segunda-feira, dezembro 30, 2019

Vergonha!

O debate político em Cabo Verde entrou recentemente por um desses desvios bizarros em que para alguns prevalecer na discussão em curso passa por se assumirem como assistencialistas e acusar os outros de não serem suficientemente assistencialista.
Tudo isso é feito em nome da solidariedade para com os mais vulneráveis e de luta contra a crescente desigualdade social. Faz-se por ignorar as experiências do passado, marcadas pelo assistencialismo, e as razões por que as vulnerabilidades das populações em particular no mundo rural persistem até hoje. Para evitar falhas futuras, não se recorre a uma avaliação compreensiva das opções feitas e dos investimentos realizados e em como ficaram aquém dos objectivos pretendidos e do impacto prometido nos rendimentos das pessoas. Prefere-se usar os problemas das pessoas e do país como arma de arremesso político.
Mais estranho ainda é o facto de, ao trazer de volta a via do assistencialismo aparentemente, estar-se a querer que o país repita indefinidamente as mesmas soluções ou suas variantes que já demonstraram bastas vezes não resultar. Em Junho de 2015, de acordo com os documentos do Banco Mundial, fez-se o último desembolso do Crédito de Suporte à Redução de Pobreza (PRSC) no valor de 10 milhões de dólares. Esse foi o nono desembolso que se verificou desde 2005 num total de 117 milhões de dólares. Certamente que todo esse dinheiro teve algum impacto na vida das pessoas contribuindo de alguma forma para se atingir alguns dos objectivos do milénio. O problema é se o efeito perdura para além dos projectos e se a vulnerabilidade das populações não se revela na primeira crise como veio a acontecer com a seca de 2017. Uma coisa é certa, de um fracasso na luta contra a pobreza tão evidente e recente não se vai em frente insistindo nas mesmas políticas com a esperança de que na enésima vez que vierem a ser aplicadas finalmente acontecerá algo de positivo e sustentável.
Bem pelo contrário, por cada tentativa na via errada criam-se vícios, desenvolvem-se frustrações e aumenta a desconfiança nas pessoas com consequências gravíssimas na sociedade e nas comunidades onde esses programas são aplicados. Tudo fica ainda pior quando subsequentemente e de forma politiqueira se debatem os fracassos sucessivos e procura-se determinar quem é mais amigo dos vulneráveis, quem mais se dispõe a abrir a bolsa dos recursos públicos para distribuir e quem menos pede às pessoas responsabilidade e cumprimento de seus deveres como pais, cidadãos, contribuintes, munícipes etc. Ao longo das intervenções não poucas vezes deseduca-se a população quanto à origem dos problemas, quanto à disponibilidade de recursos para os resolver, quanto à natureza dos desafios a enfrentar e quanto à capacidade do próprio país em resistir a choques externos. Deseduca-se também ao instrumentalizar para ganhos político-partidários de curtos prazo interesses corporativos, reivindicações salariais e benefícios de todo o tipo sem atender às consequências futuras. Por causa disso muitos, quando confrontados com os problemas do país, não conseguem ver a ligação necessária que, por exemplo, deverá existir entre o aumento salarial e aumento da produtividade e não se lhes consegue mostrar a importância crucial de se ter um Estado com dívida controlada e de se combater a corrupção em todas as frentes, ao mesmo tempo que se garante a igualdade de todos perante a lei.
As nações, assim com as pessoas, devem ser capazes de aprender com os erros cometidos e situações extremas vividas, e daí retirar as devidas ilações. Há algumas como a Alemanha que ainda hoje faz da memória da hiperinflacção dos anos trinta uma forte determinante na atitude dos seus governantes em matéria de política monetária no que respeita à inflação e estabilidade dos preços. Um caso mais recente é o do Ruanda que, na sequência do genocídio de 1994 e do trauma colectivo, tem sabido construir uma vontade nacional focalizada no desenvolvimento rápido do país. Vê-se a lição retirada de traumas passados também em certos países da Europa como Portugal onde hoje se sente por quase todo o espectro político uma vontade de acertar as contas públicas e de diminuir a dívida pública para níveis aceitáveis. Não se esqueceram dos tempos difíceis da troika quando estava em jogo a permanência do país no euro.
