sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Despartidarizar não chega

Várias são as razões por que o Estado é hoje foco de tanta atenção. Entre elas está o facto de depois das falhas dos clusters em fazer o take-offprometido e o quase colapso de sectores da economia como a construção civil não se ter por onde escolher para  assegurar rendimento estável e seguro. Os hotéis e o turismo praticamente ainda só absorvem mão-de-obra pouca qualificada não deixando aos mais qualificados e os com ensino superior uma outra solução que não um lugar no Estado. Outrossim, a actual conjuntura de passagem de um governo para outro de partido diferente ao fim de 15 anos abre novas oportunidades de acesso a posições no Estado à medida que os vencedores substituem os vencidos em posições-chave de orientação política do país.
A dança das cadeiras que propicia é motivo de fascínio mas também de frustração e ressentimento. Na competição por lugares esgrimem-se argumentos de partidarização e da despartidarização como se o principal problema da administração pública fosse essa e não as queixas de falta de profissionalismo, as deficiências no serviço aos utentes e a postura de sobranceria da administração pública que particularmente prejudica o ambiente de negócios. Aliás, a questão da partidarização só toma a dimensão já conhecida devido ao papel que o Estado se atribui de gestor dos recursos do país e de dinamizador principal em todos os sectores. Sabe-se que é abusando dessa posição que cai em favoritismos, na criação de clientelas e em tentativas de controlo da população mais vulnerável numa perspectiva claramente partidária.
Os efeitos do controlo da administração pela força política vencedora das eleições teria menos impacto num contexto outro em que houvesse uma estrutura produtiva nacional expressiva, uma classe empresarial mais assertiva, menos desemprego e pobreza e uma sociedade civil autónoma. São esses os factores que, de facto, em todas as democracias, independentemente do modelo adoptado na relação entre o poder político e a administração pública, impede o Estado de ser sequestrado por interesses puramente partidários. Em Cabo Verde, é evidente a centralidade do papel do Estado em todos os aspectos da vida económica, social e cultural. Inicialmente tal centralidade foi consequência da opção inicial pós-independência de estatização da economia no quadro de um modelo de desenvolvimento baseado na reciclagem da ajuda externa. A incapacidade de decisivamente se afastar do modelo de reciclagem nas décadas seguintes, de diversificar a economia e de ganhar capacidade de exportação de bens e serviços permitiu que o Estado conservasse essa centralidade e se mantivesse numa posição cimeira no topo da proverbial cadeia alimentar com todos os sectores da economia e franjas importantes da população na sua dependência.
Mudar o Estado para deixar de promover activamente o assistencialismo e a dependência e encontrar-lhe um novo papel no processo de dinamização da economia que seja de incentivo à iniciativa privada e não de bloqueador ou condicionante do desenvolvimento é o grande desafio que se coloca hoje. Pelas tentativas de reformas fracassadas no passado sabe-se que não será tarefa fácil. A inércia é grande e os interesses no status quo são muitos. É só perguntar quais das 100 medidas propostas com pompa e circunstância pelo governo anterior foram implementadas e quantas tiveram um efeito real e durável nos utentes em termos de custo e tempo e contribuíram para a melhoria do ambiente de negócios como prometido.
O cidadão comum, pela comunicação social, constata no dia-a-dia o frenesim dos anúncios de estudos, de investimentos, de ajuda externa seguidos de encontros de socialização, workshops, mesas redondas e fóruns. A impressão porém é que são eventos que muitas vezes não resultam da estratégia do Estado, mas sim de impulsos vindos de outras entidades ou partes da agenda das mesmas já com financiamento assegurado. Por isso é que parecem esgotar-se em si próprios sem ter continuidade ficando por realizar iniciativas realmente prioritárias por falta de fundos. A aparente dificuldade do Estado em alocar fundos próprios no tempo certo retira muita da eficiência e eficácia que podia ter na implementação das suas políticas. Custa, por exemplo, compreender que as forças armadas tenham sido prejudicadas no cumprimento da sua missão por causa de meios de comunicação VHF que afinal custam cerca de vinte mil contos e recentemente foram doados pelo AFRICOM americano.
A falta de efectividade do Estado em muito do que faz, soma-se ainda à dificuldade em ver-se como agente económico de grande importância enquanto comprador de bens e serviços no mercado local. Os industriais entrevistados por este jornal na semana passada dão conta dessa omissão e dos prejuízos que incorrem por causa disso. O mesmo dizem outros privados, por exemplo, no domínio das tecnologias de informação e comunicação que lamentam a ausência de uma estratégia de compra de serviços dinamizadora de empresas nacionais no sector. A assinalar uma mudança de política nesta matéria foi a decisão muito positiva do actual governo em promover o aprovisionamento de bens e serviços nas ilhas onde estão sediados serviços do Estado e em privilegiar operadores locais para obras municipais. Realmente, para ter maior impacto na economia nacional deve-se constituir toda essa compra de bens e serviços na “procura sofisticada” de que fala Michael Porter.
Em conclusão, há que ir além da problemática de partidarização. O Estado precisa de ser retirado do papel dominador que teve no modelo de reciclagem de ajuda. Há que adequá-lo para um outro papel que é o de promotor da autonomia e da iniciativa das pessoas com vista a aumentar a produtividade e a competitividade do país e criar as condições para a prosperidade e a felicidade de todos.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 794 de 15 de Fevereiro de 2017.

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