recomendações de
sempre: eleições urgentes e criação de forças de interposição. Insiste-se mesmo
que eleições presidenciais continuem marcadas para o dia 28 de Junho, não
obstante o assassinato recente de um candidato presidencial e de um deputado
proeminente. Espera-se que a realização das eleições restaure a ordem
constitucional. Como se isso fosse possível, tendo em conta a ausência do
controlo civil das forças armadas e de garantias de segurança e, também, a
falta do esclarecimento completo dos assassinatos do Presidente da República e
do Chefe de Estado Maior.
O PAIGC tem mais de dois terços dos deputados desde das
eleições de Novembro de 2008. Vê-se que o país continua nas suas mãos, mas a
Guiné continua sem segurança, sem governo e sem perspectivas de
desenvolvimento. O Presidente Obama no seu discurso de Cairo de 4 de Junho deixou
claro que “só eleições não fazem uma
democracia de verdade”. É preciso, segundo ele, “manter o poder por meio de consentimento, não de coerção; é preciso
respeitar os direitos das minorias e participar com espírito de tolerância e
compromisso; é preciso colocar os interesses do povo e os trabalhos legítimos
do processo político acima do partido”.
Em Cabo
Verde, os acontecimentos na Guiné são vistos num misto de
pena e ansiedade. Pena porque se trata de destruição progressiva de um país próximo,
que em muitos caboverdianos, por uma razão ou outra, traz boas recordações.
Ansiedade porque sempre que a Guiné está na berlinda
põe-se o problema da real herança
histórica do PAIGC. Do que ele foi, o que fez e em quê se transformou. E assim
é, porque, também em Cabo
Verde, há uma pressão constante no sentido do controlo da
memória pública.
Não houve luta armada em Cabo Verde mas
instalou-se um regime de partido único na base de uma legitimidade, adquirida
na guerra na Guiné. Os líderes sentiam-se justificados na gratidão que o povo lhes
devia pela independência alcançada e por terem vertido sangue e demonstrado
livre de interesses próprios. O problema nesta construção ideológica é que se tratava
de história contada, não de história vivida nas ilhas. O controlo
dos elementos da narrativa teria que ser o mais estrito possível para evitar contradições,
incoerências e revelações demolidoras. Daí a “dança” com a Guiné.
É ali que tudo se tinha passado. Dali é que vinha a
legitimidade, mas também podia vir elementos destrutivos. Manteve-se durante
cinco anos a ilusão da Unidade Guiné-Cabo Verde contra toda a evidência da
violenta interna do PAIGC, demonstrada na morte de Cabral. Convinha aos
desígnios do Poder em Cabo Verde. Hoje
esforça-se por determinar uma data para o descalabro da Guiné, para evitar que
a verdade contamine quem ainda reivindica o legado da luta de libertação. Por
isso, uns dizem que foi depois do golpe contra Nino, outros garantem que foi
com o Nino, outros ainda vão ao tempo do Luís Cabral e às valas comuns. A
realidade é que conflitos dentro do PAIGC e as formas sumárias de os resolver vêm
de longe, do Congresso de Cassacá em 1964, como testemunha Amílcar Cabral na
obra “Palavras de Ordem”. Depois da independência, essa cultura política foi
simplesmente extrapolada para o país todo, no quadro do partido-estado.
A preocupação com o controlo da memória pública, após quase
duas décadas de democracia e de legitimação do exercício do Poder pelo voto
livremente expresso, demonstra que políticas de gratidão estão vivas e activas
na sociedade caboverdiana. Há, certamente, quem quer alavancar as suas chances
políticas, cobrando dívidas de gratidão por factos passados, favores prestados
e benesses dispensadas.
