John Adams, o 2º presidente dos Estados Unidos e um dos pais
fundadores da república, em 1787-88, avisou num dos seus escritos que gritos
de gratidão têm enlouquecido mais
homens e estabelecido mais despotismos no mundo do que todas as outras causas
possíveis. Mais avisou que líderes
políticos a declararem-se despidos de interesses pessoais e motivados somente
pelo amor pelo povo não constituem garantia de liberdade.
A Africa está repleto de exemplos de como a utilização da
política de gratidão pelos protagonistas da independência tem sido desastrosa. Exigir
gratidão foi a via encontrada para se arrogar o direito ao exercício do Poder
com exclusão de todos. Com isso dividiu-se a sociedade e legitimaram-se
tácticas políticas de exploração de diferenças étnicas, linguísticas e
religiosas. Construíram-se cumplicidades continentais para garantir o
reconhecimento do direito dos heróis da luta anti colonial ao Poder nos seus
países.
Subsequentemente o controle dos recursos naturais e da ajuda
externa serviu para perpetuar a exploração do sentimento de gratidão das
populações. No sistema rentista
instituído, governar passou a significar dar
prendas às pessoas, realizar sonhos das populações, e contemplar grupos seleccionados com
acesso a recursos ou a oportunidades. Actos do governo transformaram-se em rituais
diários de demonstração da generosidade dos governantes e de manifestações de
gratidão das populações, altamente mediatizados via comunicação social,
em especial a televisão.
As consequências vêem-se na história pós independência da
generalidade dos países africanos: Guerra civil, golpes de Estado e atraso
económico indiscutível, particularmente quando comparados com a Coreia do Sul e
Singapura, países que nos primórdios da independência, tinham o mesmo
rendimento per capita do Gana e da
Nigéria. Onde, então, houve luta armada anti colonial a política de gratidão
resultou, quase sempre, em guerra civil. Zimbabwe, Moçambique e Angola são
casos paradigmátios.
A turbulência política na Guiné Bissau é o exemplo mais
recente e notório da verdade nas palavras de John Adams. Trava-se aí uma
variante da guerra civil. De uma primeira fase de eliminação de potenciais ou
imaginários adversários com o massacre dos antigos comandos africanos e outras
figuras guineenses, o PAIGC entrou em intermináveis conflitos internos que
dilaceraram o país. O culto de gratidão pelos combatentes da independência pôs
o destino da Guiné nas mãos deles e tem justificado a sua permanência no Poder,
não obstante a desgovernação de décadas a que sujeitaram o País. O resultado é
que hoje, segundo Aristides Gomes, antigo primeiro-ministro, citado pelo
Público de 9/6/2009, “os políticos
dependem de tal forma do apoio de facções poderosas nas forças armadas que o
país se tornou impossível de governar. As forças armadas não são mais um
exército no verdadeiro sentido do termo, mas uma mescla de várias milícias”.
Nelson Mandela destaca-se de todas as manifestações
despudoradas de ganância de Poder em Africa. Figura central da luta anti-apartheid na
Africa do Sul não se candidatou para mais um mandato após realizar o seu
desígnio de construção de uma democracia multi-étnica, multiracial e
multicultural. O seu gesto teve significado similar ao do general George Washington
que se retirou para a vida civil logo que terminou a guerra da independência. O
mesmo George Washington que, mais tarde, chamado a servir a jovem república
como presidente, retirou-se ao fim do segundo mandato, para que a voz do povo nas urnas tivesse expressão
mais distinta e clara, criando o precedente de dois mandatos universalmente
referenciado.
Robert Mugabe, pelo contrário, é o exemplo acabado de como
um herói da guerra da independência se sente no direito de até destruir o país,
se o seu poder for questionado. Logo após a independência, procedeu ao
aniquilamento de rivais do ZAPU, também combatentes da independência.
Posteriormente desferiu ataques contra a minoria branca destruindo a economia
do país no processo. O espectáculo do Zimbabwe, um país outrora dos mais
prósperos na região, a ser engolido pela hiperinflação, é elucidativo do que
acontece quando reina o despotismo de quem reivindica eterna gratidão pelos
seus feitos no passado.
O mais complicado é a complacência generalizada em relação
aos actos destrutivos de Mugabe. Demonstra o quão muitos se revêem na política
de gratidão. E como as narrativas de vitimação, do esclavagismo e do
colonialismo são instrumentais para a manutenção do Poder em Africa.
Cumplicidades extraordinárias são forjadas no esforço
permanente de controlo da memória pública dos acontecimentos históricos. A
exaltação da luta pela independência e dos seus protagonistas ou heróis caminha
lado com uma leitura oficial e unidimensional da história que a justifica. Por
isso, gera permanentes divisões na sociedade e insiste que o presente seja
sempre visto com os olhos do passado. O País vê-se roubado de coesão social,
capacidade de governança e perspectiva do presente e futuro para que se
eternize o poder dos que se fazem proclamar “melhores filhos”.
Causa alguma estranheza a cumplicidade das antigas
potenciais coloniais na manutenção de narrativas independentistas. E a
deferência demonstrada em relação aos seus protagonistas oficiais. Talvez
resultado de interesses económicos, de complexos de culpa ou, ainda, de
resquícios de paternalismo. Em todos os casos, só os ajudam no controlo da
memória pública e, por essa via, a munirem-se dos meios de manutenção no
governo ou de regresso ao Poder.
