sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Necessidade de alternativas viáveis

A centralidade do poder do povo de, em eleições livres e plurais, escolher os seus governantes, de optar por uma nova via e também de fazer a transferência pacífica de um governo para outro é celebrada com grande solenidade em todos os países democráticos. Muito do cansaço, frustração e ressentimento que se vem acumulando nas sociedades modernas resulta da percepção crescente do público que esse acto fundamental da democracia já não tem a importância que teve outrora. Muda o governo e fica-se com a impressão que, de facto, o país não altera o rumo, fica, pelo contrário, sujeito aos mesmos constrangimentos, pontificam os mesmos actores de sempre ou os seus “clones” e retoma-se o discurso antigo mas retocado com aparentes novidades, porque, parafraseando Margaret Thatcher, diz-se que hoje vive-se nos tempos da TINA – There Is No Alternative.
Nas democracias modernas o povo não governa directamente. Escolhe os seus representantes e governantes e dá-lhes um mandato fixo para cumprir o programa prometido. Mas como não há cheques em branco em democracia, quer, primeiro, certificar-se que a governação acontece num quadro constitucional e legal de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, pelo pluralismo, pelo primado da Lei e pela independência dos Tribunais. Segundo, faz questão de ver as promessas cumpridas e os objectivos atingidos. Um mecanismo central de avaliação dos resultados do mandato é o poder de livremente escolher quem deve ser o próximo governo. Com isso garante-se que ninguém fica eternamente no poder e assegura-se que haverá sempre possibilidade de correcção em caso de abusos, desvio de objectivos ou simples incompetência.
Quando, porém, como aconteceu em vários países nos anos após a crise financeira de 2008, vota-se a mudança de governo e a transformação desejada não se verifica, designadamente na economia, no rendimentos das pessoas e na qualidade de vida, aparecem logo sinais de desencanto seguidos de frustração e até de raiva. Os alvos preferidos do ressentimento social são os partidos políticos, o parlamento, a imprensa, as elites, os ricos e os cosmopolitas mas também “os outros” designadamente os ciganos, os imigrantes, os africanos, os muçulmanos e todas as minorias que estiverem a jeito. Em simultâneo culpa-se a globalização, o comércio internacional, as instituições internacionais e, no caso da Europa, as instituições supranacionais. O Brexit, a eleição de Donald Trump e muito do que aconteceu nos últimos anos no sistema de partidos e no interior de vários deles são consequência do sentimento anti-partido e anti-política em crescimento há algum tempo e que foi amplificado extraordinariamente pelas redes sociais nos últimos cinco anos.
Comprovada a falta de utilidade do sistema de alternância de partidos, não estranha que o sentimento de desprezo pela política tivesse sido canalizado para soluções populistas no interior de estruturas partidárias já existentes ou que fossem alimentar forças políticas novas fortemente identificadas com os seus líderes. De facto, tanto numa situação como noutra nota-se a ascensão de um novo tipo de líder propenso a projectar uma imagem de outsiders e de personalidades com “força de carácter, autênticos, sinceros e não comprometidos” com as elites existentes. No actual ambiente em que os factos contam pouco, todas as opiniões parecem valer o mesmo e narrativas substituem a procura da verdade, a personalidade dos líderes populistas passou a ser razão suficiente para validar as promessas e opções políticas apresentadas. Os factos, porém, têm demonstrado que nos partidos tradicionais a adopção de uma agenda e estilo de liderança populista não traz ganhos a prazo. Tendem a falhar na corrida ao poder como testemunham os exemplos de partidos socialistas na Europa e depois passam vários anos a recompor-se. Quando conseguem triunfar nas eleições não tarda muito que todo o partido sinta os efeitos dos excessos e das inconsistências da liderança como aconteceu com Berlusconi na Itália e irá certamente acontecer com Trump nos Estados Unidos.
A democracia cabo-verdiana apesar de recente não deixa de ser afectada por fenómenos similares. No ano passado substituiu um governo de quinze anos por um outro do partido que nos anos de oposição soube manter-se como alternativa de poder. O flirt com o populismo foi perfeitamente visível nos dois partidos tanto no período pré-eleitoral como durante as eleições. Não estranha por isso que sequelas da proximidade de práticas populistas estejam a revelar-se na unanimidade à volta dos líderes, todos eleitos com números quase a atingir os 100% dos votantes, e também na animosidade dirigida a qualquer sinal de dissenso nas fileiras dos militantes. A quase total ausência de listas concorrenciais para delegados aos órgãos máximos dos respectivos partidos veio comprovar a falta de dinâmica de vida interna e pode estar a revelar um défice no debate de ideias que, a verificar-se, deixa qualquer partido em sérias dificuldades de se constituir como real alternativa de poder.
 A credibilidade do sistema democrático depende muito da sua capacidade em produzir governos alternativos que demonstram de forma inequívoca que o voto popular tem efeitos práticos na escolha de governantes e de novas políticas para o país. Não ter uma força política à altura de produzir políticas distintas e governantes competentes para o país pode criar descrença no sistema de partidos pondo em perigo a democracia e abrindo caminho a soluções populistas e a líderes autocráticos. Por isso, nas vésperas da realização dos órgãos máximos do MpD e do PAICV o apelo deve ser de arejar as fileiras com debate sério e plural cientes de que só dessa forma vão justificar o sistema de partidos e ajudar a preservar a democracia representativa fundamental para a liberdade e a prosperidade de Cabo Verde.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 792 de 01 de Fevereiro de 2017.

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