Expresso das Ilhas, edição 662 de 6 de Agosto de 2014
Editorial
A ministra da
Administração Interna repetidas vezes nas suas intervenções durante o debate
sobre o estado da Nação confessou-se adepta entusiástica da “honestidade
intelectual”. A impressão geral, porém, que não essa é a atitude que
propriamente caracteriza o debate público em Cabo Verde. O uso da propaganda, a
exploração de sentimentalismos diversos, as incursões feitas na demagogia pura
e dura não permitem que, do confronto de ideias na esfera pública, o país
reconheça os seus reais problemas, identifique os desafios a vencer e
colectivamente encontre a via da prosperidade, na liberdade e com dignidade. Os
sucessivos apelos do presidente da república a que os actores políticos falem
verdade ao país evidenciam o muito que se tem desviado da postura responsável
na relação entre os governantes e a população.
Ao longo do
debate sobre o estado da Nação ouviu-se de tudo. O prato maior foi discutir os
anos noventa. O primeiro-ministro e os seus ministros lançaram-se em
interpretações do que supostamente terá acontecido nos dez anos de governação
do partido hoje na oposição. O móbil para esta incursão no passado de há quinze
anos atrás terá sido a preocupação em retirar legitimidade às críticas feitas à
governação de hoje e desqualificar a oposição como alternativa ao governo nas
legislativas de 2016. O problema é que com tal abordagem não é possível
qualquer debate, muito menos um que se possa reivindicar de ser honesta
intelectualmente.
Fale-se em
honestidade intelectual, quando geralmente se reconhece publicamente que há
pontos de vista alternativos, quando se dirige ao argumento e não à pessoa,
quando se consegue aceitar que uma crítica é valida ou tem pontos válidos e
quando se é consistente na argumentação e não se procura distorcer o que diz o
interlocutor ou o adversário para melhor o puder vencer aos olhos dos outros.
Há quem entenda a política como negação de tudo isto. Mas a verdade é que o
sistema político por ser uma democracia e basear-se no pluralismo, na livre
expressão de ideias e no consentimento dos governados, pressupõe o cumprimento
de uma série de regras para se manter dinâmico e com capacidade adaptativa. Por
exemplo, a quem é dado mandato para governar, exige-se um grau elevado de
responsabilidade, transparência e de verdade na condução das questões públicas
e não se lhe aceita que por qualquer via procure impedir a emergência de
soluções alternativas de governação. Quando não se cria uma cultura de
cumprimento das regras procedimentais da democracia, o Poder tende a descair
para o autoritarismo, a tornar-se autista e a socorrer-se cada vez mais da
propaganda para se comunicar.
Os partidos
políticos têm um papel fundamental na criação da vontade política.
Distinguem-se entre si nas opções político-filosóficas, na sua visão do futuro
do país e na forma como interagem com a sociedade no processo de influenciação
e mobilização de vontades. São normalmente marcadas pelo momento histórico que
lhes deu origem, mas ninguém os quer presos ao passado. Portadores de uma
ideologia própria que os identifica e distingue não, se espera deles a
honestidade intelectual exigida na academia e aos “homens livres”. Mas também
não devem cair no extremo oposto do cinismo e hipocrisia que impossibilita
negociações e acordos e mantem a sociedade em estado de permanente crispação.
O programa
eleitoral e o programa do governo são os dois principais componentes do
contrato firmado com o eleitorado e para o cumprimento do qual se lhes atribuiu
um mandato. Os partidos devem, sem desvios e subterfúgios, serem fiscalizados
pelo cumprimento das promessas gerais que foram feitas. Não há lugar para
frases do tipo “o governo não pode fazer
tudo e por isso o povo deve ser paciente e desculpar as falhas ainda existentes”.
Ou então, “o governo já fez a sua parte e
não tem culpa de que os outros,as empresas, os trabalhadores e as famílias não
estejam a colaborar”. Devem cumprir o prometido, nem mais, nem menos. Não
podem é falhar nos objectivos e de seguida forçar o país a aceitar os
resultados obtidos como os únicos possíveis. Também não podem
desresponsabilizar-se perante a falta ou o desvio da iniciativa e energia das
pessoas para se atingir objectivos colectivos com o argumento de terem feito a
sua parte. Governa-se é com os olhos postos em objectivos globais da
comunidade. Ao governo dá-se instrumentos e recursos para fazer convergir
vontades na consecução desses objectivos. Fracassos têm que ser assumidos por
quem de direito. Honestidade intelectual e responsabilidade política assim o
exigem. A questão de segurança, por exemplo, que tanto preocupa os
cabo-verdianos devia ser dos sectores em
que a postura honesta de todo o sistema envolvido poderia ser crucial para se
obter a confiança e a participação de todos, em particular das comunidades nos
bairros e para que “paz e tranquilidade” em Cabo Verde fossem o ouro e o
diamante que o poeta cantou.
Cabo Verde entrou
numa nova fase como país de rendimento médio a partir de Janeiro de 2014. O
contexto internacional adverso, o crescimento raso da economia nacional e o
desemprego elevado conjugam-se para tornar a transição mais difícil e
complicada. Devia-se esperar que esta realidade prenhe de consequências tivesse
a merecida atenção no debate. Não aconteceu. Uma discussão intelectualmente
honesta teria levado todos lá facilmente.
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