Na semana passada o foco da atenção foi o Liceu da
Várzea. O governo fez saber através de uma portaria que autorizava que o
terreno de 12 mil metros quadrados ocupados pelo liceu fosse cedido por
5,8 milhões de dólares às autoridades americanas para completar a área
necessária para construir uma embaixada de raiz em Cabo Verde.
A
reacção de várias pessoas entidades e sectores de opinião não se
fizeram esperar. Condenaram a decisão deixando transparecer nos
argumentos apresentados sentimentos de anti-americanismo remanescente de
algum anti-imperialismo terceiro mundista. Algo similar já tinha
conhecido no ano passado aquando da discussão do Acordo SOFA referente
ao estatuto de militares americanos presentes em missão oficial no
território nacional. Foi então notória a contaminação do debate pelos
mesmos sentimentos, enviesando e tornando menos produtivo o esgrimir dos
argumentos pró e contra. Do imbróglio algo inesperado nos dois casos
chama a atenção a agressividade com que são avançados certos tipos de
argumentos, a preocupação em rotular negativamente quem tem posição
diferente e as acusações às vezes frontais de que há quem esteja a
submeter-se aos ditames de países estrangeiros.Interessante que os posicionamentos sobre estes assuntos vindos a público não têm só origens em elementos inorgânicos que se fazem ouvir essencialmente nas redes sociais. Convergem no essencial com os adoptados pelas principais forças políticas da oposição. O resultado é que numa matéria de relacionamento com um estado estrangeiro o governo e a oposição aparecem de costas voltadas e de forma acrimoniosa. Isso em contraste absoluto com a atitude que os sucessivos governos formados por um e outro partido têm assumido ao longo dos tempos em relação aos Estados Unidos da América designadamente em matéria de segurança, de política de ajuda ao desenvolvimento e de luta pela democracia e pelos direitos humanos no mundo e também no âmbito de programas como o MCA de 2005 e o de 2012. Razão para dizer que as motivações das partes nestes assuntos traduzem mais a possibilidade de aproveitamento numa perspectiva político-partidária de matérias, que não poucas vezes se tornam casos por falhas na própria forma do governo de as comunicar, do que realmente uma posição do Estado. Por isso que em geral os países estrangeiros envolvidos em tais imbróglios domésticos nem se incomodam com os arremessos vindos da oposição. O entendimento geral, como recentemente fez notar um alto dignatário europeu referindo-se a dirigentes partidários estrangeiros, é que os líderes quando estão fora do poder podem dizer e fazer o que bem entenderem. Não afecta as relações entre os Estados.
As democracias vivem hoje sob pressão de populismos de vários tipos. Uma característica comum a todos eles é a aposta em políticas identitárias que têm por base a busca da identidade por contraposição ao “outro” visto por Jan-Werner Muller no seu livro de 2016 “O que é o populismo?” como um ente diferente, corrupto ou de alguma forma moralmente inferior. Acrescenta o autor que a pretensão central do populismo é afirmar “que só uma parte do povo é que é realmente o povo”. A sua força motriz é o medo. Por isso é que certos populismos na Europa e nos Estados Unidos ganham força alimentando o medo contra, por exemplo, o imigrante e o islão e outros populismos insistem que o inimigo é a elite cosmopolita e a globalização. Em todos esses casos está-se à procura de um bode expiatório, de razões para odiar e de ameaças para confrontar.
Cabo Verde não está imune a essas tentações populistas. Aliás, o populismo já vinha do regime de partido único e só ganhou uma outra dimensão com o eleitoralismo da democracia. Os efeitos da generalização do uso das redes sociais e as mudanças geracionais nos partidos políticos vieram imprimir uma nova dinâmica ao que já existia e o resultado vê-se na fragilização das instituições com destaque para o parlamento, no empobrecimento do discurso político e no ambiente de maior crispação entre os partidos. Na procura de consolidação de identidades parece que um dos ingredientes que tem provado alguma utilidade, se tivermos em consideração a gritaria em certos círculos contra “bases, complexo militar e tropa americana”, é o espicaçar do sentimento anti-americano. Vê-se o artificialismo disso tudo quando se sabe que esses mesmos círculos não se opuseram, por exemplo, aos exercícios da NATO em 2005, ou à recepção em Cabo Verde de ex-prisioneiros vindos da base de Guantánamo em Cuba ou à assinatura em Washington do acordo em 2015 que faz de Cabo Verde um dos cinco “anchor states” no sistema de segurança dos Estados Unidos nesta região. Para muita gente nesta afirmação de identidades parece que também ajuda a hostilidade à Europa com o pretexto dos vistos, o confronto permanente entre o crioulo e o português que tem feito regredir o ensino da língua portuguesa e o afirmar de uma “africanidade” que ameaça desconstruir a caboverdianidade.
O discurso político nestes últimos dias tem sido dominado pela ideia de que o Liceu da Várzea está à venda, que já se vendeu a TACV e que outras empresas vão seguidamente ser vendidas. Parece que já se descobriu o que poderá alimentar o medo em Cabo Verde. Noutros países aposta-se no medo da imigração descontrolada, mas aqui no país e em certos círculos, talvez seja a ideia de venda do país a forma encontrada de galvanizar um certo tipo de populismo atractivo para sectores que sempre viveram à volta do Estado. Nisso certamente tiveram a ajuda de quem não soube desconstruir narrativas que no bom estilo populista dividia o campo político entre os que amam a terra e os outros. E iniciativas contraproducentes como publicar resolução do governo nomeando 25 empresas estatais e participadas que deviam ser privatizadas só poderiam confirmar a narrativa já existente.
O facto é que esse tipo de discurso tende a bipolarizar ainda mais o espaço político, diminuir consideravelmente as possibilidades de acordo entre as forças políticas em questões-chave para o país e tornar de todo quase impossível discutir qualquer assunto de relevância para o futuro. Também não é o tipo de discurso que convida a acções de forma concertada e estratégica, às vezes mesmo ultrapassando legislaturas para que o futuro do país seja garantido. O populismo vive da divisão mas aprofundando as fracturas na sociedade caboverdiana talvez leve alguém ao poder mas à custa de se sacrificar efectivamente o desenvolvimento do país. Espera-se que esse facto já comprovado por outros seja devidamente interiorizado e que a tempo se arrepie caminho para que o país não seja engolido num populismo que não leva a lado nenhum.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 911 de 15 de Maio de 2019.
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