O país que parece esquecer facilmente dos seus momentos difíceis e mesmo traumáticos é Cabo Verde. Pelo choque sofrido com a redescoberta da vulnerabilidade das populações rurais na sequência da seca de 2017 seria de esperar uma nova postura dos actores políticos mais em consonância para enfrentar os problemas do país e mais elucidativa para as pessoas e para a sociedade quanto às reais dificuldades do país, quanto à urgência das reformas a serem feitas e à necessidade de mudança efectiva no modelo de desenvolvimento do país. Mas assim como aconteceu no passado depois de momentos difíceis como secas, afundamentos, erupções, pressões excessivas de “parceiros” parece que tudo é esquecido para rapidamente se voltar à gestão corrente. Depois do “susto“ retoma-se rapidamente o discurso de teor marcadamente populista com laivos de demagogia política que tem caracterizado uma parte significativa da intervenção pública dos partidos. O resultado é que se deixam problemas por resolver ou se faz de conta que não existem até que na próxima crise se manifestem em reacção a choques externos, ou se dissimulem em forma de picos de criminalidade, ou se revelam em manifestações ruidosas de interesses corporativos, em reivindicações salariais irrazoáveis e em protestos de utentes insatisfeitos com a qualidade e a morosidade de serviços públicos.
A grande questão é quem ganha com esse estado de coisas. Diz-se hoje que o crescimento não é inclusivo, que a desigualdade aumentou e que o desemprego não diminuiu como prometido. Mas pergunta-se: quando é que foi realmente? Quando é que a prosperidade se mostrou sustentável e ultrapassou o tempo dos projectos, ou dos programas de investimentos de parceiros internacionais. Para que não houvesse tanto desemprego, emprego informal, baixos rendimentos teria que existir uma estrutura produtiva no país capaz de disponibilizar bens e serviços transaccionáveis e poder ocupar grande parte da mão-de-obra disponível no país. E é precisamente isso que o modelo de desenvolvimento favorecido ao longo dos anos em Cabo Verde nunca deixou que acontecesse. Mesmo quando se procurou desviar do padrão existente, as resistências à mudança foram muitas e limitaram o escopo das reformas. O discurso político que se produz em Cabo Verde, e que é ainda tributário do modelo suportado pela ajuda e outros fluxos externos, dá expressão à luta pelo controlo desses recursos. Por isso mantém refém as forças políticas e o resultado é que nem mesmo em presença de dificuldades, situações difíceis ou mesmo traumas nacionais se consegue debater construtivamente. Não há como conduzir um diálogo nacional, que realmente confronte os problemas e abre caminho para se lançar pontes, chegar a compromissos e construir vontades, na perspectiva de se colocar o país dentro de um outro modelo que leve realmente à prosperidade inclusiva que aparentemente todos reclamam. É uma vergonha.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 943 de 23 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Morna no Expresso das Ilhas

Por ocasião da elevação da Morna a Património Imaterial da Humanidade e para assinalar os 8 anos sem a Cesária Évora, o Expresso das Ilhas reedita os editoriais publicados pelo Dia Nacional da Morna, em 2018, e pela a morte da Cize, em 2011.

A Morna que nos une
A primeira celebração do Dia da Morna a 3 de Dezembro revestiu-se de um simbolismo especial nestes tempos divisivos que se vivem actualmente. Materializou-se a vontade unânime do parlamento de estabelecer por lei a data de nascimento de B.Léza como o dia para exaltar a expressão musical caboverdiana universalmente conhecida por morna e para homenagear os seus compositores e intérpretes. Também serviu para mobilizar a energia da nação para a tarefa ingente de conseguir a consagração da morna como Património Imaterial da Humanidade, uma pretensão de Cabo Verde que já foi entregue à UNESCO, desde Março deste ano. Ao juntar os caboverdianos, a morna, essa criação do povo das ilhas com mais de um século de existência, reafirma mais vez o seu papel identitário de primeira grandeza. A par com a literatura dos pré-claridosos e dos Claridosos e também com a língua crioula na qual se expressa, confirma-se como um dos ingredientes essenciais na emergência da consciência da nação.
Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo caboverdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas as ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda a gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum.
Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa e racial, género é reconfortante para o caboverdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo. Até tem o conforto de que o que o agarra à sua música não é uma idiossincrasia particular de alguém cuja existência como povo brotou de algumas ilhas no meio do oceano Atlântico. Depois da Cesária nas mornas por ela cantadas ter levado o sentimento do caboverdiano a audiências entusiásticas da França ao Japão, dos Estados Unidos ao Tadjiquistão e do Brasil á China não lhe resta dúvida quanto à universalidade da música criada por B.Léza e outros compositores populares em todas as ilhas. Mais uma razão para se promover a morna com vigor junto às novas gerações, levá-la às escolas, difundi-la na comunicação social ciente de que constitui um factor de unidade nacional fortíssimo que não se pode dispensar nestes tempos em que matérias fracturantes e lógicas de vitimização criam tensões e ressentimentos que com o tempo fragilizam e até ameaçam rasgar o tecido social.
Aliás, às vezes parece que não há uma preocupação muito grande em manter a nação e a consciência nacional protegidas de eventuais forças centrífugas que as podem enfraquecer. E isso pode constituir uma falha prenhe de consequências. É um facto que, por exemplo, nas democracias o dissenso só é possível se houver consenso quanto a questões fundamentais como o pluralismo, a liberdade de expressão, a separação de poderes e a independência dos tribunais. Da mesma forma que a diversidade só é possível numa comunidade nacional se houver a aceitação geral do essencial que une todos os membros. Por analogia, pode-se ver a importância de se reforçar os elementos identitários que ajudam a manter a ideia da nação e a importância do destino comum e compartilhado quando se interage num mundo global com povos, culturas e hábitos diferentes. Ninguém desconhece que a estabilidade política é importante para o país se manter atractivo, mas não se deve perder de vista que é também fundamental não deixar enfraquecer a consciência nacional essencial para que a relação do país como o mundo se estabeleça numa base segura, ousada e com espírito cosmopolita e nunca de vítima, de timidez e baseada no assistencialismo.
A ideia da nação caboverdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido caboverdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir caboverdianos.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 5 de Dezembro de 2018
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Cesária: A revelação de Cabo Verde ao mundo

Morreu a Cesária. Cabo Verde está em choque. De todos os continentes e culturas das mais diversas vêm gestos de pesar e de tristeza pelo passamento da cantora.
Compreende-se que assim seja. É um facto que pessoas das mais diferentes vivências, culturas e níveis de exposição ao Mundo sentem-se tocadas profundamente pela voz sublime da Cesária e gratas pela experiência única de a escutar. Em muita gente constate-se que, ao deslumbre nas actuações da Cesária, segue-se uma curiosidade, quase fascínio, por conhecer a cultura e alma do povo Caboverdiano. Querem saber de que húmus emanam as suas canções e de onde retirou a vivência profunda e marcada que a sua voz tão bem transmite.
Com Cesária as pessoas comuns em todo o mundo passaram a saber da existência de Cabo Verde e dos caboverdianos. Através dela e da morna, o seu género musical de eleição, intuíram a experiência humana verificada durante séculos nas ilhas de Cabo Verde. Umas Ilhas periodicamente fustigadas pela fome e não poucas vezes deixadas isoladas no meio do Atlântico a caldear os ingredientes de uma nova Nação. Europeus, asiáticos, americanos japoneses, latinos e africanos no final dos concertos ou após ouvir um CD sentiam-se tocados pela Cesária e pela morna. Com isso os caboverdianos passaram a saber que tinham sido capazes de produzir no seu cadinho de civilização algo universalmente válido.
