A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir
um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV,
cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da
CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de
permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa
movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade
especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma
amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo
nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da
imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente
“estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência
dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são
originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o
facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”.
Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas
e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A
complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais
suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando
as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como
Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do
Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das
forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam
elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a
enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que
se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados
Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses
países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram
para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O
mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas
iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de
intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes.
A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a
instabilidade, a insegurança e guerras
sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou
fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto
para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses
exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas
na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com
fluxos internos de pessoas sob pressão
do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de
Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova
dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que
menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes
de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4
mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como
não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que
milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam
conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que
tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a
população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um
ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a
sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada
ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente
empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se
ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si
próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva
e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que
parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema
em grande parte criado por omissão e pela
incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização
e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas
ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a
apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política
ainda
continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao
país.
O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem
governa
mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto
de o
mundo à volta estar a dar sinais de se
desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do
presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso.
Ninguém
aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da
lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e
pela promoção do comércio livre entre as
nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da
humanidade em
todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos
protagonizados por
Donald Trump e por muitos outros
políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão
que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as
grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições
internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos
dessa mesma época da PAX Americana. Com
ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se
desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a
política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da
regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente
vão resolver os problemas do país. Há
que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só
com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas
procurando o bem geral, se poderá
equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das
Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.
segunda-feira, junho 25, 2018
terça-feira, junho 19, 2018
Banhos de realismo precisam-se
O Primeiro-ministro Ulisses Correia Silva esteve nas
duas últimas semanas ausente do país, primeiro nos Açores no quadro de
um encontro dos arquipélagos da Macaronésia e logo de seguida em visita
oficial a São Tomé e Príncipe.
Curiosamente de entre as
conclusões dos encontros realizados nos dois momentos sempre se destaca a
necessidade da criação de condições para a livre circulação de pessoas e bens e
o estabelecimento de tráfico aéreo e marítimo ligando os diferentes
arquipélagos. São passos considerados vitais para se atingir os objectivos de
uma aproximação maior entre os diferentes espaços e de diversificação das
relações económicas. Propõe-se o mesmo quando se fala em reforçar a integração
de Cabo Verde no espaço da CEDEAO. O problema é que se passou anos a repetir
esse discurso e nada de significativo acontece. E a razão é simples – não há movimento
de pessoas nem de mercadoria que justifique a manutenção de tráfico aéreo e
marítimo regular entre os diferentes espaços. Nem também o futuro a médio prazo
augura um incremento nas transacções que viabilize as rotas criadas.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.
A realidade do que é o comércio entre os arquipélagos e do que potencialmente poderá atingir não parece afectar o discurso oficial que sistematicamente é proferido nessas circunstâncias. Repetem-se as propostas mesmo que no fundo se saiba que dificilmente se vão traduzir em algo real e sustentável. Não é por acaso que a questão da subsidiação das rotas que devia acompanhar qualquer discurso realista nesta matéria é recorrentemente omitida. Ouvindo os políticos, fica-se com a impressão que a simples manifestação de vontade em fazer é suficiente e que a partir daí o mercado se encarregaria de dinamizar a vida económica, aumentar as transacções e acelerar a circulação e o intercâmbio das pessoas nesses diferentes espaços geográficos. Age-se diferente quando a política não é oca e não se pretende criar narrativas ilusionistas, mas pelo contrário se procura com infraestruturas, investimentos e mercados potenciar o que está latente e pode florir no ambiente certo.
Recentemente foi notícia um arranjo das autoridades portuguesas para assegurar a ligação Funchal/Porto Santo no arquipélago da Madeira. No processo foi instituído o serviço público, concessionado a rota à Binter Canárias na sequência de concurso público e o governo português alocou o valor de 5,6 milhões de euros para compensar a operadora por operar entre as duas ilhas com a frequência estabelecida em contracto e praticando tarifas diferenciadas para nacionais e estrangeiros. Não se deixou a companhia à mercê do mercado ou que inventasse formas de se compensar pelas perdas que as rotas praticadas eventualmente produzissem ao mesmo tempo que se lhe exigia na prática um serviço público. Tal aconteceu com a TACV que só viu reconhecer a existência de rotas no serviço doméstico com baixa densidade de tráfico num resolução do governo anterior, publicada dez dias antes das eleições de 20 de Março de 2016 (Resolução nº 24/16).
