A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir
um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV,
cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da
CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de
permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa
movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade
especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma
amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo
nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da
imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente
“estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência
dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são
originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o
facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”.
Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas
e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A
complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais
suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando
as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como
Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do
Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das
forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam
elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a
enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que
se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados
Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses
países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram
para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O
mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas
iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de
intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes.
A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a
instabilidade, a insegurança e guerras
sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou
fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto
para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses
exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas
na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com
fluxos internos de pessoas sob pressão
do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de
Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova
dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que
menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes
de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4
mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como
não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que
milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam
conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que
tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a
população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um
ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a
sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada
ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente
empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se
ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si
próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva
e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que
parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema
em grande parte criado por omissão e pela
incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização
e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas
ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a
apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política
ainda
continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao
país.
O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem
governa
mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto
de o
mundo à volta estar a dar sinais de se
desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do
presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso.
Ninguém
aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da
lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e
pela promoção do comércio livre entre as
nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da
humanidade em
todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos
protagonizados por
Donald Trump e por muitos outros
políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão
que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as
grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições
internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos
dessa mesma época da PAX Americana. Com
ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se
desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a
política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da
regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente
vão resolver os problemas do país. Há
que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só
com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas
procurando o bem geral, se poderá
equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das
Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.
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