segunda-feira, janeiro 14, 2019

Populismo não é solução

O populismo é no início deste ano de 2019 a grande preocupação nas democracias tanto novas como consolidadas. Uma das razões é o facto de – na sequência das suas irrupções no espaço público, emblematicamente verificadas no Reino Unido com o Brexit, na América com eleição de Trump e também na Itália em 2018 – se ter tornado notório que o populismo apesar das suas promessas não traz soluções. Vê-se, por exemplo, no desorientamento gerado pelo processo da saída da Grã-Bretanha da União Europeia, ou então no caos que a administração Trump tem criado nos Estados Unidos e na arena internacional e no desnorte que se vive na Itália.
Onde, porém, se mostra mais pernicioso é na forma como mina a democracia representativa, desacredita o parlamento e a classe política, fragiliza o sistema partidário até ao ponto de quase colapso dos partidos tradicionais em alguns casos (França, Itália, Grécia) e abre caminho a soluções políticas autocráticas. Curiosamente isso acontece trinta anos depois do que para todos parecia imparável a vaga democrática que se iniciara com as movimentações populares na Europa de Leste ao longo de todo o ano de 1989 e que culminou com a queda do Muro de Berlim e no derrube do comunismo e de ditaduras de partido único em todo o mundo.
Na época o politólogo Francis Fukuyama até prognosticou um Fim da História no qual a democracia liberal ganharia ascendência universal sobre todos os outros regimes políticos. Hoje sabe-se que não foi assim e que regimes autocráticos em directa competição com as democracias mostraram possuir vitalidade inesperada para crescer e ganhar peso económico a ponto de poder rivalizar em influência política com as potências ocidentais nos diferentes continentes, em particular na África. Como seria de esperar nem sempre o resultado das rivalidades nascentes se mostrou benigno. Pelo contrário, o mundo acabou por se tornar um lugar mais perigoso de viver à medida que todos se acotovelavam para criar ou para manter o seu espaço de influência. Nota-se isso no aumento das tensões geopolíticas ligado a protagonismos de cariz populista e nacionalista dos estados e de entidades sub-estatais. Sente-se no impacto das incertezas no plano económico global criadas pela guerra comercial das grandes potências. Também constata-se no cansaço democrático e na incapacidade em inflectir a tendência de crescente desigualdade social nos países desenvolvidos e em confrontar o problema das migrações internacionais cujo potencial de destabilização é conhecido. Tudo isso concorre para que a democracia liberal não seja o íman todo-poderoso que todos almejaram quando no fim da guerra fria parecia agregar todos.
A democracia cabo-verdiana também é tributária dessa terceira vaga que trinta anos atrás tinha varrido regimes totalitários e autocráticos em todos os continentes. No próximo domingo, 13 de Janeiro, vai-se comemorar os 28 anos do dia que em Liberdade e num ambiente de pluralismo pela primeira vez o povo cabo-verdiano pôde exercer o seu poder soberano para escolher os seus governantes. Uma forma de o fazer é aproveitar a data para avaliar o estado da nossa democracia que tanto custou a conquistar e que certamente também tem sido afectada pelas pulsões e derivas populistas às vezes de forma subtil outras vezes de forma clara. Vários sinais como, por exemplo, as tentativas de minimização do parlamento, os ataques aos partidos políticos, a fragilização das instituições em geral e o extremar dos discursos com consequente degradação do debate político, recurso a promessas demagógicas, e negação do adversário deixam entender que os efeitos do populismo já se se fazem sentir com força no meio político e social cabo-verdiano. E não é porque o sistema partidário continua formalmente o mesmo que garante que ainda não foi penetrado pelas tácticas e ideologia populistas. Aliás, o facto dos sintomas já se manifestarem na postura das instituições, na actuação de elementos da classe política e mesmo em movimentos inorgânicos que aqui e acolá vão surgindo à procura de causas para um activismo mais robusto é revelador já do impacto causado pelo populismo na vida nacional.
Nos tempos de hoje dificilmente a sociedade e os indivíduos vão poder escapar à influência populista que grassa pelo mundo. O empoderamento dos indivíduos via redes sociais acessíveis a todos assim como a sua manipulação por algoritmos dessas mesmas redes que os induzem a agrupar-se numa base identitária que os opõe a outros na base de raça, etnia, religião, preferência política, etc., tem pelo menos dois efeitos devastadores: primeiro, extrema posições e eleva o nível de crispação dos discursos com perda significativa e crescente para a importância que se dá aos factos, à procura da verdade e à exigência de honestidade na tomada de posições. Segundo, o acesso aparente a todos via rede social cria a falsa ideia de se ser ouvido, de estar a participar e de uma proximidade a governantes que lhe pode dar uma satisfação mesmo que ilusória e efémera que dificilmente vai encontrar num quadro de funcionamento normal da democracia representativa.
Ninguém vai poder evitar os males causados à cidadania e à participação política provocados pela utilização de certas tecnologias que tendem a exacerbar as piores tendências nas pessoas. O tempo, a educação no uso e possivelmente a regulação da internet vão um dia conseguir isso. Até lá é fundamental que se dê atenção às instituições democráticas, às suas normas e às regras de funcionamento. A desilusão de muitos com o sistema político não é uma simples produção das redes sociais ou resultado da má influência de alguns demagogos isolados. A classe política em geral e várias lideranças nos partidos tradicionais têm contribuído para isso. Infelizmente demasiados têm caído na tentação de cavalgar a onda populista juntando-se ao coro dos que põem em causa o pluralismo, que desacreditam o parlamento, hostilizam a comunicação social e apresentam-se com discursos anti-partido e anti-política para melhor combater as elites.
Em mais um aniversário do 13 de Janeiro a resposta a todas essas derivas, que escondem ambições de poder inconfessáveis, deve ser o de defender de forma consequente os princípios e valores da democracia liberal. Também é o de exigir utilização rigorosa dos recursos do Estado para melhor combater a corrupção. Ainda é o de insistir numa ética e num ethos de serviço público que valorize quem se preste a ser político e consolide juntos dos cidadãos e de toda a sociedade a confiança na honestidade e compromisso dos seus governantes com a defesa do interesse público e com a procura do bem geral. A luta contra o populismo fundamentalmente passa por isso.

Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 893 de 9 de Janeiro de 2019.

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