segunda-feira, novembro 27, 2017

Mais coerência s.f.f

A comunicação social esteve em debate ontem num fórum presidido pelo Primeiro-Ministro Ulisses Correia e Silva. O tema era Serviço Público da Rádio e Televisão mas, como seria de esperar, a questão do papel e da sustentabilidade dos órgãos privados da comunicação social foi trazido à baila. Logo nas intervenções iniciais o Governo apressou-se a anunciar a sua nova lei de incentivos e os 15 mil contos orçamentados para a imprensa escrita e órgãos digitais ao mesmo tempo que deixava no ar promessas de futuras progressões nesse montante e também de benefícios em noutros domínios como a formação. Quanto à questão crucial da publicidade para a sustentabilidade de uma imprensa privada com expressão a nível nacional, o PM remeteu para o próximo ano a definição dos limites à publicidade angariada pelos órgãos públicos.
A realidade da comunicação social em Cabo Verde é ainda marcada pela preeminência dos órgãos estatais vinte sete anos após o 13 de Janeiro e 25 anos de vigência da Constituição de 92 que consagrou o princípio do pluralismo e as liberdades de expressão, de informação e de imprensa. Os avanços da sociedade cabo-verdiana, tanto na instalação e consolidação das suas instituições democráticas como na reestruturação da sua economia deixando de lado os velhos monopólios estatais e promovendo a concorrência nos diferentes sectores, não tiveram correspondência no sector da comunicação social. O monopólio anterior do Estado, em particular na rádio e na televisão, manteve-se praticamente intacto como é apregoado todos os dia nos canais públicos em declarações que é a maior rádio e a maior televisão de Cabo Verde. Outra coisa não podia ser considerando a sua história desde a independência em que, expropriadas todas as rádios privadas, a rádio estatal e posteriormente a televisão passaram a beneficiar do financiamento público via orçamento do Estado, da taxa de televisão e da maior fatia da publicidade comercial e institucional. O que estranha é a manutenção desta situação mais de duas décadas de democracia pois sabe-se qual é em geral as consequências desse estado de coisas, designadamente no que toca ao excesso de pessoal, ao sobredimensionamento dos meios acompanhado de ineficiências diversas, à falta de estímulo para uma gestão que faculte autonomia financeira e diminua a dependência do Estado, à tentação de viver das receitas publicitárias sem falar no que alguém já chamou do peso genético simbólico de décadas de serviço ao Estado.
A suspeita que poderá ter persistido uma cultura de prestar serviço a quem manda é a fonte principal de um conflito que normalmente envolve todas as forças políticas prontas todas elas para acusarem os órgãos e os jornalistas de parcialidade, de discriminação e de serem objecto de pressão. Paradoxalmente, tais acusações acontecem quando estão no governo e quando estão na oposição. A excessiva capacidade de influenciação dos órgãos públicos comparada com a dos privados faz da rádio e da televisão públicas um campo de batalha particularmente virulento onde não se sabe onde termina a tentação de quem governa em fazer uso da sua posição privilegiada para passar a sua mensagem e começa a desconfiança dos opositores de que alguma manipulação está a acontecer. Em tal ambiente muito dificilmente se pode esperar que apareça e se desenvolva o jornalismo de referência que todos consideram ser fundamental  neste mundo de fake news, de pós verdade, em que as redes sociais parecem já estar a assumir o papel de mediação, até agora detido pela comunicação social e que é essencial para o funcionamento e consolidação da democracia. Que os órgãos públicos não conseguirão ser porta-estandarte do jornalismo de excelência e de referência que todos almejam é um facto que reconhecem e deixam transparecer nas suspeitas trazidas a público e nas acusações de auto-censura. Que a batalha pelo seu controlo é um dos factores de continuada crispação política no país é um facto também indesmentível. Por isso, continuar a alimentar a “criatura” através de fluxos financeiros de três ou mais fontes de recursos não parece ser muito inteligente, particularmente quando se sufoca outras vias e se impede que um novo paradigma de comunicação social se erga e se consolide em Cabo Verde, um paradigma mais consentâneo com o que se encontra nas democracias modernas.
 A Constituição da República determina que haja sempre um serviço público de rádio e televisão. Não estabelece porém qual deve ser a sua dimensão. Provavelmente dependerá da orientação ideológica do governo dimensionar  os canais públicos  simplesmente para suprir as imperfeições do “mercado de comunicação social” em termos de pluralismo e de universalidade ou alternativamente colocá-los em posição de maior peso vis-à-vis aos órgãos privados. A opção por uma maior fatia no “mercado” da comunicação social contraria de algum modo políticas que tendem a uma maior autonomia da sociedade civil, a dar um papel decisivo ao sector privado na dinamização da vida socio-económico e cultural do país e a promover uma cultura de transparência e “accountability” essencial num Estado de Direito. Não é por acaso que a experiencia de várias democracias designadamente Portugal, Espanha e França dá conta da dinâmica verificada na comunicação social e na quantidade e qualidade de informação disponível para as pessoas na sequência de licenciamento de rádios e televisões privadas acompanhado de limitações ou mesmo proibição de publicidade nos órgãos de serviço público.
O governo de Ulisses Correia e Silva prometeu 15 mil contos em incentivos para contribuir para a sustentabilidade da comunicação social privada. É manifestamente insuficiente. O Expresso das Ilhas paga mais do que essa quantia anualmente à gráfica local só para impressão enquanto em regra recebe por ano mais ou menos 2 mil contos do Estado para compensar os seus múltiplos gastos. Alargar a distribuição de incentivos anteriormente dirigidos para a imprensa escrita também para os online que não têm despesas de impressão e de distribuição nem precisam que o leitor contribua com cem escudos para ter acesso ao conteúdo não contribui para minorar as dificuldades com que os jornais se confrontam na actualidade. Dificuldades essas tornadas piores com a concorrência dos órgãos públicos que com o acesso privilegiado a publicidade institucional e financiados por outras vias em certos momentos podem praticar preços que até sugerem operações de dumping. É evidente que continuando assim dificilmente se poderá inverter a herança recebida do partido único da hegemonia dos órgãos públicos com todas as consequências já conhecidas, designadamente na qualidade da comunicação social e da própria democracia.  


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 834 de 22 de Novembro de 2017. 

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