Nas últimas semanas, autoridades e sociedade caboverdianas acordaram repentinamente para a violência juvenil. Na sequência de alguns crimes mais mediáticos, indivíduos, famílias e instituições lançaram-se numa espécie de catarse introspectiva à procura de razões pelo que vem acontecendo na cidade da Praia e noutros centros urbanos. O Chefe do Governo, confessou surpresa perante o fenómeno e rapidamente prestou-se a oferecer pistas para o enquadramento da questão. Em entrevista citada pela Inforpress, e registada no portal do governo, o Primeiro Ministro afirmou que “que a sociedade cabo-verdiana está excessivamente partidarizada e que o discurso dos partidos e dos políticos, pela sua agressividade, têm contribuído para aumentar o nível da violência na sociedade cabo-verdiana”. Questionado sobre o papel do Governo, o PM apressou-se a dizer que o executivo tem cumprido o seu papel, mas cabe às outras entidades (…) assumir as suas responsabilidades no combate à violência. Reacção típica! Sempre que o Governo é confrontado com algum problema liga a ficha da desresponsabilização. Aponta o dedo a outros, jura que está a fazer o seu melhor e exige que os governados assumam as suas responsabilidades. Aconteceu recentemente com a epidemia da dengue. Enquanto autoridade máxima da saúde esquivou-se em assumir a responsabilidade pela não tomada de medidas atempadas para a evitar. Isso não o impediu de culpar as câmaras municipais, ao mesmo tempo que fazia apelo a não politização da questão como forma de calar críticas à sua actuação. Comportamento similar tivera perante manifestações de insegurança da população. Nesse caso os culpados eram os “excessos garantísticos da Constituição da República” ou os tribunais e juízes que se recusavam a cooperar com a polícia na luta contra o crime. Um combate, segundo um governante, que não se compadecia com questões sebentárias do tempo da universidade. Nesse mesmo comprimento de onda, as culpas pelo elevado desemprego entre os jovens já os foi atribuído – não querem trabalhar - assim como também se procurou responsabilizar o sector privado nacional e os empresários pela insuficiente dinâmica do País. O Governo salva a si próprio, repetindo incansavelmente que já fez a sua parte e que não tem nada que assumir se os resultados da governação ficarem aquém do prometido. Nas acções de desresponsabilização do Governo um alvo é repetidamente fustigado: o pluralismo. Atribui-se aos partidos e aos políticos a responsabilidade pela crispação, a violência e a intolerância. Na entrevista, citada pelo Inforpress, o Primeiro Ministro defendeu que é preciso uma avaliação das atitudes, dos discursos e dos actos dos políticos, no sentido de se poder “valorizar mais a vivência democrática” no país, combatendo a “violência que existe na sociedade cabo-verdiana”. O problema é que quem faz essas declarações é um político e é o presidente do partido no Poder. É evidente que não está a fazer mea culpa ou a autoflagelar-se. O mais provável é que esteja engajado numa ofensiva contra outros partidos, contra outras opiniões e contra o direito de se exigir responsabilidade aos governantes. Só assim se compreende a mensagem passada que se o governo se submeter ao contraditório e a opiniões contrárias, a sociedade corre o risco de ver aumentada a violência no seu seio. O Artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelece que a garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública, Mas que (…) essa força pública é instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada. Ou seja, ao Estado dá-se o monopólio de violência. Mas essa violência só é legítima na defesa dos direitos dos indivíduos e enquanto servir o interesse geral. O Estado caboverdeano é um Estado fraco. Mas não é fraco por falta de recursos para o exercício da autoridade. Tem recursos suficientes. O que lhe parece escapar é legitimidade completa aos olhos da sociedade. A legitimidade que deriva da percepção geral de que o exercício do Poder serve, a todo o momento, o interesse público. E que está a ser ganha todos os dias a luta contra as tentações de se deixar instrumentalizar para atingir objectivos partidários, de se omitir ou de se intrometer em vários sectores para salvaguardar interesses particulares e de deixar-se arrastar para o fundo num mar de ineficiência e de ineficácia, sob o peso de nomeações políticas, de ambições incontroláveis e da incompetência decorrente da reivindicação de legitimidades outras, que não a democrática. Quando, como no caso grave do Zimbabwe de Robert Mugabe, não se vence diariamente essa batalha o resultado é a desgovernação, a crispação extrema da política e a violência social generalizada. No caso extremo da Somália tem-se um Estado falhado. O artigo 1º da nossa Constituição é peremptório quanto ao que é essencial para a perenidade da comunidade de homens livres: “o fundamento da Paz e da Justiça encontra-se no respeito pela dignidade humana e no reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos do Homem”. Por tudo isso vê-se que é de extrema gravidade