Não é estranho a isso a insistência num nacionalismo que se
sustenta mais de lutas de fora do que de vivências de dentro, que vive mais do
passado do que dos desafios do presente e que mais desune do que une. Também
não é estranho que se inculque um sistema de referência onde governos são valorizados
pelo volume de ajuda angariada, a governação fica, muitas vezes, por grandes
gestos sem consequência e a dependência das pessoas é activamente alimentada
pelo Estado. Como também não é estranho que se mantenha o timbre fortemente
partidarizado da acção do Estado, a comunicação social pública dentro da
narrativa libertária e a Educação sob controlo ideológico, actualmente até com inputs directos do Primeiro Ministro
para crianças e adolescentes, em aulas especialmente fabricadas.
Rejeitar a cultura política que elege dívidas de gratidão
como sustentáculo da actividade política é fundamental para a Liberdade, para a
contínua institucionalização do país em direcção ao ideal da boa governança e para que Cabo Verde
deixe de se mirar no passado e projecte o futuro, realçando os valores do
mérito, da criatividade e da capacidade de execução e inovação.
Publicado pelo jornal A Semana de 22 de Maio de 2009
domingo, maio 24, 2009
sexta-feira, maio 08, 2009
Emprego, o mercado e o futuro
O Governo, em matéria de emprego, parece ter deixado cair a toalha ao chão. Solicitou
um debate parlamentar sobre emprego e formação profissional. Já praticamente a
fim do seu mandato e sem ter cumprido o objectivo da legislatura de baixar o
desemprego a níveis inferiores a 10%, o convite à Oposição só pode significar
que se esgotou em termos de soluções próprias.
E isso não se esconde com o frenesim habitual de membros do Governo a se espalharem pelas ilhas a falar de formação profissional e empreendedorismo e a prometer a construção de centros de formação. Formação profissional é útil para responder ás necessidades do mercado em trabalhadores qualificados. Por si mesmo não cria emprego. Pode tornar as pessoas empregáveis. Mas isso, se houver procura, ou seja, se houver crescimento da economia, se os mercados estiverem organizados e se o exercício da profissão for regulado de modo a evitar informalidade no acesso ao trabalho.
Crescimento económico não aconteceu nas taxas que podiam contribuir para debelar significativamente o desemprego. Com a crise, o investimento público, focalizado em infraestruturas, não se tem revelado capaz de arrastar o resto da economia e manter o ritmo de crescimento. Consequências disso são visíveis ao nível do emprego e do rendimento das pessoas mas também das receitas do Estado, como bem disse a Sra. Ministra das Finanças.
A unificação do mercado nacional que, num país arquipélago e de pequena população, poderia trazer um factor de escala para alguma produção nacional não atingiu níveis desejados. S. Antão continua cortada do resto do país por causa dos milpés, Brava e Maio estão praticamente isoladas e as comunicações entre as outras ilhas sofrem os efeitos da precariedade das ligações, inadequação dos barcos e constrangimentos vários ao nível dos portos e serviços neles prestados. O Governo insistiu na construção de rede de estradas nas ilhas e descurou as “auto-estradas” entre as ilhas, as linhas marítimas. Sem movimento garantido inter ilhas fica-se muito aquém de retirar os benefícios possíveis da construção das estradas. A estrada Porto Novo Janela, por exemplo, compreende-se em grande parte se houver um esforço redobrado de unificação económica de S.Vicente e S Antão que gere mais circulação de pessoas e bens.
A organização do mercado pressupõe que se reconheça, designadamente, onde é capaz de funcionar em pleno, onde é imperfeito, onde se deve condicionar a entrada de operadores e onde não é possível substituir a presença do Estado. E, também, que se aja em consequência.
As ligações marítimas inter ilhas são claramente um sector que não pode ser deixado unicamente nas mãos do sector privado. A exemplos de outros espaços arquipelágicos como os Açores onde se subsidia o transporte marítimo, o Governo de Cabo Verde deve ter respostas à altura. Subsídio, concessões, licenças ou intervenção directa, devem ser considerados com vista à unificação do mercado interno como forma de potenciar a produção nacional .