Em 1987 com o festival da World Music (música do mundo) foi desencadeado um processo que caminhando, a par e passo com a aceleração da globalização, abriu sensibilidades das mais díspares a géneros musicais vindos de todo o planeta.
Instrumental para isso foram os novos produtores. Surgiram para ajudar muitos artistas na realização do sonho de atingir audiências variadas e universais. A Cesária teve a sorte extraordinária de ter o caboverdiano Djô da Silva como seu produtor. No album “Miss Perfumado” a convergência de talentos na Cesária e no Djô já produzia resultados surpreendentes cujo retorno para o país, para os artistas e para a nação caboverdiana se revelariam incalculáveis.
Nos 20 anos de carreira artística internacional, Cesária Évora encheu de orgulho os corações dos caboverdianos. A sua voz fez o mundo inteiro apreender as nuances da vivência caboverdiana, como era testemunhada por homens simples nas décadas 40, 50, 60 e 70 que nas horas de lazer cantavam as alegrias, as tristezas, os amores, a vontade de partir e a sodade da terra, da mãe e da cretcheu. No meio cosmopolita de São Vicente germinaram as mornas de B.Léza, Amândio Cabral e Lela de Maninha e as coladeras de Ti Goi, Frank Cavaquinho e Manuel d’Novas que Cesária levaria a todos os grandes palcos e revelaria Cabo Verde ao mundo.
No momento de tristeza de despedida da Cesária é fundamental lembrar a sua alegria de viver apesar das terríveis provações que teve de passar ao longo da vida. Lembrar que apesar do muito que lhe foi retirado, conservou sempre a capacidade de dar. A sua oferta maior ao mundo é o Cabo Verde de todos nós e de todas as gerações antes de nós.
Com Cesária e Djô da Silva devemos retirar a convicção de que temos algo de novo e valioso a dar desde que potenciemos o talento e a criatividade das nossas gentes. E que o sucesso estará ao nosso alcance se aproveitarmos devidamente as oportunidades que surgem e criarmos o nível de organização com sentido de eficácia para extrair o maior retorno de todas as iniciativas e empreendimentos.
O momento é de celebração da vida da Cesária que hoje sobe ao panteão dos intelectuais, de homens e mulheres simples que contribuíram para a nação caboverdiana se sinta digna, una, dinâmica e com confiança no devir.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 21 de Dezembro de 2011
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019. 

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segunda-feira, dezembro 16, 2019

Crise nos partidos é crise da democracia

Constata-se facilmente hoje que a crise das democracias tem sido acompanhada, ou às vezes precedida, da crise dos partidos políticos.
De facto, várias são as democracias, umas mais consolidadas (ex. Espanha, Itália, França) outras ainda não tanto (ex. Brasil), em que partidos, anteriormente baluartes do sistema político, em pouco tempo desapareceram ou tornaram-se insignificantes enquanto emergiam novas forças políticas e se projectavam individualidades para posições cimeiras do Estado, sem seguir as vias até aí convencionais de chegada ao poder. Para muitos, a crise de democracia nestes tempos de “recessão democrática”, é tida como resultado de falhas graves na representação política e consequente aumento do distanciamento entre os cidadãos e os governantes. Também se dá como uma das suas causas a percepção de que há opacidade na condução dos assuntos públicos, que favorece certos interesses, frustra a expectativa das pessoas quanto à accountability (transparência e o prestar de contas) do sistema e contribui para o agravamento da desigualdade social. Em todo o caso, o alvo da desconfiança dos cidadãos são os partidos e estes no reagir às pressões e no procurar adaptar-se às novas exigências podem desenvolver dinâmicas potencialmente perigosas para a própria democracia.
