sexta-feira, março 20, 2015

Pela clarificação dos salários dos políticos

A perspectiva de aprovação de um novo estatuto dos titulares dos órgãos de soberania tem sido nas últimas semanas matéria de discussão e controvérsia em artigos de jornal, debates na rádio e televisão e de conversas de café. Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade da iniciativa legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de questionamento que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os deputados e o Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da oposição são os mais visados.
Sente-se em círculos mais mediáticos em Cabo Verde um certo cansaço em relação à democracia, ao modelo de representação política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se queixas de crispação política, de bipartidarismo e da inutilidade do Parlamento. Reclama-se mais consenso, menos exercício do contraditório e menos partido. Aparentemente esses sintomas do que se podia chamar um mal-estar democrático em Cabo Verde são similares aos notados nas democracias avançadas, designadamente as europeias. Na realidade diferem porque as causas, a cultura política subjacente e o contexto são outros.
Na Europa a crise de confiança nos políticos e no sistema político ganhou expressão na gestão da crise que mostrou governos nacionais quase impotentes, primeiro perante os mercados financeiros e depois perante a Troika. Os cidadãos sob o impacto das medidas de austeridade não se sentem devidamente representados nos parlamentos e olham com desconfiança para as elites partidárias do “arco de governação” como cúmplices da banca e dos burocratas da União Europeia em salvar um status quo que favorece os poderosos em detrimento do homem comum. Mas ninguém na Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o governo e de o forçar a prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma fiscalização efectiva da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que configuram cedência excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.
Em Cabo Verde é diferente. Muito do desencanto com o Parlamento e das críticas ao sistema político e aos políticos vem da percepção de conflitualidade ou crispação política entre o governo e as forças da oposição. E é interessante notar que esse sentimento tende a favorecer o governo e a ser mais hostil para com a oposição, tomada como conflituosa, não colaborante e ávida do poder. Compreende-se em parte que assim seja se se considerar que a democracia cabo-verdiana é jovem de quase 25 anos e ainda procura libertar-se dos resquícios anti-pluralistas do salazarismo e do regime de partido único.
A proposta de um novo estatuto para os políticos trouxe outra vez à baila esse azedume contra o Parlamento e contra os deputados. Podia-se pensar que a culpa é da conjuntura difícil em que a falta de dinâmica económica, o desemprego e as fracas perspectivas no sector privado focaliza ainda mais a atenção de todos nos recursos, acessos e favores do Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em 2006, no tempo das vacas gordas, quando uma proposta do governo de aumento salarial encontrou resistência na sociedade e acabou por ser inviabilizada no Parlamento pelo MpD.
A matéria de ajustamento salarial do presidente da república, primeiro-ministro, ministros, deputados e juízes parece despertar em muita gente o gosto pela demagogia barata. E nem se pode dizer que por detrás disso há uma preocupação legítima quanto aos custos. Devia ser evidente que a perda do poder de rendimento real desde o último ajustamento de 1997 está de algum modo a ser compensada. Só que de uma forma não transparente e eventualmente comprometedora da relação de equilíbrio entre os diferentes órgãos de soberania.
O Governo que tem a responsabilidade directa de gestão dos recursos do Estado sai reforçado nesse tipo de relações. Por exemplo, pelo decreto-lei 8/2008 pôde unilateralmente melhorar de forma significativa as condições de vida dos magistrados, dos membros do governo e de outras entidades militares e policiais. Noutras leis estendeu benefícios na compra de carros a certas categorias profissionais. Mesmo na administração pública que não tem os salários indexados aos dos titulares dos órgãos de soberania e tem beneficiado de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer de contratos de gestão para altos funcionários com valores superiores ao salário do presidente da república. Se considerarmos os salários praticados no Estado em sentido lato, empresas públicas, agências reguladoras e institutos públicos, os valores em causa são ainda muito maiores.

Enfraquecidos neste sistema fica o Parlamento que fiscaliza o governo e o presidente da república que modera todo o sistema político. Para a garantia de um poder judicial independente, um dos pilares fundamentais do Estado de Direito democrático, não convém que a manutenção do nível de rendimento e do bem-estar dos magistrados dependa só da iniciativa do governo. Por tudo isso é fundamental que se restaure a transparência nos salários da classe política por forma a que a actividade política seja suficientemente atractiva para todos os que aspiram a servir na tarefa dura e exigente de desenvolver Cabo Verde.

  Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Março do 2015 

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