segunda-feira, novembro 06, 2017

Banco Mundial surpreso?

Na semana passada uma equipa do Banco Mundial apresentou no quadro do Diagnóstico Sistemático do País (SCD) uma apreciação sombria sobre o percurso de Cabo Verde nos últimos anos. Ouviram-se frases como “a qualidade das infraestruturas está abaixo de países semelhantes”, “o maior crescimento vem do sector público e o sector privado não um papel significativo”, “a eficiência da administração pública está a declinar”, e “educação e formação inadequada da força laboral”. Também os técnicos do Banco Mundial não deixaram de apontar que, em relação à problemática da redução da pobreza, “depois de tantos anos a gastar dinheiro em programas sociais não sabemos quão efectivos foram porque há muito poucos dados” e ainda de constatar que “a dívida pública disparou, situando-se acima dos 120% do PIB”, facto que está a impedir o país de se tornar “resiliente aos choques externos”. 
As frases só surpreenderam porque vinham de quem as proferiu. Há anos que as forças políticas da oposição, observadores de vários quadrantes e operadores económicos privados chamavam a atenção para a dívida crescente, infra-estruturas de valor duvidoso, educação de fraca qualidade e o efeito negativo da administração pública sobre o ambiente de negócios e a competitividade do país, sem encontrar muito eco nos documentos e declarações finais das sucessivas missões do FMI e do Banco Mundial. Pelo contrário, não poucas vezes ficavam na posição de corroborar as posições do governo e de suportar expectativas de crescimento que viriam a revelar-se muito abaixo do real. Em 2014 a previsão de crescimento situou-se oficialmente no intervalo 3,5% - 4% do PIB, mas na realidade foi de 0,6%. Em anos anteriores a disparidade entre a previsão e a realidade não foi muito diferente mas isso não impediu que nos documentos oficiais dessas instituições não subsistissem muitas dúvidas, por exemplo, em relação à dívida pública que o governo de então insistia que era perfeitamente sustentável porque concessional. Compreende-se que não é próprio dessas instituições fazer o papel dos partidos da oposição ou de porta-voz das críticas da sociedade civil e das preocupações dos agentes económicos, assim como não deve certamente ser seu papel dar respaldo ao que oficialmente se diz para fugir à responsabilidade e não tomar as medidas que as circunstâncias impõem.
O facto porém é que com o passar do tempo o problema torna-se mais complexo, a situação se agrava e não há muito por onde ir. Ninguém sabe o que fazer quando o recurso à ajuda externa e ao crédito diminui consideravelmente e no meio termo o país não conseguiu pôr de pé sectores da economia que pudessem funcionar como motores do crescimento e da criação de emprego. Entrementes as empresas públicas ameaçam soçobrar sob o peso da dívida acumulada e, no ambiente de incerteza e riscos macrofinanceiros, o investimento privado nacional e estrangeiro não consegue substituir o investimento público no ritmo desejado. O resultado é o fraco crescimento, as dificuldades de criar emprego e a dependência crescente de sectores que, embora dinâmicos por impulso do exterior como é o caso do turismo, na prática não conseguem arrastar suficientemente o resto de economia.
Nesses momentos – o encontro da semana passada com Banco Mundial é um exemplo - depois de anos de aparente complacência com resultados medíocres, eis que essas instituições como que reaparecem e exigem medidas draconianas sem demonstrar grande preocupação com as consequências para além de limitar o défice orçamental, conter a dívida pública e assegurar os pagamentos externos. Com se viu no caso da TACV, insistem com a reestruturação/liquidação da empresa e não têm rebuços em usar a suspensão da ajuda orçamental como instrumento de pressão ao governo. No mesmo sentido vão outras medidas de reestruturação propostas, incluindo privatizações, dirigidas primariamente para colocar esses índices em valores mais geríveis mas que a prazo podem revelar-se pouco adequadas para garantir crescimento rápido e o desenvolvimento sustentável da economia. O facto de não se sentirem co-responsáveis pelo que possa vir a acontecer ao país apesar das periódicas missões de monitorização e aconselhamento devia servir para lembrar aos legítimos governantes que está nas suas mãos a responsabilidade pelo desenvolvimento do país.
Essas organizações internacionais têm a sua própria agenda que nunca é idêntica à agenda nacional apesar de eventualmente partilharem elementos comuns ou convergirem em atingir os mesmos objectivos e metas. As doações, empréstimos ou investimentos no âmbito de ajuda externa seguem uma lógica que pode ter pontos de contacto com aspectos da estratégia nacional mas não são coincidentes. Nenhum país do mundo se desenvolveu com base simplesmente nas prescrições das instituições de Bretton Woods. Todos tiveram que encontrar a sua via, traçar a sua estratégia e ser capaz de negociar com as instituições estrangeiras multilaterais de forma a potenciar ao máximo os recursos disponibilizados em benefício de um crescimento rápido e inclusivo. 
Pôr definitivamente de lado o modelo de reciclagem de ajuda e abraçar a via que colocará o país na posição de criar riqueza deve passar também por rever toda a relação com essas instituições de forma a que não seja marcada pela submissão, facilitismo e ausência de uma estratégia própria. Depois de décadas de condicionamento do comportamento do Estado e dos seus agentes devido à ajuda externa há que construir o caracter e a competência esperados de um povo independente.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 831 de 31 de Outubro de 2017.

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