Em Cabo Verde, talvez porque os governantes sempre se sentiram tentados pelo ilusionismo na política, é demasiado frequente as manifestações de falta de realismo na enunciação de políticas públicas. Não se dá muita atenção à relação custo/benefício e isso faz com que o país em muitos aspectos se transforme num “cemitério” de projectos que custaram milhões, mas pouco retorno geraram para além do efeito dos gastos em salários e compra de bens. Quando a governação persiste na sua falta de realismo, as consequências são muitas vezes catastróficas como foi o caso da TACV. Globalmente os efeitos são sentidos na pesada dívida pública, no crescimento muito aquém do desejável, nos níveis altos de desemprego em particular entre os jovens e os mais escolarizados, na baixa produtividade e também na falta de competitividade externa. Pela insistência nos discursos tendo como palco a Macaronésia, a CEDEAO e por último São Tomé e Príncipe vê-se que a política no país ainda não prima pelo realismo e continua a singrar pelos caminhos que já mostraram não serem os melhores.
Sentimentos, eleitoralismo e pensamento mágico continuam a marcar o discurso político. Se mais nenhuma outra razão houvesse para se deixar para trás políticas de ilusionismo, a realidade do mundo de hoje deveria ser razão suficiente. Vive-se uma nova era em que a confiança nos políticos e nas instituições é cada vez mais precária, em que se espera o rápido cumprimento das promessas eleitorais e em que a nível individual quer-se a gratificação quase instantânea das expectativas. Deixar-se apanhar pela sua própria retórica é o pior que pode acontecer a um governo. As dificuldades com o programa de mitigação dos efeitos da seca é um exemplo de como expectativas criadas nas pessoas chocam com o possível e o racional desejáveis em anos de escassez extrema de água e pasto. Falhas na comunicação ou comunicação enviesada pelo ilusionismo endémico na política cabo-verdiana alimentada pela excessiva publicidade dada aos donativos internacionais criou a missão impossível da salvar “todo o gado”. Perante esse objectivo inatingível as acções do governo vão sempre ficar aquém das expectativas dos criadores e o espaço político para se tomar medidas para prevenir situações similares de seca no futuro será sempre limitado pela tentação da oposição de aproveitar a vulnerabilidade do governo na matéria para o expor e o fragilizar.
Uma outra área onde a falta de realismo na condução de políticas poderá ser prenhe de consequências é no domínio do transporte marítimo. Diferentemente do que aconteceu com o tráfico aéreo em que a TACV deixou o mercado para um operador com capital estrangeiro sem que fosse estabelecido os termos do serviço público, para o transporte marítimo esse serviço é estabelecido imediatamente e a concessão do mesmo é para um único operador. O Estado faz exigências importantes ao futuro concessionário designadamente quanto ao número e idade dos navios mas não há sinal que irá compensar o mesmo pelas rotas não rentáveis. O realismo deveria forçar a que se tivesse sempre em consideração os problemas de escala quanto ao volume de carga e o número de passageiros que se colocam a um pequeno país de pouco mais de quinhentos mil habitantes e dividido em 9 ilhas habitadas. Os privados no transporte marítimo nacional já convivem com o problema actualmente e imagine-se como vai ser com um concessionário único. A coabitação entre eles irá manter-se? O Estado vai subvencionar certas rotas? Ninguém parece saber. Em tal ambiente vir ainda propor a criação de outras rotas (CEDEAO, S. Tomé) que necessariamente terão de ser subsidiadas não parece ser realista nem razoável. Não se pode ficar eternamente à espera que outros paguem a nossa falta de realismo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 863 de 13 de Junho de 2018.
sexta-feira, junho 15, 2018
Tempos conturbados
Os tempos continuam conturbados. Incerteza, falta de
confiança e desesperança de camadas expressivas da população nas
democracias vêm produzindo fenómenos complicados.
As
causas seriam, entre outras, o aumento da desigualdade social, os
efeitos da globalização do mercado de trabalho e a incapacidade das
sociedades em propiciar vias para a satisfação de expectativas
individuais criadas em paralelo com a conectividade crescente do mundo
via redes sociais. Em consequência, para além das já habituais surpresas
que a América de Donald Trump brinda o resto do mundo quase todos os
dias, assistiu-se nos últimos dias em Espanha às peripécias da queda do
governo e ao ballet dos partidos populistas de extremos opostos na
formação do governo italiano. Em todos esses casos as instituições dão
sinais de querer soçobrar sob o impacto da corrupção, a polarização do
discurso político abre caminho para o tribalismo político, e a tentação
autoritária da democracia, tal qual um tsunami, vai-se propagando sem se
deixar notar até que se torne inevitável e tudo varre numa onda
populista.
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.