Subsídios têm sido estigmatizados, muitas vezes sob pressão do FMI, devido a preocupações legítimas com o possível impacto orçamental no presente e no futuro. Não se tem, talvez, em devida conta os ganhos derivados do efeito multiplicador na economia que, a verificarem-se, diminuem o risco orçamental.
O resultado é que ligações como as que ligam Praia ao Maio e Brava ao Fogo não gozam de um contrato próprio incluindo subsídios. Contrato esse que ao estabelecer frequência certa do barco, ou seja criar previsibilidade na ligação, abre o caminho para o crescimento progressivo do movimento de carga e passageiros nos dois sentidos e consequente aumento do emprego e produção na ilha. O subsídio inicial para cobrir a diferença entre o custos e as receitas derivadas de carga e passageiros, tende a diminuir com o crescimento do tráfico. E, a prazo, a terminar mesmo, com a viabilização da rota. Mais arriscado parece é a insistência do Governo em soluções que comprometem o Estado com subsídios sem serviço imediato, Cartas de Conforto na emissão de obrigações, sem o aparente suporte de activos, e presença problemática do Primeiro Ministro em OPOs (Oferta Pública de Obrigações) de empresas privadas.
A ajuntar-se à falta de visão na organização do mercado nacional, vêm as omissões na regulação. Um dos exemplos mais gritantes é a produção e distribuição do grogue. Mesmo os efeitos desastrosos do elevado alcoolismo em todo o País, particularmente no mundo rural e entre os jovens não levam as autoridades a ter uma posição forte e corajosa.
O País não tem cana sacarina suficiente para produzir os muitos hectolitros de grogue consumidos anualmente. A diferença entre a oferta e a procura é coberta por mistelas diversas destiladas livremente, sem obviamente qualquer controle de qualidade e de nível de toxicidade. O resultado é que o “mau” grogue acaba por deslocar o “bom” grogue de cana, deprimindo os preços, arruinando os proprietários de cana ou forçando-os a juntarem-se à produção ilegal. A desconfiança generalizada em relação ao Grogue faz o produto perder mercado tanto no país, entre as classes mais abastadas e no mercado do turismo, como não consegue atingir o seu potencial enquanto produto de exportação para o mercado étnico das comunidades na América e na Europa. Perdem os proprietários, perde o Estado com a produção ilegal, não tributada, e perdem os exportadores.
A distribuição não regulada, por outro lado, tem consequências sociais graves pelo impacto directo nas famílias, na produtividade do trabalho, nos custos das estruturas de saúde e nas demandas feitas ao sistema de segurança para pôr cobro aos tumultos causados pelo uso excessivo do álcool. Fica evidente que aceitar-se que se venda, em todo o lado, cálices de grogue por 10 escudos, ou que se deixe generalizar misturas adocicadas para disfarçar o mau gosto do grogue e atrair jovens mulheres a bebidas fortes, não traz quaisquer ganhos ao País. Em vez de criar trabalho e gerar divisas com exportações, a produção do Grogue destrói pessoas, compromete a produtividade nacional e onera o Estado. É tempo de se agir inteligentemente, mas resolutamente, para regular o sector e pôr cobro ao problema.
A intervenção qualificada do Estado num economia pequena e insular como a caboverdiana pode ser um factor importante de crescimento. Desde logo pelo facto da própria presença do Estado através dos salários pagos, serviços prestados, bens e serviços comprados, fluxo de pessoas induzidos e eventos criados afectar tudo à sua volta. Modular o impacto do Estado de forma a que, designadamente, favoreça a concorrência entre empresas, contribua para uma maior qualidade nos produtos e serviços prestados, e incentive a emergência e desenvolvimento de novos mercados deve constituir uma parte importante das medidas de política económica do Estado. As opções de descentralização, o modelo de aprovisionamento de bens e serviços, as formas adoptadas na prestação dos serviços do Estado e mesmo a organizações de eventos públicos devem ter em devida consideração o peso e a influência que a acção do Estado poderá ter nas pequenas economias das ilhas, para melhor as potenciar.
