segunda-feira, novembro 25, 2019

Para que não seja uma farsa

Na primeira sessão de Novembro da Assembleia Nacional, a matéria da composição do futuro Conselho de Finanças Públicas (CFP) foi dos pontos da ordem do dia que mais celeuma levantou. Em discussão esteve a questão se devia ser o Ministro de Finanças a propor o presidente e dois vogais de entre os cinco membros do conselho ficando os dois restantes por serem indicados pelo governador do banco e pelo presidente do tribunal de contas.
Tratando-se do órgão superior de uma instituição de escrutínio orçamental independente compreende-se que houvesse dúvidas quanto à indicação da maioria dos seus membros pelo ministro de finanças. De facto, o que está em jogo é nomeadamente o avaliar pelo CFP da consistência em termos macroeconómicos das projecções orçamentais e também do cumprimento de regras orçamentais e da dinâmica e sustentabilidade a prazo da dívida pública, todas essas acções sob a responsabilidade directa do ministro de finanças. E o que se quer é que não haja qualquer suspeita no que concerne à sua competência técnica e a independência. Nesse sentido, atribuir competência directa ao ministro na indicação da maioria dos seus membros, mesmo que mediada pelo conselho de ministros, certamente que não ajuda.
Conselhos de finanças públicas foram criados em vários países da União Europeia a partir de 2012 e na sequência da crise do euro e da dívida soberana com o objectivo de monitorização independente das contas públicas. O figurino adoptado para a composição do seu órgão superior foi como aconteceu em Portugal o de fazer o conselho de ministros nomear personalidades indicadas em proposta conjunta pelo presidente do tribunal de contas e pelo governador do Banco central. Pela via de proposta conjunta de duas instituições com altas funções técnicas e uma cultura organizacional de independência procurava-se garantir que os indicados reunissem qualidade técnica e fossem independentes. Associando a isso, entre outros atributos, mandatos relativamente longos e não renováveis, autonomia administrativa e financeira e inamovibilidade dos seus membros assegurava-se que poderiam ser uns verdadeiros watchdogs fiscais. A experiência portuguesa neste aspecto foi rica porquanto não faltaram tensões entre o CFP e outras entidades públicas incomodadas com os seus pareceres, à medida que o país nos anos difíceis da Troika e nos anos seguintes procurava fazer uma gestão orçamental, e em particular do défice e da dívida, em conformidade com as exigências europeias.
A adopção por Cabo Verde de instituições com esse perfil tem razão de ser. Quer-se com isso granjear credibilidade na gestão da contas do Estado, transmitir confiança que as previsões orçamentais de diminuição do défice orçamental vão-se verificar e que se irá trabalhar para que a dívida pública, ainda a níveis demasiados elevados, seja sustentável. E porque atingir tais objectivos é essencial para o país ser atractivo para o investimento externo e assegurar um bom ambiente de negócios, não se pode ficar a meio de caminho na forma como são constituídos os órgãos e alimentar dúvidas futuras quanto à sua competência e independência. Também não é procurando inovar com exigências de 15 anos ou 10 anos de experiência para os cargos de presidentes e vogais do CFP, que mais parecem critérios administrativos de antiguidade, ou estabelecendo que os órgãos fiquem adstritos à Chefia do Governo que se vai garantir capacidade técnica e autonomia.
Em instituições similares no estrangeiro, designadamente em Portugal, por causa do elevado grau de tecnicidade exigido abre-se a possibilidade de nomear vogais do CFP que não sejam nacionais do país, uma ideia que podia revelar-se interessante em Cabo Verde ainda carente de quadros altamente qualificados em domínios chaves. Outrossim, porque quem é fiscalizado e avaliado é o governo que executa o orçamento, afirma-se a autonomia fazendo o CFP tomar posse perante o presidente do parlamento que é um órgão plural e fiscaliza o poder executivo. Um grande desafio de todos estes conselhos fiscais seja nas experiências mais antigas como na Holanda ou nos Estados Unidos e mais recentemente na Suécia, Reino Unido e Hungria é garantir a autonomia e sobreviver ao descontentamento e críticas que num momento ou outro provocam junto de quem governa. Independentemente de algum mal-estar que eventualmente podem provocar, o facto é que os CFP com as suas análises, estimativas e monotorização da execução orçamental, ao trazer dados acima de qualquer suspeita, podem dar um contributo enorme para um debate político mais saudável e útil sobre a situação económica e financeira do país.