Humberto Cardoso
Cabo Verde vive também estes tempos e isso foi notório nos últimos dois anos nas múltiplas manifestações e passeatas realizadas nas diferentes ilhas, nas frustrações ventiladas nas redes sociais, em sondagens e em estudos de opinião e nas críticas dirigidas à classe política acompanhadas de especial sensibilidade em relação a qualquer sinal de abuso, apropriação ou má utilização de bens e recursos públicos. Há quem veja nessa nova disponibilidade das pessoas em dar a conhecer a sua posição face aos problemas do país a prova que está-se agora mais livre para opinar, participar e contestar posições do governo. A realidade, porém, é que, de facto, em termos de sentimento e emoções em relação aos políticos, aos partidos e a indícios de corrupção, muito mudou. Anos seguidos de ilusionismo político deixaram as pessoas frustradas e deram lugar a acelerado cepticismo e descrença por não cumprimento em tempo quase imediato das promessas feitas. Isso não chega para explicar a deterioração rápida da confiança das pessoas no próprio sistema eleitoral e nas instituições democráticas. Deve haver algo mais a trabalhar e que encontra correspondência em outras democracias. Os fenómenos de descrença são similares assim como também o são a tendência para ceder a propostas populistas e a um mal escondido fascínio por políticos com tiques autocráticos, mesmo para aqueles que não se apresentam como “animais ferozes”.
O colunista e autor David Brooks do jornal New York Times aponta entre as razões para a estranha situação de descrença do homem e cidadão moderno o facto da sociedade ter resvalado para um ponto em que se deixou de avaliar as pessoas pelo seu carácter e passou-se a concentrar no sucesso conseguido independentemente da forma e meios utilizados. Com isso, na sua opinião, a sociedade desmoralizou-se deixando de haver sistemas morais que restabeleçam a harmonia entre as pessoas, as instituições passaram a ser simplesmente um meio para se conseguir certos fins e manifestações de narcisismo tornaram-se cada vez mais frequentes alimentadas em particular pelas redes sociais, o culto de celebridades e a exploração sem pudor de emoções e sentimentos das pessoas para ganho pessoal. Nessas condições, a luta pela afirmação pessoal, que naturalmente contraria o tipo de cooperação entre as pessoas, a começar pelo dever cívico de participação na comunidade que o desenvolvimento do mundo de hoje exige, também mina as instituições existentes que são essenciais para se garantir a democracia e não permite que se crie convergência política suficiente para, na diversidade e pluralismo, se realizar o interesse público.
Em Cabo Verde, o multiplicar de intervenções públicas de personalidades políticas em quase todas actividades que se fazem no país não consegue mudar a percepção pública da fragilidade das instituições. No Afrobarómetro os cidadãos queixam-se da falta de diálogo ou da falta de acesso a políticos não obstante as visitas, as mesas redondas, os workshops, fóruns, socializações etc., que acontecem por todo o país. E certamente que não se vai corrigir a falha e melhorar a situação pela via de aumento desses eventos. O que deixa as pessoas na mesma desemparadas, sem a satisfação de sentirem que foram ouvidas e as suas preocupações devidamente consideradas, vem em boa medida da tendência crescente dos governantes e políticos em geral em realizar a sua agenda própria em detrimento da função institucional. Os perigos dessa forma de fazer política é que quase sempre tende a resvalar para o populismo e a demagogia e, não poucas vezes, tem que recorrer à corrupção para manter os fiéis à sua volta e prontos para serem lançados em combates políticos futuros.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 862 de 06 de Junho de 2018.
Humberto Cardoso
segunda-feira, junho 04, 2018
Realismo e pragmatismo na governação
Nesta última semana falou-se do Acordo Cambial, da
liberalização de capitais e até da euroização. O pretexto foi a
comemoração dos 20 anos do acordo que estabelece o “peg” fixo do escudo
cabo-verdiano com o euro.
Também na semana em que se celebrou o Dia da África, 25 de Maio, e os 43
anos da criação da CEDEAO, foi trazida à baila a possibilidade da adesão de
Cabo Verde à união monetária no espaço da sub-região africana e a importância
crucial para o futuro do país que seria a integração económica de Cabo Verde
nessa comunidade. Algo insólito, nesses dois momentos que parecem configurar
opções diferentes, houve manifestações de entusiasmo de personalidades
oficiais, políticos e académicos. Aparentemente, num evento regozijavam-se com
o sucesso do acordo cambial e, e no outro, mostravam-se entusiastas em avançar
para um cenário em que Cabo Verde integra uma outra união monetária com países
com os quais as suas transacções anuais não conseguem ultrapassar 5% da
totalidade do seu comércio internacional.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.