O sector energético é um sector a pedir uma intervenção qualificada do Estado. Uma intervenção que vá além da simples procura de financiamento para formas convencionais de produção de energia e água. Ou fique por acções, também financiadas do exterior, como é caso das entregas mediatizadas de lâmpadas de baixo consumo.
Onde estão as outras medidas de promoção da poupança nos consumidores? Se a tendência do futuro – futuro que já foi o presente poucos meses atrás no preço de petróleo a 145 dólares - é do aumento do preço dos combustíveis fósseis sob o impulso da procura, como ficar pela actual política de preços de combustível? O objectivo parece ser, tão somente, proteger o orçamento do Estado de choques futuros. Quando o que importa, agora e no futuro, é modelar comportamentos dos consumidores, consentâneos com a inevitabilidade do aumento dos combustíveis, logo que a economia mundial saia da recessão actual.
Por outro lado, como não criar possibilidades de emprego com novos mercados criados pela regulação do sector energético. Uma decisão, por exemplo, de favorecimento de colectores solares térmicos para a produção de água quente para hotéis, blocos de apartamentos e outros edifícios em detrimento de termoacumuladores eléctricos criaria espaço para o surgimento de empresas de montagem, instalação e manutenção dos colectores. Ganhar-se ia em novos empregos e na poupança de energia com proveito directo para os consumidores, para os fornecedores de energia e para a balança de pagamentos do País. No mesmo sentido ir-se ia com acções de política dirigidas para instituir a certificação energética dos edifícios.
A grande oportunidade que poderá abrir-se ao País está num comprometimento forte, sério e abrangente no domínio dos biocombustíveis, particularmente do biodiesel a partir da purgueira. A purgueira, jatropha curcas, é uma planta decididamente adaptada em Cabo Verde cujo óleo já fez parte da economia das ilhas como produto de consumo local e de exportação. Das plantas oleaginosas é a que mais se pode retirar óleo: até 40% da sua massa. Depois de um processo de refinação que é fundamentalmente de transesterificação, o óleo resulta em biodiesel e glicerina. O biodiesel pode ser misturado com o diesel num blend a diferentes percentagens. Na Nova Zelândia, em Fevereio deste ano, fez-se mesmo a experiência de misturar 50-50 o biodiesel da purgueira com o Jet Fuel para operar um dos reatores de um Boeing 747-400.
Com uma capacidade de produção por colheita e por hectare de cerca de 1800 litros de óleo, a purgueira a pode ser a cash crop que o mundo rural caboverdiano, há muito tempo, procura. Dá-se muito bem em zonas semi-áridas e de terrenos marginais e não compete com as plantas alimentares. Importa neste momento é que se crie um mercado para o óleo da purgueira.
E isso faz-se definindo por lei a percentagem do diesel em Cabo Verde que deverá ser biodiesel. A exemplo da Directiva da União Europeia de 2003 que aponta para uma percentagem de biodiesel de 5.75 % na Europa até 2010 e de leis noutros países que estipulam percentagens muito mais elevadas de 20%. Com isso, grandes ganhos podem ser vislumbrados: ganho para os agricultores e para a população rural; ganho para o país porque haveria menos importações de combustíveis fósseis; ganho para o ambiente com um combustível menos poluente. Ganhos futuros em vendas de crédito de carbono.
Acordos público-privado do género do que foi assinado na semana passada com a GeoCapital denota o interesse dos poderes públicos. Mas há que agir de forma decidida para criar espaço para o biodiesel, a partir do óleo da purgueira, no mercado global do diesel em Cabo Verde, avaliado em mais de 96 mil toneladas e um total de 11 milhões de contos.