A opção por ter um Conselho de Finanças Públicas não deve ser visto como mais uma dessas medidas cujo principal objectivo é passar a imagem do país como de “bom aluno” junto das organizações internacionais e da União Europeia, na perspectiva de conseguir mais ajuda. Fez-se e continua-se a fazer muito disso, des­cur­ando os resultados e possíveis benefícios das medidas adoptadas e fixan­do simplesmente nos efeitos imediatos dos fluxos externos. Seria bom que no acaso actual houvesse um comprometimento para se ter um órgão de escrutínio orçamental realmente inde­pendente. Para isso, seria fundamental que se alterasse o quadro de nomeação dos seus membros porque como popularmente se diz não basta à mulher de César ser séria, tem que parecer ser séria. 
Nesse sentido não bastam as garantias do ministro de finanças quanto à indicação dos três membros do CFP, há que alicerçar a nomeação em bases institucionais sólidas. Um simples olhar pela actual estrutura do governo e pela actuação dos governantes não deixa dúvidas quanto à abrangência das funções do ministro de finanças que também é vice-primeiro-ministro. O poder que acaba por concentrar não deixa de causar desequilíbrios com impacto até na relação com os colegas ministros como visivelmente ficou patente ao público no processo de preparação do orçamento de 2018 e actualmente se nota no que alguns críticos já chamam de subalternização do papel do primeiro-ministro. Num quadro desses dificilmente se mostra credível que as suas indicações para os vários conselhos de administração de entidades públicas e empresariais são efectivamente escrutinadas em sede de conselho de ministros. E como parece, acreditando no que foi dito no parlamento por todas as forças políticas, que ninguém quer um Conselho de Finanças Públicas, que no futuro venha a revelar-se uma farsa, então que se legisle em conformidade para lhe garantir competência técnica e independência efectivas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 938 de 20 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Resiliência democrática precisa-se

O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim aconteceu no sábado passado, dia 9 de Novembro. Por todo o mundo e em especialmente nas democracias o evento foi saudado com especial relevo nos jornais, rádio e televisão e relembrado em conferências, fóruns e artigos de opinião.
Nas universidades, think tanks e centros de estudos políticos e estratégicos foi matéria de apreciação sistemática em múltiplos encontros procurando perspectivar como foi possível regredir da euforia inicial e da aparente imparável vaga de democracia dos primeiros anos da década de noventa para o que agora se configura como uma espécie de recessão democrática. Foi também momento para se interrogar sobre as razões que têm levado multidões anteriormente entusiásticas com a liberdade e a democracia a apoiar populistas e demagogos que abertamente se declaram iliberais e questionam os direitos fundamentais, o primado da lei e a independência dos tribunais. E ainda para se saber porque gente que lutou e sofreu pelos ideais da cidadania plena, do civismo e do pluralismo presentemente se deixa arrastar por demagogos que cavalgam as ondas do medo contra o outro e cultivam o ódio sob a capa de políticas identitárias.
Em Cabo Verde, os trinta anos da queda do Muro de Berlim passaram praticamente despercebidos. Apesar do Cabo Verde moderno e democrático também ser parte vaga da democracia que partindo do desmoronamento do comunismo e do império soviético se propagou pelo mundo inteiro e derrubou regimes autoritários e totalitários, não há uma assunção explícita dessa herança. E isso é particularmente sentido nos órgãos de comunicação social pública que pela sua própria missão de informar e formar deviam ser os primeiros a cultivar os princípios e valores da liberdade e da democracia inscritos na constituição que resultou dessa vaga da democracia. A verdade é que mais facilmente os veremos em menos de um mês a comemorar os 45 anos da tomada da Rádio Barlavento, um acontecimento que efectivamente marcou o fim da liberdade de imprensa no país e da presença de privados na comunicação social durante quinze anos. Assim se tem verificado durante anos seguidos e dificilmente este ano será excepção.