Mesmo em situações extremas como as da Guiné-Bissau, em que
se assiste à implosão progressiva do país e a sua transformação num Estado
falhado, não se vai ao fundo do problema. Deixa-se ficar pelas recomendações de
sempre: eleições urgentes e criação de forças de interposição. Insiste-se mesmo
que eleições presidenciais continuem marcadas para o dia 28 de Junho, não
obstante o assassinato recente de um candidato presidencial e de um deputado
proeminente. Espera-se que a realização das eleições restaure a ordem
constitucional. Como se isso fosse possível, tendo em conta a ausência do
controlo civil das forças armadas e de garantias de segurança e, também, a
falta do esclarecimento completo dos assassinatos do Presidente da República e
do Chefe de Estado Maior.
O PAIGC tem mais de dois terços dos deputados desde das
eleições de Novembro de 2008. Vê-se que o país continua nas suas mãos, mas a
Guiné continua sem segurança, sem governo e sem perspectivas de
desenvolvimento. O Presidente Obama no seu discurso de Cairo de 4 de Junho deixou
claro que “só eleições não fazem uma
democracia de verdade”. É preciso, segundo ele, “manter o poder por meio de consentimento, não de coerção; é preciso
respeitar os direitos das minorias e participar com espírito de tolerância e
compromisso; é preciso colocar os interesses do povo e os trabalhos legítimos
do processo político acima do partido”.
Em Cabo
Verde, os acontecimentos na Guiné são vistos num misto de
pena e ansiedade. Pena porque se trata de destruição progressiva de um país próximo,
que em muitos caboverdianos, por uma razão ou outra, traz boas recordações.
Ansiedade porque sempre que a Guiné está na berlinda
põe-se o problema da real herança
histórica do PAIGC. Do que ele foi, o que fez e em quê se transformou. E assim
é, porque, também em Cabo
Verde, há uma pressão constante no sentido do controlo da
memória pública.
Não houve luta armada em Cabo Verde mas
instalou-se um regime de partido único na base de uma legitimidade, adquirida
na guerra na Guiné. Os líderes sentiam-se justificados na gratidão que o povo lhes
devia pela independência alcançada e por terem vertido sangue e demonstrado
livre de interesses próprios. O problema nesta construção ideológica é que se tratava
de história contada, não de história vivida nas ilhas. O controlo
dos elementos da narrativa teria que ser o mais estrito possível para evitar contradições,
incoerências e revelações demolidoras. Daí a “dança” com a Guiné.
É ali que tudo se tinha passado. Dali é que vinha a
legitimidade, mas também podia vir elementos destrutivos. Manteve-se durante
cinco anos a ilusão da Unidade Guiné-Cabo Verde contra toda a evidência da
violenta interna do PAIGC, demonstrada na morte de Cabral. Convinha aos
desígnios do Poder em Cabo Verde. Hoje
esforça-se por determinar uma data para o descalabro da Guiné, para evitar que
a verdade contamine quem ainda reivindica o legado da luta de libertação. Por
isso, uns dizem que foi depois do golpe contra Nino, outros garantem que foi
com o Nino, outros ainda vão ao tempo do Luís Cabral e às valas comuns. A
realidade é que conflitos dentro do PAIGC e as formas sumárias de os resolver vêm
de longe, do Congresso de Cassacá em 1964, como testemunha Amílcar Cabral na
obra “Palavras de Ordem”. Depois da independência, essa cultura política foi
simplesmente extrapolada para o país todo, no quadro do partido-estado.
A preocupação com o controlo da memória pública, após quase
duas décadas de democracia e de legitimação do exercício do Poder pelo voto
livremente expresso, demonstra que políticas de gratidão estão vivas e activas
na sociedade caboverdiana. Há, certamente, quem quer alavancar as suas chances
políticas, cobrando dívidas de gratidão por factos passados, favores prestados
e benesses dispensadas.
Não é estranho a isso a insistência num nacionalismo que se
sustenta mais de lutas de fora do que de vivências de dentro, que vive mais do
passado do que dos desafios do presente e que mais desune do que une. Também
não é estranho que se inculque um sistema de referência onde governos são valorizados
pelo volume de ajuda angariada, a governação fica, muitas vezes, por grandes
gestos sem consequência e a dependência das pessoas é activamente alimentada
pelo Estado. Como também não é estranho que se mantenha o timbre fortemente
partidarizado da acção do Estado, a comunicação social pública dentro da
narrativa libertária e a Educação sob controlo ideológico, actualmente até com inputs directos do Primeiro Ministro
para crianças e adolescentes, em aulas especialmente fabricadas.
Rejeitar a cultura política que elege dívidas de gratidão
como sustentáculo da actividade política é fundamental para a Liberdade, para a
contínua institucionalização do país em direcção ao ideal da boa governança e para que Cabo Verde
deixe de se mirar no passado e projecte o futuro, realçando os valores do
mérito, da criatividade e da capacidade de execução e inovação.
Publicado pelo jornal A Semana de 22 de Maio de 2009
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