No mundo globalizado de hoje ganhos importantes vão para quem consegue ver as tendências a emergir e posicionar-se para as explorar. Os empregos novos assim criados têm maior possibilidade de sustentabilidade a prazo. Para o País, saber antever o futuro e adaptar-se rapidamente ás suas exigências pode ser a fórmula ganhadora. Nessa perspectiva, mais do que talvez a formação profissional , uma grande qualidade no ensino das ciências, da matemática e das línguas no nível básico e secundário parece mais vantajoso. Uma base sólida permite que rapidamente as pessoas adquirem novas qualificações e mudem de profissão, conforme a dinâmica do mercado.
É matéria para se continuar a reflectir.
Publicado pelo jornal A Semana de 8 de Maio de 2009
E isso não se esconde com o frenesim habitual de membros do Governo a se espalharem pelas ilhas a falar de formação profissional e empreendedorismo e a prometer a construção de centros de formação. Formação profissional é útil para responder ás necessidades do mercado em trabalhadores qualificados. Por si mesmo não cria emprego. Pode tornar as pessoas empregáveis. Mas isso, se houver procura, ou seja, se houver crescimento da economia, se os mercados estiverem organizados e se o exercício da profissão for regulado de modo a evitar informalidade no acesso ao trabalho.
Crescimento económico não aconteceu nas taxas que podiam contribuir para debelar significativamente o desemprego. Com a crise, o investimento público, focalizado em infraestruturas, não se tem revelado capaz de arrastar o resto da economia e manter o ritmo de crescimento. Consequências disso são visíveis ao nível do emprego e do rendimento das pessoas mas também das receitas do Estado, como bem disse a Sra. Ministra das Finanças.
A unificação do mercado nacional que, num país arquipélago e de pequena população, poderia trazer um factor de escala para alguma produção nacional não atingiu níveis desejados. S. Antão continua cortada do resto do país por causa dos milpés, Brava e Maio estão praticamente isoladas e as comunicações entre as outras ilhas sofrem os efeitos da precariedade das ligações, inadequação dos barcos e constrangimentos vários ao nível dos portos e serviços neles prestados. O Governo insistiu na construção de rede de estradas nas ilhas e descurou as “auto-estradas” entre as ilhas, as linhas marítimas. Sem movimento garantido inter ilhas fica-se muito aquém de retirar os benefícios possíveis da construção das estradas. A estrada Porto Novo Janela, por exemplo, compreende-se em grande parte se houver um esforço redobrado de unificação económica de S.Vicente e S Antão que gere mais circulação de pessoas e bens.
A organização do mercado pressupõe que se reconheça, designadamente, onde é capaz de funcionar em pleno, onde é imperfeito, onde se deve condicionar a entrada de operadores e onde não é possível substituir a presença do Estado. E, também, que se aja em consequência.
As ligações marítimas inter ilhas são claramente um sector que não pode ser deixado unicamente nas mãos do sector privado. A exemplos de outros espaços arquipelágicos como os Açores onde se subsidia o transporte marítimo, o Governo de Cabo Verde deve ter respostas à altura. Subsídio, concessões, licenças ou intervenção directa, devem ser considerados com vista à unificação do mercado interno como forma de potenciar a produção nacional .
Subsídios têm sido estigmatizados, muitas vezes sob pressão do FMI, devido a preocupações legítimas com o possível impacto orçamental no presente e no futuro. Não se tem, talvez, em devida conta os ganhos derivados do efeito multiplicador na economia que, a verificarem-se, diminuem o risco orçamental.