O mesmo se pode dizer da Universidade Pública que se esperaria que fosse o grande centro de debate de ideias e a sede da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e nessa medida relevasse o grande acontecimento da Queda do Muro de Berlim que inaugurou uma nova era no país e no mundo. Estranhamente a preocupação da universidade pública criada em 2006 é, nestes dias de Novembro e Dezembro, de comemorar 40 anos do ensino superior em Cabo Verde que supostamente teria sido iniciado com um curso de formação de professores em 1979. Um curso que o então Primeiro Ministro na abertura solene do mesmo definiu o perfil do professor pretendido como “um professor nacionalista e comprometido com a materialização dos princípios políticos do Partido, o PAIGC”. Não se percebe que tipo de valores se pretende resgatar de uma ligação com tal curso de formação de professores quando da universidade pública se espera que, em oposição aos propósitos que o nortearam, preze e exalte os princípios e valores de liberdade intelectual, da autonomia e da tolerância.
O descaso de entidades e de instituições públicas em matéria de defesa da liberdade e da democracia não é algo que só acontece em Cabo Verde. Queixa-se por esse mundo fora que uma das razões da recessão democrática actualmente vivida advém do facto de já não se ter memória presente do que é viver sem liberdade e sem uma imprensa livre, ser sujeito a prisões arbitrárias e não contar com um sistema judicial que administre justiça e obriga o Estado a cumprir a lei. Por isso que há quem queira testar o sistema estabelecido e submetê-lo a pressões anti-sistemas vindas de demagogos e populistas. Há quem nem queira se responsabilizar pela sua manutenção e cultive o cinismo em relação às instituições e à classe política. Há ainda quem sonhe com democracias de participação perfeita, de transparência absoluta e de corrupção zero. E tudo o que não corresponder, a todo o momento, ao sonho é motivo para indignação, seguido de frustração e posterior apatia ou militantismo violento. Estranhamente ninguém espera que a democracia soçobre por causa dos solavancos e choques a que é submetida. Tomam-se as liberdades e a democracia como garantidas mas a realidade é que não estão mesmo, como se pode constatar da ascensão do autoritarismo em vários países com tradição democrática.
Em Cabo Verde acresce-se a tudo isso o facto de a defesa dos princípios e valores democráticos ser enfraquecida pela presença forte de vários simbolismos dos primeiros anos da independência. As instituições e a própria classe política dividem-se em procurar equilíbrios e convivências de valores que de facto estão nas antípodas um do outro. O resultado é que prejudica a assunção de uma cultura democrática de real tolerância do outro, abre espaços para ambiguidades onde vão refugiar todas as resistências a reformas e à modernização do país, impede efectivamente o exercício da liberdade intelectual e não deixa energia para pensar o futuro e nele investir. A falta de “resiliência” democrática que tudo isso traduz pode revelar-se ainda mais problemática no ambiente actual no mundo em que as democracias estão sob ataque, os efeitos negativos da globalização aumentam com o enfraquecimento da ordem mundial e as expectativas das pessoas tendem a exacerbar-se com o acesso às redes sociais e total exposição ao que o mundo pode oferecer. Acossada a democracia poderá não haver reservas em termos de confiança e convicção que permitam resistir e recuperar-se de estragos causados.
Sinais preocupantes já se notam. As reacções ao surto da criminalidade e à insegurança não têm sido as melhores. Algumas configuram compressão de liberdades para responder a problemas de segurança. Outras querem “colaboração” do sistema de justiça acusando-se de demasiadamente garantístico. Ainda outras clamam para uma espécie de guerra ao crime com envolvimento de militares. O que não se vê é uma efectiva responsabilização pela situação acompanhado de um diagnóstico que vá além da procura de bodes expiatórios e de justificação porque é que depois de tantos meios materiais e humanos disponibilizados não há resultados sustentáveis. Entre os pilares da democracia está a exigência de “acountability” e o respeito pelo primado da lei os dois princípios de um Estado de Direito que os acontecimentos que se seguiram à queda do Muro Berlim tornaram possível. Há que os preservar e manter sempre a memória de como foram conquistados e como seria trágico ter de os perder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 11, 2019

Imperativo diminuir a insegurança

A sensação de insegurança piorou nas últimas semanas na ilha de Santiago, em particular na cidade da Praia. Assaltos, homicídios e o assassinato de um polícia em rápida sequência deixaram toda a gente preocupada e intranquila e exacerbaram o sentimento de insegurança que nunca tinha realmente diminuído apesar dos dados oficiais apresentados que apontavam para a baixa da criminalidade. No meio da confusão que se tem gerado, a tentação para se fazer o aproveitamento político das ocorrências policiais à medida que são dadas a conhecer só tem piorado a situação.
