É cada vez mais frequente no mundo globalizado e
interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias
especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm
natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de
segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja
no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma
simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para
ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao
fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a
sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova
disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do
euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam
muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência
excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos
económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do
Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão
num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança
também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos
políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade
considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na
generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um
entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de
tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como
irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que
se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre
predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares
traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras.
Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à
baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à
conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela
maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de
blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com
armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do
terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado.
São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem
corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo
potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010
introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de
Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a
criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais
neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não
tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias
internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum
ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas,
lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É
evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a
defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania.
O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de
controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha
poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio
território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de
forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não
se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em
tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações
especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes
como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase
incontornável para se garantir segurança
contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da
jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve
ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do
contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América
compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a
qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem
negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência
encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma
presença no país mesmo quando o estatuto
das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento
do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior,
esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente
por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para
ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em
troca de ganhar em segurança. Certamente
que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou
opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento
não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as
forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast
Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição
criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7
(BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder
solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem
relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no
acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2
dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às
imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra,
em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do
crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez
anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as
tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da
necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o
documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma
cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da
Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição
penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões.
Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos
caboverdianos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição
impressa do Expresso das
Ilhas nº 867 de
11 de Julho de 2018.
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