O resultado é que ligações como as que ligam Praia ao Maio e Brava ao Fogo não gozam de um contrato próprio incluindo subsídios. Contrato esse que ao estabelecer frequência certa do barco, ou seja criar previsibilidade na ligação, abre o caminho para o crescimento progressivo do movimento de carga e passageiros nos dois sentidos e consequente aumento do emprego e produção na ilha. O subsídio inicial para cobrir a diferença entre o custos e as receitas derivadas de carga e passageiros, tende a diminuir com o crescimento do tráfico. E, a prazo, a terminar mesmo, com a viabilização da rota. Mais arriscado parece é a insistência do Governo em soluções que comprometem o Estado com subsídios sem serviço imediato, Cartas de Conforto na emissão de obrigações, sem o aparente suporte de activos, e presença problemática do Primeiro Ministro em OPOs (Oferta Pública de Obrigações) de empresas privadas.
A ajuntar-se à falta de visão na organização do mercado nacional, vêm as omissões na regulação. Um dos exemplos mais gritantes é a produção e distribuição do grogue. Mesmo os efeitos desastrosos do elevado alcoolismo em todo o País, particularmente no mundo rural e entre os jovens não levam as autoridades a ter uma posição forte e corajosa.
O País não tem cana sacarina suficiente para produzir os muitos hectolitros de grogue consumidos anualmente. A diferença entre a oferta e a procura é coberta por mistelas diversas destiladas livremente, sem obviamente qualquer controle de qualidade e de nível de toxicidade. O resultado é que o “mau” grogue acaba por deslocar o “bom” grogue de cana, deprimindo os preços, arruinando os proprietários de cana ou forçando-os a juntarem-se à produção ilegal. A desconfiança generalizada em relação ao Grogue faz o produto perder mercado tanto no país, entre as classes mais abastadas e no mercado do turismo, como não consegue atingir o seu potencial enquanto produto de exportação para o mercado étnico das comunidades na América e na Europa. Perdem os proprietários, perde o Estado com a produção ilegal, não tributada, e perdem os exportadores.
A distribuição não regulada, por outro lado, tem consequências sociais graves pelo impacto directo nas famílias, na produtividade do trabalho, nos custos das estruturas de saúde e nas demandas feitas ao sistema de segurança para pôr cobro aos tumultos causados pelo uso excessivo do álcool. Fica evidente que aceitar-se que se venda, em todo o lado, cálices de grogue por 10 escudos, ou que se deixe generalizar misturas adocicadas para disfarçar o mau gosto do grogue e atrair jovens mulheres a bebidas fortes, não traz quaisquer ganhos ao País. Em vez de criar trabalho e gerar divisas com exportações, a produção do Grogue destrói pessoas, compromete a produtividade nacional e onera o Estado. É tempo de se agir inteligentemente, mas resolutamente, para regular o sector e pôr cobro ao problema.
A intervenção qualificada do Estado num economia pequena e insular como a caboverdiana pode ser um factor importante de crescimento. Desde logo pelo facto da própria presença do Estado através dos salários pagos, serviços prestados, bens e serviços comprados, fluxo de pessoas induzidos e eventos criados afectar tudo à sua volta. Modular o impacto do Estado de forma a que, designadamente, favoreça a concorrência entre empresas, contribua para uma maior qualidade nos produtos e serviços prestados, e incentive a emergência e desenvolvimento de novos mercados deve constituir uma parte importante das medidas de política económica do Estado. As opções de descentralização, o modelo de aprovisionamento de bens e serviços, as formas adoptadas na prestação dos serviços do Estado e mesmo a organizações de eventos públicos devem ter em devida consideração o peso e a influência que a acção do Estado poderá ter nas pequenas economias das ilhas, para melhor as potenciar.
O sector energético é um sector a pedir uma intervenção qualificada do Estado. Uma intervenção que vá além da simples procura de financiamento para formas convencionais de produção de energia e água. Ou fique por acções, também financiadas do exterior, como é caso das entregas mediatizadas de lâmpadas de baixo consumo.