Paralelamente, em surdina ou às claras, sucedem-se acusações dirigidas contra entidades integrantes do sistema de segurança e de justiça amiúde provenientes do seio do sistema e na lógica de “passar culpa”. De todo esse exercício de stress público, procura de bodes expiatórios e aproveitamento político já se sabe que vai acabar por resultar em promessas de mais meios materiais e humanos em particular para a polícia nacional. A exemplo do que se passou em situações similares no passado recente (2014, 2010). O Governo já veio a público comprometer-se em os facultar.
Se a experiência do passado serve como ensinamento, tudo leva a crer que a situação actual até pode vir a melhorar e o número de assaltos diminuir e os assassinatos tornarem-se mais raros, mas é uma questão de tempo até que aconteça a próxima crise. Aí repete-se o que já se viu antes e, como das outras vezes, volta-se a fechar o circuito com mais meios. Entretanto, os problemas ficam por ser identificados, não se desenvolvem estratégias efectivas para os enfrentar e não se fazem os ajustamentos necessários em termos organizacionais, operacionais e de adequação do próprio sistema de forças para os resolver. No fim do dia é de espantar que com isso não haja uma gradual viciação de partes integrantes do sistema porque deixados a si próprios, numa espécie de círculo em que picos de criminalidade são seguidos de mais meios, mais salário e de outras prerrogativas.
Torna pior a situação o posicionamento das forças políticas. Como se viu na semana passada e ao longo do debate sobre a situação da justiça no parlamento, a tentação é emprestar voz a reivindicações de órgãos integrantes do sistema na perspectiva de ter ganhos políticos imediatos. Em intervenções, mas também em decisões tomadas, não se tem o devido cuidado com as consequências em termos de custos directos para o Estado, da perda de uniformidade na estrutura de salários do sistema e no convite implícito a “greves de zelo” de parte de certos agentes. São acções que põem em causa a eficiência e a eficácia do sistema e se tornam num ponto de partida para um novo ciclo de reivindicações. Nos últimos anos viu-se o impacto orçamental das mudanças salariais e outros benefícios dos oficiais de justiça, das polícias, agentes prisionais, dos militares e os efeitos dinâmicos de arrastamento que essas medidas tomadas em tempos distintos tiveram subsequentemente nos próprios funcionários em forma de novas reivindicações e até desembocando em manifestações laborais diversas e em greves inéditas da polícia.
Pela voz de deputados na última reunião plenária da Assembleia Nacional a ler missivas de sindicatos já se sabe que se pode estar na iminência de um período de turbulência na magistratura judicial devido a reivindicações salariais com possibilidade de greve em cima do processo de apresentação de candidaturas para as eleições autárquicas. Tal eventualidade que a acontecer iria mexer com a integridade e a funcionalidade do sistema político e do próprio Estado que não devia deixar qualquer força política indiferente e muito menos numa posição activa de promover dinâmicas complicadas. Há que entender que certas decisões particularmente em sectores que são de soberania ou representativas da autoridade do Estado devem são tomadas de forma compreensiva e não deixaram perceber fragilidades que comprometam o todo. A questão revela-se ainda mais complicada se se tiver em consideração que, no quadro actual de contenção do défice orçamental, ser colocado em posição de deixar disparar as despesas com o pessoal implicará, para compensar, sacrificar o investimento público, actualmente segundo o Banco Mundial correspondente a 4,4% do PIB de um pico de 15% em 2010, com consequências adversas designadamente em serviços essenciais prestados ao público.