sugerir que, de alguma forma, a violência juvenil no País resulta da aplicação dos princípios que consubstanciam e norteiam a existência do Estado de direito democrático, como o pluralismo, a subordinação do Estado á Constituição e às leis e a liberdade de expressão e de informação. O Estado tem a obrigação central de assegurar a ordem e a tranquilidade públicas para poder garantir a Liberdade. Não pode passar a ideia de estar a perder batalhas contra o crime, omitindo-se no que obviamente são intervenções preventivas incontornáveis. Em três áreas, particularmente, o Estado caboverdeano vem pecando ao longo dos anos por falta de políticas consequentes: consumo da droga, consumo do álcool e o comércio de armas: Na droga, não confrontou o problema da cocaína barata, chamada popularmente de pedra, mas conhecida em todo o mundo como crack, e a sua ligação como os casso bodi. Os efeitos do crack são efémeros, mas fortes e altamente viciantes. Duas experiências com a droga podem ser suficientes para se tornar num tóxico-dependente, vendendo tudo, e mais, para alimentar o vício. A não assunção do que noutros países se chamou de epidemia de crack foi grave. Famílias ficaram por saber o que de facto afligia os filhos. A comunicação social tardou em passar a mensagem que se consumia uma outra droga, mais perigosa do que a padjinha. Redes de receptadores consolidaram-se nas ilhas para comercializar o produto das vendas de mercadorias roubadas. O grogue, mau e barato, disfarçado em caipirinhas, pontches, licores e estomperódes, tornou-se bebida de eleição dos jovens nos meios urbanos e também rurais do País. Disponível para consumo em mercearias, bares e balaios de vendedeiras de rua, e preferido por muitos pelos seus efeitos intoxicantes imediatos, o grogue falsificado tem conhecido um boom extraordinário. A produção cresceu muito e, na ausência de um esforço dirigido do Estado para pôr cobro à situação, também aumentaram exponencialmente os prejuízos causados. Os produtores do bom grogue sucumbiram no combate desigual, assim como também perderam o Tesouro, em receitas não cobradas, e o País, em exportações não realizadas, por incapacidade de colocar em mercados externos um produto de qualidade garantida. O alcoolismo, engendrado pela ausência de regulação, tem, por outro lado, provocado a sobrecarga dos serviços de saúde, a destruição de famílias, o corte a meio de vidas e carreiras e a diminuição da produtividade nacional em horas de trabalho perdidas. Certamente que não é estranho às explosões de violência juvenil o facto de se tolerar o comércio e o consumo ilegais de produtos, crack e mau grogue, indutores de alterações de comportamento. Particularmente, quando as leis e as autoridades são permissivas em relação ao acesso e porte de armas e é mínima a pressão social ou de grupo para não se andar armado e não ameaçar outros, brandindo armas. A experiência dos outros mostra que a proliferação de armas na população aumenta a probabilidade do seu uso para resolver conflitos pessoais e cometer crimes. A Polícia Nacional, segundo estatísticas oficiais, até 2008, apreendeu 1.961 armas (1.283 pistolas, 488 revólveres e 190 espingardas), sendo 8% de fabrico artesanal, os chamados boca bedjo. E pode ser só a ponta do icebergue. O Estado caboverdiano precisa passar à ofensiva e cobrir os flancos que tem deixado abertos no domínio da droga, do grogue falso e do porte de armas. É urgente que o governo faça avançar leis para controlar a venda, porte e uso de armas de fogo e de outros instrumentos letais. A questão do grogue tem que ser resolvida a bem da economia rural de muitas regiões do país, a começar pela ilha de S.Antão, mas com ganhos globais para os proprietários de cana, os produtores de grogue, os exportadores, e os consumidores. Na luta contra a droga não se pode descurar as interligações internacionais do tráfico mas deve-se procurar transformar as desvantagens da insularidade em vantagens, imprimindo uma maior flexibilidade à actuação das forças da ordem. Para o sucesso no combate ao crime e á violência não pode haver dúvidas sobre o seguinte: O pluralismo, a tolerância e a vivência democrática dependem muito da subordinação, sem ambiguidades, do Estado à Constituição e às Leis. E capital social necessário para controlar paixões, introduzir propósito alargado nas actuações individuais e justificar sistemas de compensação baseado no mérito emerge naturalmente do exercício da cidadania plena e da aquisição de cultura cívica. A nossa sociedade tem tensões de origem múltipla e a nossa esperança em as resolver reside em aprofundarmos cada vez mais a institucionalização da nossa democracia. Não em a denegrir e minar com tentativas de fuga à responsabilidade.
1 comentário:
Gostei do artigo. Duas questões:
1. Como acha que se resolveria o problema da violência juvenil?
2. Onde foi buscar o: Duas experiências com a droga podem ser suficientes para se tornar num tóxico-dependente, vendendo tudo, e mais, para alimentar o vício.? Consegue prová-lo?
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