Onde estão as outras medidas de promoção da poupança nos consumidores? Se a tendência do futuro – futuro que já foi o presente poucos meses atrás no preço de petróleo a 145 dólares - é do aumento do preço dos combustíveis fósseis sob o impulso da procura, como ficar pela actual política de preços de combustível? O objectivo parece ser, tão somente, proteger o orçamento do Estado de choques futuros. Quando o que importa, agora e no futuro, é modelar comportamentos dos consumidores, consentâneos com a inevitabilidade do aumento dos combustíveis, logo que a economia mundial saia da recessão actual.
Por outro lado, como não criar possibilidades de emprego com novos mercados criados pela regulação do sector energético. Uma decisão, por exemplo, de favorecimento de colectores solares térmicos para a produção de água quente para hotéis, blocos de apartamentos e outros edifícios em detrimento de termoacumuladores eléctricos criaria espaço para o surgimento de empresas de montagem, instalação e manutenção dos colectores. Ganhar-se ia em novos empregos e na poupança de energia com proveito directo para os consumidores, para os fornecedores de energia e para a balança de pagamentos do País. No mesmo sentido ir-se ia com acções de política dirigidas para instituir a certificação energética dos edifícios.
A grande oportunidade que poderá abrir-se ao País está num comprometimento forte, sério e abrangente no domínio dos biocombustíveis, particularmente do biodiesel a partir da purgueira. A purgueira, jatropha curcas, é uma planta decididamente adaptada em Cabo Verde cujo óleo já fez parte da economia das ilhas como produto de consumo local e de exportação. Das plantas oleaginosas é a que mais se pode retirar óleo: até 40% da sua massa. Depois de um processo de refinação que é fundamentalmente de transesterificação, o óleo resulta em biodiesel e glicerina. O biodiesel pode ser misturado com o diesel num blend a diferentes percentagens. Na Nova Zelândia, em Fevereio deste ano, fez-se mesmo a experiência de misturar 50-50 o biodiesel da purgueira com o Jet Fuel para operar um dos reatores de um Boeing 747-400.
Com uma capacidade de produção por colheita e por hectare de cerca de 1800 litros de óleo, a purgueira a pode ser a cash crop que o mundo rural caboverdiano, há muito tempo, procura. Dá-se muito bem em zonas semi-áridas e de terrenos marginais e não compete com as plantas alimentares. Importa neste momento é que se crie um mercado para o óleo da purgueira.
E isso faz-se definindo por lei a percentagem do diesel em Cabo Verde que deverá ser biodiesel. A exemplo da Directiva da União Europeia de 2003 que aponta para uma percentagem de biodiesel de 5.75 % na Europa até 2010 e de leis noutros países que estipulam percentagens muito mais elevadas de 20%. Com isso, grandes ganhos podem ser vislumbrados: ganho para os agricultores e para a população rural; ganho para o país porque haveria menos importações de combustíveis fósseis; ganho para o ambiente com um combustível menos poluente. Ganhos futuros em vendas de crédito de carbono.
Acordos público-privado do género do que foi assinado na semana passada com a GeoCapital denota o interesse dos poderes públicos. Mas há que agir de forma decidida para criar espaço para o biodiesel, a partir do óleo da purgueira, no mercado global do diesel em Cabo Verde, avaliado em mais de 96 mil toneladas e um total de 11 milhões de contos.
No mundo globalizado de hoje ganhos importantes vão para quem consegue ver as tendências a emergir e posicionar-se para as explorar. Os empregos novos assim criados têm maior possibilidade de sustentabilidade a prazo. Para o País, saber antever o futuro e adaptar-se rapidamente ás suas exigências pode ser a fórmula ganhadora. Nessa perspectiva, mais do que talvez a formação profissional , uma grande qualidade no ensino das ciências, da matemática e das línguas no nível básico e secundário parece mais vantajoso. Uma base sólida permite que rapidamente as pessoas adquirem novas qualificações e mudem de profissão, conforme a dinâmica do mercado.
É matéria para se continuar a reflectir.
Publicado pelo jornal A Semana de 8 de Maio de 2009
Subscrever:
Mensagens (Atom)