É essencial acabar com o sentimento de insegurança que teima em apoderar-se das pessoas. Cabo Verde deve ser a terra segura tranquila que todos os seus filhos sonham e cuja imagem pretende-se projectar para fora de modo a fazer aumentar o turismo e atrair investimentos para o país. Garantir a segurança é a missão primordial de qualquer Estado e para o caso de Cabo Verde é o pilar indispensável para o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento. A conse­cução de políticas com foco na segurança implicaria a reavaliação e a adequação do sistema de forças no país como aparentemente ficou estabelecido no programa de governo. O problema é que na prática isso até agora não se verificou.
Optou-se por deixar as forças de segurança como estavam e só se procurou resolver os problemas criados na adopção pelo governo anterior da actual configuração de forças e colmatar as deficiências de meios encontrados. Se antes não tinha dado resultados que perdurassem no tempo a ponto de diminuir o sentimento de insegurança da população dificilmente fazendo o mesmo teria resultados diferentes e sustentáveis. As coisas complicam-se se começa a ficar manifesta a incapacidade dos políticos em fazer as mudanças necessárias para uma nova abordagem dos problemas de segurança. Uma incapacidade que a manter-se se traduziria numa erosão de autoridade com as consequências que se pode antever.
A estabilidade das democracias depende em muito da clara subordinação das forças armadas e segurança às autoridades civis legitmamente estabelecidas. Democracias sob tutela ou sob chantagem dessas forças ficam num estado de fragilidade que não lhes permite consolidar as suas instituições nem criar as condições para se desenvolver e prosperar. Guiné-Bissau é um caso paradigmático do tipo de erosão institucional que pode acontecer quando tais relações não são claras. Em Cabo Verde, fruto de histórias passadas, resistências a reformas de fundo tendem a subsistir em instituições que às vezes se veem quase como um estado dentro do estado. Mesmo em Portugal, 45 anos depois do 25 de Abril, há resquícios disso como ficou patente no caso do roubo de armas em Tancos, manifestando as autoridades civis uma fragilidade que o colunista Vasco Pulido Valente caracterizou de “desmaiar perante uma farda”. Em Cabo Verde parece acontecer algo similar e não há a autoridade necessária para fazer as reformas fundamentais. Há que mudar isso e sendo algo vital deveria merecer um consenso das forças políticas. O que está em jogo é conseguir que o sentimento de insegurança da população diminua de forma permanente para a tranquilidade de todos e um futuro melhor para o país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 936 de 06 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 04, 2019

Lose-lose

Os dados recentes dos relatórios do Doing Business e da Competitividade, que colocam Cabo Verde respectivamente na posição 137 entre 190 países e 112 entre 141, mostram o quão difícil tem sido fazer reformas no país. No início da década, o índice do Doing Business estava em 142.
 Depois de algum progresso em que chegou a 119 em 2012, mas que se revelou passageiro, entrou numa trajectória menos positiva que devia interpelar a todos. Aparentemente as resistências à mudança existentes no aparelho do Estado e na estrutura sócio-económica do país têm sido capazes de conter o impacto das reformas mesmo quando vêm de governos ideologicamente diferentes e com abordagens distintas. Caso para notar com inquietação o quanto o confronto dos dois grandes partidos, pretendendo ser protagonistas num jogo de soma nula em que o ganho de um é a perda do outro, tem-se revelado afinal ser um jogo (lose-lose) no qual todos perdem.
Situações similares acontecem em outros países. Um exemplo recente é a Argentina que no domingo passado elegeu um novo governo em plena crise económica e na sequência de um plano de resgate do FMI de 57 bilhões de dólares. O problema é que esse governo é do mesmo partido que tinha lá estado há cinco anos atrás e deixara o país numa situação praticamente de falência. Desde o fim da segunda guerra mundial que os dois partidos têm-se substituído no poder sem conseguir resolver os problemas de desenvolvimento desse país tão promissor, considerando os extraordinários recursos que dispõe. Alternam-se em políticas mais assistencialistas ou mais promotoras de iniciativa individual, mas não se constroem bases seguras de desenvolvimento que permitiriam às populações aumentar significativamente os seus rendimentos e criar coesão social com menos desigualdade. Para além das pessoas que vêem as suas expectativas sistematicamente goradas, desgastam-se também as instituições que perdem credibilidade e efectividade. Muita da agitação que se vive actualmente em vários países da América Latina tem aí a sua origem.
