Milhares de pessoas saíram às ruas em S. Vicente no dia 5 de Julho para se manifestarem contra a centralização. A concentração excessiva na capital do poder de decisão sobre matéria de desenvolvimento é considerada por muitos como a principal razão do declínio económico da ilha e de outros pontos do território nacional. Para um crescente número de pessoas é urgente alterar o processo de tomada de decisões para se poder aproveitar melhor as oportunidades. Também é preciso evitar burocracias excessivas para se deixar florir iniciativas individuais e empresariais e há que saber priorizar investimentos no quadro de uma visão estratégica de forma a trazer maiores e melhores ganhos para o conjunto nacional.
A ansiedade quanto ao futuro depois de anos de estagnação económica já em 2016 se tinha traduzido no redireccionamento massivo do voto popular num governo novo e com forte agenda de regionalização. Quinze meses depois manifesta-se na impaciência face às promessas adiadas da regionalização e as acções governamentais que tardam em causar efeitos significativos no plano individual em termos de emprego e de dinâmicas das empresas. Sair à rua surgiu como a opção lógica para ventilar frustrações, clamar mais rapidez nas reformas e lembrar aos governantes as suas promessas. Uma outra coisa bem diferente será mudar a cultura centralista nas instituições e nas pessoas, cortar a ligação umbilical entre a forma de exercício do poder e o centralismo e substituir uma economia de reciclagem de ajuda externa que reforça a centralização por uma outra muito diferente suportada pela livre iniciativa e pela autonomia das decisões económicas.
Centralizar decisões, recursos e serviços sempre foi entendida como forma de exercício do poder em Cabo Verde. Viu-se reforçada nos quarenta e oito anos do regime de Salazar/Caetano e atingiu o seu auge no regime de partido único em que se procurou fazer com que mesmo as decisões de natureza pessoal, familiar e de grupos tanto sociais, económicas ou culturais fossem assumidas exclusivamente pelo partido e pelas suas organizações de massa. A lógica é simples: quem manda, quer ser quem faculta os recursos, permite os acessos e escolhe os beneficiários. Nada pode acontecer sem o seu consentimento e à sua volta devem gravitar clientelas e gente grata a quem depois, no momento certo, poderá exigir lealdade traduzida muitas vezes em votos.
É evidente que tal centralismo não existe só a nível central do Estado ou manifesta-se somente nas relações entre a Capital e as Ilhas. Tende a reproduzir-se, de facto, em todos as instâncias de poder. Neste aspecto vai a contracorrente com a Constituição de 1992 que consagrou a autonomia das pessoas e das comunidades com interesses específicos, que impôs aos órgãos de soberania o princípio da separação e interdependência dos poderes e obrigou o Estado a organizar-se, seguindo o princípio da descentralização para além de garantir o direito de propriedade e liberdade de actividade económica. O problema é que passadas décadas com a economia de base em ajuda externa dificilmente as pessoas ou empresas ganham autonomia em relação ao Estado. Pelo contrário, tendem a aumentar a dependência e, num processo de reforço mútuo, o poder é cada vez mais exercido na perspectiva de manter as pessoas e empresas dependentes e sem possibilidade de se escapulirem.
Neste aspecto, é paradigmático o que se passa nos municípios. A figura central do presidente da câmara é visível em todos os actos do município quase fazendo esquecer que tanto a câmara como a assembleia municipal são órgãos colegiais e pluripartidários. Em vez de facilitador ou promotor de actividade dos munícipes, a tendência é o presidente se apresentar como o grande protagonista dos eventos criados. Em matéria de receitas próprias, enquanto se reclama mais e mais recursos do Estado para serem administrados directamente pelas câmaras, relativamente pouca atenção é dada à colecta de receitas de base local que deveriam justificar o princípio de no taxation without representation. Foge-se à responsabilidade perante os munícipes não os onerando com impostos, mas faz-se todo o possível e o impossível para passar a imagem de quem vai lá fora ou junto ao governo conseguir recursos para o município. No jogo político que se abre, criam-se espaços para tudo, a começar por discursos de vitimização que culpam os outros pelos males ou insuficiências encontradas. Na sequência eleições sucessivas são ganhas, mas, como o exemplo de S.Vicente mostra, a tendência é o aumento das frustrações e da ansiedade em relação ao futuro,
Cultura de centralismo tem os efeitos nefastos que se conhecem. Combatê-la devia constituir um desígnio nacional. Tem custos enormes porque retira eficiência e eficácia às instituições, impede que haja flexibilidade na abordagem dos problemas, dificulta que se dê continuidade a trabalhos e iniciativas anteriores no afã de tudo fazer de novo e não poucas vezes facilita a irresponsabilização de quem dirige. Há que estar ciente de que a criação de riqueza essencial para o país prosperar não se compadece com restrições à liberdade económica, com o exercício de poder que procura tornar cidadãos mais dependentes e com a gestão do estado que cria clientelas de qualquer espécie, seja ela partidária, familiar ou de base territorial. O grito contra o centralismo vindo de S.Vicente deve ser ouvido com atenção porque também é um apelo à liberdade, à justiça e à solidariedade.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 815 de 12 de Julho de 2017
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