A Constituição democrática de Cabo Verde entrou em vigor no dia 25 de Setembro de 1992. Dezassete anos já tinham decorrido desde o dia da independência a 5 de Julho de 1975, quinze anos dos quais sob o regime de partido único. Com a Constituição de 1992, Cabo Verde consagrou-se como Estado de direito democrático tendo como fundamento o respeito absoluto pela dignidade humana. Os cabo-verdianos passaram a ser cidadãos de corpo inteiro na sua própria terra, livres para se exprimirem, livres para escolherem quem os pode governar e livres para escolherem como podem ser felizes e prosperar. É estranho que um dia com tanta consequência não seja celebrado devidamente.
Vários países do mundo registam com solenidade o dia de adopção da Constituição, nalguns casos até como feriado nacional. A Espanha tem o seu dia da Constituição referente a 6 de Dezembro de 1978 que marca o fim do franquismo e Portugal tem o 25 de Abril que acumula o simbolismo da revolução contra a ditadura, das primeiras eleições livres e plurais e da entrada em vigor da Constituição de 1976. Outras democracias da chamada Terceira Vaga, em particular os que se libertaram de regimes totalitários e autoritários na sequência da queda do Muro de Berlim comemoram o dia em que se juntaram a outras nações na consagração dos valores da liberdade, da democracia e do primado da lei. Em Cabo Verde em anos anteriores já houve pontualmente iniciativas designadamente da Presidência da República, da Assembleia Nacional, de partidos políticos e de universidades a marcar a data, mas nada está institucionalizado.
O Parlamento que devia assumir-se como ponto focal da celebração da Constituição, recusa-se sistematicamente a esse papel. Não o faz no dia 13 de Janeiro, Dia Nacional da Liberdade e da Democracia e muito menos se disponibiliza para isso nos aniversários da entrada em vigor da Carta Magna do país. Em Espanha, por exemplo, nos dias anteriores ao feriado da Constituição, entre outras actividades, as escolas dedicam tempo especial a introduzir as novas gerações no estudo da Lei Fundamental do país. Em Cabo Verde, pelo contrário, nos feriados privilegiam-se referências à luta de libertação na Guiné-Bissau com base quase exclusivamente em elementos da historiografia oficial do PAIGC/PAICV. Nas comemorações dos 40 anos de independência, que se vêm arrastando meses a fio, o grosso das actividades tem sido dedicado à homenagem dos “libertadores” e dos protagonistas do regime de partido único que eufemisticamente se passou a chamar de “construtores do Estado”. Perante o paradoxo evidente de o Estado constitucional privilegiar nos seus actos públicos a homenagem a figuras de um regime nas antípodas da democracia é de se perguntar qual é, de facto, o nível de comprometimento das instituições estatais com os princípios e valores da Constituição de Cabo Verde.
O Estado que hoje se tem em Cabo Verde foi construído seguindo elementos referenciais que estão na Constituição de 1992, designadamente os de separação de poderes, da legitimação do poder pelo voto livre e plural, do respeito e garantia dos direitos fundamentais, da independência dos tribunais e da autonomia do poder local. Deverá continuar a evoluir e a consolidar-se seguindo esses princípios fundacionais. A realização das expectativas dos cidadãos de ter um Estado cada vez menos partidarizado, mais respeitador dos direitos fundamentais e da legalidade e com uma cultura de serviço público voltada para a eficiência e eficácia na relação com os utentes vai depender da atitude de todos os partidos e dos cidadãos no que respeita ao contracto social consubstanciado na Constituição da República. Essencial para isso será garantir a aceitação por todos das regras do jogo democrático, evitar ambiguidade ou ambivalência em relação aos seus princípios e valores e assegurar-se que a narrativa que a justifica é a do abraçar da liberdade e dos valores civilizacionais como a igualdade perante a lei, igualdade de oportunidades e o pluralismo enquanto motor da dinâmica social, económica e política. Seguir um outro caminho leva a ineficiências graves, crispação política e alguma incapacidade de gerar alternativas de políticas e de governação.
Nas democracias, os rituais à volta do processo de eleições, de transferências de poder, de responsabilização política e de confirmação da independência do poder judicial são essenciais para manter alto o nível de confiança no sistema. Nessas democracias os partidos chamados do “arco da governação” mostram-se especialmente comprometidos com o regime constitucional. Podem ser ferozes opositores entre si, mas tacitamente revelam-se unidos na defesa das regras do jogo democrático. Feriados nacionais e outros momentos carregados de simbolismo nacional são usados para confirmar essa defesa intransigente de regime democrático. Em Cabo Verde não deveria ser assim?
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Setembro de 2015
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