Também em Cabo Verde poder-se-á estar a verificar a fragilização das instituições derivado do impasse que se constata nas reformas e consequente dificuldade das pessoas em descortinar os efeitos das medidas de política no seu quotidiano e nas suas expectativas de futuro. O fenómeno é agravado pela tentação de no jogo político se extrapolar as diferenças, exacerbar as críticas e não deixar espaço para uma análise mais ponderada de possíveis soluções e de como ultrapassar as dificuldades no processo de implementação. A falta de consenso mínimo num conjunto de questões essenciais cria a sensação de insegurança, incentiva a que se resolvam conflitos por vias outras e acaba por promover uma cultura de desenrascanço que valoriza o informal e desencoraja o civismo e o espírito de cooperação. Em tal ambiente reforçam-se as resistências que vão se opor a reformas, venham de onde vierem, deixando o país num círculo vicioso que depois de iniciado dificilmente se escapa como se pode constatar do caso referido da Argentina.
A realidade do mundo de hoje com as oportunidades abertas pela globalização, com acesso à informação como nunca antes se viu e a possibilidade de comunicação numa escala sem precedentes alterou significativamente as expectativas de virtualmente toda a gente. Lidar com a nova realidade não tem sido fácil tanto a nível individual como a nível colectivo. O choque das expectativas com a realidade muitas vezes acaba por desembocar em frustrações pessoais, em raivas contra as elites e em ressentimentos dirigidos a outros grupos identitários. O alvo primeiro da desconfiança e do cinismo no mundo de hoje é a democracia representativa em nome de mais democracia mas também é a verdade dos factos e a universalidade da ciência e do conhecimento. Muito mal fazem os políticos e os seus partidos sempre que na luta pelo poder exploram essa tendência actual de pessoas e grupos de descredibilizar as instituições da democracia, em particular o parlamento, põem em causa os direitos humanos, que são um ganho de civilização, por supostamente servirem aos “bandidos” e incentivam um relativismo que abre às portas à desinformação e à manipulação do sentimento das pessoas. Depois, como se pode constatar de vários casos, mesmo em democracias consolidadas, os políticos e a política acabam por ser vítimas de si próprias quando capitulando a democracia sob o impacto de forças anti-sistemas com ela vão todas as suas instituições, a começar pelos próprios partidos.
Um sinal que o sistema político em Cabo Verde já não está a gozar de boa saúde é o facto de que tudo, do mais insignificante ao mais importante e dramático, é motivo para batalhas campais entre forças políticas onde quase tudo vale. Choques entre os partidos acontecem por tudo e por nada, designadamente por causa da seca, de gafanhotos, lagartixas, planos de salvamento do gado, barragens, preço da água, estradas asfaltadas, vinda de aviões, chegada de barcos, assaltos, mortes, reivindicação salarial, crianças desaparecidas etc. A discussão nunca é serena ou substantiva. Todos procuram ganhar à custa do outro. Nenhuma desgraça é suficiente para se juntarem e desenvolver uma estratégia que poderia romper com resistências construídas e abrir finalmente um caminho para a prosperidade que não deixasse muitos de lado. Com a seca, que vai no terceiro ano consecutivo e revelou a vulnerabilidade da população rural, não aconteceu. Com a insegurança, que é especialmente sentida na Cidade da Praia mas também em outros pontos do país, também não aconteceu. Com as falhas que o sistema educativo dá provas todos os dias e todos fingem ignorar, não se conseguiu elevar o país para um patamar superior. O mesmo acontece com as insuficiências que o sector da saúde já vem demonstrando à medida que os custos aumentam consideravelmente.
Prefere-se com discursos inflamatórios ficar neste jogo de quebrar a confiança do eleitorado num e noutro partido para tirar proveito próprio e não perceber que, com isso a situação, de facto é de lose-lose em que todos saem a perder. Viu-se isso no debate de ontem no parlamento com o Primeiro-ministro em que a barreira entre as forças políticas, de facto, não foi quebrada nem mesmo quando um deputado citando o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, lembrou que assim como não há Terra 2, não há Cabo Verde 2. Fica deveras evidente que o país e as suas gentes mereciam melhor e que é dever de todos facultá-lo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 935 de 30 de Outubro de 2019.