O debate na Assembleia Nacional sobre o estado da
Nação acontece nesta sexta-feira dia 27 de Julho. Mais uma vez os
parlamentares e o governo vão debruçar-se sobre a realidade vivida no
país com as suas vulnerabilidades de sempre, com os seus problemas do
momento e com a constante tensão entre as expectativas criadas e a
capacidade de as materializar. Em geral, nesse tipo de debates a
complexidade da situação do país é passada de lado. No calor do embate a
preocupação em tirar dividendos políticos imediatos leva muitas vezes a
posições extremadas que dificultam a devida perspectivação dos
problemas, não deixam espaço para consensos em matérias estruturantes e
bloqueiam o diálogo plural que o país tanto precisa para poder enfrentar
com sucesso os desafios do desenvolvimento.
Não estranha, pois, que ano após ano e com
mais ou menos diferença, o estado da Nação seja realmente o de quem está sob
“gestão corrente”. Vai-se vivendo com os fluxos que mais ou menos vêm de fora
em forma de ajuda, também com os efeitos de uma conjuntura internacional
favorável na procura externa e com o impacto do aproveitamento por outros de
oportunidades pontuais, mas sem garantia de continuidade futura. Razão por que
as vulnerabilidades não diminuem significativa e permanentemente, não há
aumento rápido de postos de trabalho com qualidade e o país não sobe para
patamares em termos de capital humano, de conectividade e de prestação de
serviços que o tornariam atractivo para o investimento estrangeiro e fariam
crescer as exportações. Se, pelo contrário, em vez da costumeira gestão
corrente, passiva e sem ousadia a opção fosse para uma gestão estratégica,
pro-activa e visionária o foco seria na criação de riqueza e no esforço
colectivo para ganhar competitividade externa e elevar o nível de produtividade
do país. Aí sim não seria evidente o desapontamento já palpável das pessoas que
ainda estão por sentir concretamente as vantagens da alternância na governação.
Não se vai por esse
caminho porque ainda há demasiadas forças em Cabo Verde que resistem a mudanças
no status quo. A tentação dos poderes instalados em controlar tudo e
todos põe-se demasiadamente no caminho do desenvolvimento. Não é por acaso que
o Estado burocrático dividido nas suas “capelinhas” e cioso das suas
prerrogativas continua a pesar proeminentemente sobre tudo o que se faz e, em
particular, sobre o que de novo se quer fazer.
Em vários países mesmo alguns não democráticos, governos ganham
confiança da população e legitimam-se presidindo a uma economia que cresce
significativamente e mantém níveis baixos de desemprego. Em Cabo Verde não é
clara que essa ligação tenha sido estabelecida.
Governos no passado já foram reeleitos mesmo
com crescimento baixo e altos níveis de desemprego porque se mostraram aptos em
fazer a “gestão corrente” seguindo o modelo de reciclagem da ajuda externa.
Aconteceu em parte porque não é fácil mudar comportamentos criados por
políticas populistas e assistencialistas que depois se transformam eles
próprios em obstáculos ao próprio desenvolvimento. O ilusionismo que acompanha
essas práticas mascara a realidade, esconde os problemas e alimenta as
expectativas com promessas de dádivas do Estado. A verdade, porém, é que os
problemas simplesmente não desaparecem, pelo contrário, acumulam-se e progressivamente
tornam-se quase intratáveis ou só resolvidos a elevado custo.
É só ver o que se passa com a TACV, com as
barragens, com o programa Casa para Todos, os problemas das populações na Ilha
do Sal e da Boa Vista, a quebra na dinâmica económica de S. Vicente, a
vulnerabilidade completa da população rural, os problemas de emprego dos que
saem dos liceus e das universidades para se aperceber que ficar pela “gestão
corrente” do país focalizada em conseguir financiamentos para infraestruturas e
em “diplomacias económicas” que mobilizam milhões para a ajuda orçamental e
programas de emergência não tira o país da mediania e só agrava os problemas
para o futuro. Se essa opção já não resultava no passado, muito menos efeito no
crescimento e no emprego terá nos dias de hoje em que as exigências de
transacções com o resto do mundo são maiores em termos de qualificação de
mão-de-obra, de serviço prestado e de produtividade. Também não é boa ideia deixar-se
apanhar pela tentação de disfarçar as práticas de uma gestão corrente
com “fugas em frente” do tipo clusters dos anos atrás que nunca se
materializaram. Ainda nesta perspectiva, o excessivo foco na inovação talvez
esteja deslocado e eficiência devesse ser a preocupação primeira do Estado. Como
bem sugere o Fórum Económico Mundial,
Cabo Verde está entre os países nos quais o que mais conta para o crescimento económico
é a eficiência na utilização dos recursos do capital e do trabalho e o
desenvolvimento dos mercados.
Sair do paradigma debilitante, que
exceptuando provavelmente alguns anos na década de noventa, tem dominado a
prática governativa do país, é essencial para se poder projectar alguma
esperança em que todos os cabo-verdianos poderão finalmente ultrapassar as
fragilidades de outrora. A experiência de sucesso de países como Maurícias,
Seychelles, Botswana e Singapura revela que para que medidas estruturantes e
estratégicas fossem tomadas em momentos-chave da vida económica desses países houve
necessidade de construir consensos entre as principais forças políticas
e firmar pactos entre autoridades,
sindicatos e empregadores que realmente pusessem o crescimento e o emprego
acima de qualquer agenda. Em Cabo Verde, o ambiente político e o laboral
confundem-se de algum modo e estando todos a defender os interesses próprios
não parece que se deixe espaço para a sociedade realmente convergir em questões
que se mostrarem fundamentais para o futuro.
Por outro lado, para se produzir riqueza, há
que criar valor mas nem todos os operadores agem a todo o tempo seguindo esse
registo. Como diz a economista britânica Marina Mazzucato no seu último livro
“O Valor de Tudo” na sociedade há quem produza valor, há quem destrua valor e
há quem extraia valor. Saber distinguir uns dos outros e apostar em quem
realmente produz valor, neutralizar quem o destrói e não deixar-se enganar por
quem simplesmente o procura extrair, não
é tarefa fácil. Mais difícil fica se não se se conseguir primeiramente um
entendimento de base entre os partidos e na sociedade para se efectivamente
deixar a gestão corrente para uma governação estratégica. O debate sobre o
estado da Nação podia ser um bom começo para esse entendimento indispensável
para o presente e futuro do país. É preciso ter presente que as nuvens da
incerteza ameaçam o abrandamento da economia mundial com impacto negativo certo
para toda a gente. Não há tempo a perder.
Humberto Cardoso
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