A atitude assim demonstrada não parece primar-se pelo realismo e pragmatismo que deve caracterizar a gestão das questões do Estado, em particular na relação com outras nações. Factores como a ideologia, sentimentalismos diversos e questões identitários dão a impressão de sobreporem-se à realidade dos factos evidentes nas limitadas transacções económicas, nos relativamente raros intercâmbios culturais e académicos e no pouco espaço para protagonismo no seio da comunidade, como ficou demonstrado recentemente na corrida para a presidência da Comissão da CEDEAO. Só assim se compreende que, apesar de tudo o que aconteceu, em vez de se acautelar os interesses do país, lança-se numa ofensiva para integração, compreendendo a criação de um cargo ministerial para o efeito, abertura de embaixada em Abuja e maior abertura para acomodar imigrantes provenientes da sub-região.
Continua-se a propalar que a CEDEAO constituiu um mercado de 300 milhões de pessoas, que Cabo Verde tem uma posição estratégica única para o “transhipment” na região e como “hub” aéreo, que é ideal para oferecer serviços como praça financeira e que pode ser a via para entrada de investidores no espaço da comunidade. Nem a afirmação de Jean-Paul Dias a este jornal a reduzir os trezentos milhões a vinte milhões, ou a realidade do movimento nos portos e aeroportos de Dakar e das Canárias, ou ainda a pequena dimensão do nosso sistema financeiro e os sinais claros de fraco conhecimento das regras no seio da comunidade parecem suficientes para temperar o entusiasmo dos governantes e políticos. Ao país convém explorar e desenvolver relações com os estados vizinhos, mas para isso deve poder optar por políticas realistas e efectivas e saber sempre pôr em perspectiva o interesse comum. Não é fazendo mais do mesmo das últimas quatro décadas que se vai alterar a situação actual caracterizada pelo comércio regional fraco e pela interacção limitada que se constata a todos os níveis. Simplesmente subsidiando mais uma vez barcos e aviões não se vai aumentar a quantidade de carga e passageiros entre Cabo Verde e os países da CEDEAO. Há que fazer muito mais.
O foco excessivo e deslocado na questão da integração na CEDEAO contrasta com a falta de foco e sentido de urgência que se faz sentir sobre os problemas da ilha do Sal e na Boa Vista. As manifestações da população nas duas ilhas deixam perceber que, em particular, no que respeita à segurança, saúde e habitação não se fez o suficiente para reverter a situação que vinha de anos atrás. Diferentemente do que se passa com as relações com a CEDEAO em que a economia e a vida de muitos milhares de cabo-verdianos não depende do que ali é transaccionado, nas ilhas do Sal e da Boa Vista estão uma boa fatia da economia cabo-verdiana e a base de muitos milhares de empregos, tanto aí como nas outras ilhas. Toda a atenção do governo deve ser para dirigida para as estabilizar, criar as melhores condições de vida e de enquadramento da população de modo a potenciar os seus recursos naturais e seu capital humano. A aposta do país no turismo como um dos motores principais da sua economia obriga a que investimentos sejam feitos com a necessária urgência onde já acontece e onde tem maior potencial de crescer, de criar empregos e de eficazmente arrastar a economia nacional. A estratégia para aumentar os fluxos turísticos não deve ser deixada só para os actuais e futuros operadores. O país deve ter a sua própria estratégia e ser pro-activo em orientar o turismo para onde o impacto sobre toda a economia seja maior e os efeitos nos rendimentos e qualidade de vida sejam mais imediatos e mais profundos. É evidente que para isso recursos não devem ser desperdiçados e a atenção de governantes não deve desviar-se para objectivos que para serem atingidos vão exigir muito tempo e muito investimento mas sem garantia razoável que o retorno justifique todo o esforço despendido. Há de facto que priorizar no interesse do país e não ir atrás de sentimentos e ideologias datadas.
A complexidade dos desafios do desenvolvimento de Cabo Verde obriga, em particular, na encruzilhada em que se encontra, a que se dê particular atenção à necessidade de manter a estabilidade governativa, a confiança das pessoas nas instituições e o sentido do colectivo e do bem comum. Para isso é essencial a realização prática dos princípios e valores da democracia e do pluralismo que foram instituídos na segunda república. Liderar não pode significar subtrair-se ao exercício desse pluralismo e pôr-se acima ou abaixo do que é exigido nas relações entre as instituições, a sociedade e as pessoas. Imprescindível é pois o papel de um parlamento representativo dessa pluralidade de opiniões e da diversidade de interesses, um papel que os mídias e outros fóruns podem complementar mas nunca substituir. Pelo exercício do contraditório é que se evita cair na tentação de certa ideologia que retira realismo e pragmatismo na condução da governação, que se contornam os custos escondidos da gestão autocrática e sem transparência e que se mantém clara a responsabilização política e bem viva a possibilidade de alternância política. Mais do que nunca é desse jogo democrático que o país precisa.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.
Subscrever:
Mensagens (Atom)