As eleições presidenciais americanas vão ser já na próxima terça-feira, dia 8 de Novembro. O mundo inteiro aguarda com ansiedade o que poderá ser o resultado do embate entre Hillary Clinton e Donald Trump. É evidente que para a generalidade das pessoas fora dos Estados Unidos uma vitória de Trump teria consequências imprevisíveis e globalmente negativas. Entre os americanos as opiniões dividem-se a tal ponto que a eventual vitória de Hillary pode estar por um fio, não obstante o apoio editorial dos principais jornais, o engajamento na campanha de celebridades das artes e do mundo empresarial e as declarações de suporte de académicos, colunistas e de personalidades tradicionalmente ligadas ao partido republicano. Pelo que está em causa nesta eleição, e considerando os tempos de particular tensão militar em certas regiões do globo, de ameaça do terrorismo e dos desafios que a fragilidade do crescimento económico está a colocar às democracias, parece justificar-se, o que a miúde se diz, meio a brincar, que todos no mundo deveriam poder votar na eleição do presidente americano.
A vitória provável de Hillary Clinton não será porém suficiente para aquietar muito do desassossego entre os defensores da democracia provocado pela emergência e afirmação do fenómeno Trump na política americana. Outras democracias já têm movimentos políticos que, como o de Donald Trump, apostam no medo, na xenofobia e no ressentimento. Podem não ter o mesmo peso, mas servem-se dos mesmos meios. Usam a mentira, a violência verbal e a manipulação de paixões primárias para hostilizar partidos políticos tradicionais, questionar instituições democráticas e esvaziar os princípios e valores de tolerância religiosa, da livre expressão, do pluralismo e do Estado de Direito. Nos Estados Unidos os estragos para a democracia já são evidentes: fala-se no colapso ou implosão do partido republicano; Trump já deixou entender que pode não aceitar os resultados eleitorais em caso de derrota; e tem-se como certo que o nível de obstrução dos trabalhos do Congresso irá atingir novos limiares se os republicanos conservarem a maioria na Casa dos Representantes e no Senado. Com os últimos desenvolvimentos despropositados sobre os emails de Hillary apercebe-se que nem o FBI consegue estar acima da pressão raivosa dos partidários de Trump.
Diz-se que actualmente a democracia está em crise, que os partidos políticos não são mais representativos e que a política como arte do possível ou “arte de tomar decisões em contextos condicionados” nas palavras do académico Daniel Innerarity, já não consegue enfrentar os desafios do mundo moderno. Para alguns a alternativa para a crise surge então em se encontrar figuras como Trump e outros tantos que se assumem acima da política, acima dos partidos e que vão deixando avisos que poderão não se deixar emaranhar pelas leis e valores existentes para “erguer muros contra estrangeiros, registar pessoas com certas religiões, normalizar o uso da tortura e até prender adversários políticos”.
Tais figuras encontram normalmente respaldo entre aqueles que não acreditam na retoma da economia e na diminuição das desigualdades e entre os que se deixaram frustrar pelas dificuldades em mudar a agenda política apesar da ilusão de empoderamento criada pelas redes sociais. Curioso que, não obstante a retórica anti-partido, é só com a conquista da liderança dos partidos que conseguem dar o salto para o plano nacional e daí para o governo. Mesmo chegados lá não abdicam de se apresentar acima do partido, de expor os seus defeitos de falta de representatividade, de elitismo e de clientelismo e de insistir na imagem do líder como outsider e como puro e autêntico até se chegar ao ponto de culto de personalidade sem precedentes na democracia.
Os partidos põem-se a jeito para serem praticamente assaltados quando, na ânsia de responder às críticas de falta de abertura à sociedade, adoptam processos de escolha da liderança através designadamente de primárias e outras formas descentralizadas de selecção de dirigentes, consideradas mais democráticas. A propósito desta opção o cientista político Ian Shapiro diz que “é uma ideia muita errada de democracia, segundo a qual as escolhas por participação directa a fazem mais democrática quando na realidade o que consegue é dar o poder a minorias mais radicais que dentro dos partidos políticos conseguem fazer vencer os seus candidatos”. Quem assim procede até pode ter no início vantagem com a mobilização de paixões e ressentimentos mas a prazo, conquistando ou não o poder, as consequências para o partido podem vir a revelar-se terríveis. Com a candidatura de Donald Trump o partido republicano já está imerso numa crise profunda e há quem preveja que não irá sobreviver mesmo se ganhar a presidência. E não seria nada de novo. A América no século dezanove já assistiu ao fim de um partido, o partido Whig, após a eleição de um seu candidato Zachary Taylor que era tido como um “outsider” e posicionava-se como anti-partido.
Os partidos tradicionais que durante décadas na Europa e em outros países têm sido baluartes da estabilidade democrática estão hoje sob a pressão para darem sinais de maior abertura à participação das pessoas e de mais transparência e honestidade na condução dos assuntos públicos. No esforço de adaptação aos novos tempos o pior que lhes pode acontecer é deixarem-se levar por derivas demagógicas e populistas. A crise actual de muitos deles tem a ver com a forma como lidam com as pressões populistas à esquerda e à direita e dentro da sua própria organização. Subordinar-se ao líder sacrificando o partido, a sua identidade, o seu pluralismo interno e a sua organização no processo pode revelar-se fatal.
Nas democracias a responsabilidade política última é sempre partidária e não do líder. Esta é a realidade que também os partidos caboverdianos, PAICV e MpD, deverão ter em devida conta enquanto preparam os respectivos congresso e convenção nacional. Todos já mostraram terem sido influenciados por movimentações populistas. A fragilidade evidente do parlamento nesta legislatura é uma das consequências. Espera-se que a derrota de Donald Trump no dia 8 de Novembro tenha o efeito de travão em toda esta deriva populista e demagógica que ameaça velhas e novas democracias. O Expresso das Ilhas não vota mas recomenda que todos os caboverdianos eleitores nos Estados Unidos votem Hillary Clinton.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 779 de 02 de Novembro de 2016.
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