Seis meses após o início do mandato, o governo parece estar “sitiado”, pressionado por exigências de cumprimento de promessas, por especulações sobre possíveis remodelações ministeriais e por acusações de favoritismo e clientelismo. Também alvo de críticas é a aparente omissão em questões importantes como alterações de tarifas de água e energia e eventualmente dos transportes marítimos e outras cruciais como o futuro da TACV e do Programa Casa para Todos. Por outro lado, a persistente sensação de insegurança não ajuda. No global sente-se um desconforto que a se generalizar pode minar a confiança e o entusiamo logo no início do mandato.
Para o governo, contrariar isso tudo não é fácil especialmente quando a situação do país coloca particulares desafios. Com a dívida pública nos 121% do PIB e o crescimento económico só agora, neste ano, a ganhar alguma dinâmica depois de cinco anos de uma economia praticamente estagnada, não se vê com muito espaço orçamental para acomodar certas situações e contornar outras. Muito menos para investir de forma inovadora para abrir caminho e libertar-se da armadilha do fraco desempenho da economia acompanhado do alto desemprego em que o país tinha caído. Apesar desses constrangimentos de partida, o facto é que o governo ainda está no início. Seis meses correspondem simplesmente a um décimo do tempo do mandato de cinco anos. Muita coisa vai acontecer, muita obra poderá ser realizada e muitos dos objectivos prometidos serão certamente atingidos. Para isso porém é preciso uma comunicação permanente com o país e com a sociedade cabo-verdiana, que mantenha a confiança, que permita às pessoas gerirem as suas expectativas e que incentive à mudança de atitude sem a qual dificilmente se poderá garantir a sustentabilidade do desenvolvimento do país.
É um facto já constatado por muitos outros que as eleições não são só sobre o candidato, mas fundamentalmente sobre a visão que se tem do presente e futuro do país, a diferente perspectiva de como abordar a realidade complexa que foi legada e as escolhas dos caminhos a serem trilhados para atingir os objectivos prometidos. O sucesso de quem recebeu o mandato para governar certamente que irá depender bastante da capacidade em ter sempre presente na comunicação com a sociedade a narrativa que inspirou o eleitorado e que lhe permite compreender a cada passo a actuação do governo. Mas não só: terá que agir com coerência e foco de forma a confirmar a narrativa que mobiliza as vontades e permite a gestão sem grandes sobressaltos das expectativas da população no curto, médio e longo prazo, tanto ao nível pessoal como dos grupos sociais. A opção por uma postura tecnocrática ou que minimiza a abordagem política não deixaria de causar dificuldades acrescidas com quebras de eficácia na governação, perda de capital político necessário para as grandes reformas e impotência progressiva no combate aos interesses que se opõem a mudanças de políticas.
Os últimos quinze anos de governo do PAICV ilustram bem a importância das narrativas. Foram marcados pela grande narrativa da Agenda de Transformação que incluía entre os seus elementos a criação dos Clusters, o programa das infraestruturas, o ressurgimento do mundo rural com as barragens e o programa Casa para Todos. Hoje todos sabem no que isso resultou: os clusters ainda estão por emergir, o programa de infraestruturas não resolveu os problemas de comunicação nem melhorou a competitividade do país, o mundo rural não diminuiu a sua vulnerabilidade e o programa Casa para Todos deixou dívida pesada e pôs de rastos o sector nacional de construção civil e de imobiliária.
Durante todos esses os anos, a narrativa da Agenda de Transformação deu coerência à governação, permitiu fixar e mobilizar apoio político e combater os adversários políticos. Querendo ou não reconhecer acabou por moldar o país designadamente no que respeita à atitude das pessoas, à postura das instituições e à natureza das expectativas. Eventualmente, o insucesso acabou por forçar uma mudança, não significando isso, porém, que simplesmente se desintegrou. Se não for efectivamente contrariada e substituída por uma nova narrativa, a sua persistência na sociedade e nas instituições pode constituir um entrave sério à implementação de novas políticas e à criação de condições para se colocar o país num outro patamar de desenvolvimento.
Um dos obstáculos à afirmação da nova narrativa é a timidez que se nota em fazê-la passar. Contrasta fortemente com a forma sistemática e até com truques de ilusionismo com que anteriormente se sustentou a chamada Agenda de Transformação. À timidez existente veio aliar-se, nos tempos actuais, uma certa relutância em assumir uma ideologia e defender princípios, valores e opções com coerência, decência política e respeito pelas regras. Como se vê no caso de Trump na América e de outros populistas na Europa isso deve-se em boa parte à pressão anti-política e anti-partido que nos dias de hoje o activismo nas redes sociais, e vários movimentos populistas nas democracias, vem colocando sobre os partidos políticos deixando-os á mercê do carisma do chefe “que tudo pode e tudo resolve”.
Há que ultrapassar este mau momento, que ameaça despir os partidos de uma identidade própria, do seu legado e os impede de manter narrativas coerentes, mas diferenciadas, tão fundamentais ao pluralismo e à democracia. Sem falar na fragilidade existencial que em caso de derrota e perda de poder pode revelar-se repentinamente, como está a acontecer actualmente no PAICV, e que enfraquece ainda mais a democracia.
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