Partidos políticos são tidos como essenciais às democracias. É através dos partidos que, legitimamente nos regimes democráticos, se consegue acesso ao poder, se assegura a existência de oposição e a possibilidade de alternância no governo. Este facto faz do partido uma máquina de conquista de poder, mas também uma organização capaz de mobilizar a vontade de largos segmentos do eleitorado, de fazer-se representante dessa vontade e de, em caso de vitória eleitoral, propiciar competência política e executiva para conduzir os assuntos do Estado, a bem de todos. O problema surge quando a vontade de chegar ao poder atropela tudo o resto e aparecem dúvidas se está realmente a representar os eleitores e a governar com vista ao interesse geral. E o problema agrava-se ainda mais quando o partido, em vez de reencontrar o equilíbrio enquanto peça fundamental da democracia representativa, procura cavalgar a seu favor a onda popular de descontentamento, juntando-se aos que se atiram contra as liberdades, o parlamento, os medias e o sistema judicial. Aí todos perdem, como se vê nos países em que já se experimenta com formas de democracia iliberal e onde são notórios os avanços para um maior autoritarismo do Estado com a contracção drástica dos direitos fundamentais.
É evidente que também Cabo Verde não fica imune a esses fenómenos. Uma simples análise da vida partidária, da interacção entre os partidos, do nível do debate político e da credibilidade das instituições democráticas, como o parlamento, demonstram isso. As peripécias à volta da liderança do PAICV vão nesse sentido. Na sexta-feira passada, a candidatura de José Sanches ao cargo de presidente do PAICV desistiu da corrida. Justificou a decisão com o que considerou ser a total falta de condições para a realização de eleições internas no partido. Desde 2004, os grandes partidos caboverdianos , o MpD e o PAICV, adoptaram a via de eleição directa dos seus presidentes para passar uma imagem de maior democracia interna e de menos caciquismo no seu seio. Com a inovação iam de encontro ao que, há algum tempo, vinha acontecendo com outros partidos nos países democráticos, que não só adoptavam eleições directas para os órgãos, como já realizavam primárias para seleccionar candidatos a presidente. Preocupante é quando, aparentemente, fazem marcha atrás e vê-se que, pela segunda vez, individualidades próximas do chamado Grupo de Reflexão no PAICV falham em materializar uma candidatura alternativa e justificam com a falta de garantia de um processo eleitoral justo e equitativo. Ou se constata que a corrida eleitoral competitiva para presidente do partido, no PAICV só aconteceu em 2014 e no MpD, nas três eleições que seguiram à alteração dos estatutos, sempre se optou pela via de candidato único. Pergunta-se onde fica a democracia interna prometida na constituição dos órgãos, o pluralismo de ideias capaz de catalisar o partido e a cultura organizacional dirigida para a criação de futuros governantes com competências múltiplas e espírito de serviço público.
A tentação de responder à insuficiências da democracia representativa com “mais democracia” servindo-se de referendos, primárias e eleições directas nem sempre funcionam. Não poucas vezes tornam a situação muito pior. São processos susceptíveis à demagogia, à intolerância e à exclusão do outro em nome do Povo ou de um bem maior. Introduzi-los nos partidos e não cuidar activamente para se garantir o pluralismo de ideias, o direito à diferença e um ambiente próprio de uma organização de aprendizagem (learning organization) para o serviço público é caminho certo para lealdades fanáticas ao chefe e para se abrir as portas ao oportunismo e carreirismo nas estruturas partidárias e eventual transferência dessas mazelas para as instituições do Estado. Não é por acaso que a Constituição exige que a organização dos partidos se regem pelos princípios de organização e expressão democráticos. Um partido, no governo ou na oposição, que se mostra deficitário na sua democracia interna está efectivamente a prejudicar-se a si próprio e ao país. A sua contribuição para a discussão das grandes questões nacionais é mais fraca, a sua disponibilidade para compromissos é menor e o seu sentido de interesse público facilmente pode ficar comprometido se for sequestrado por interesses pouco claros, sem contrabalanço interno.
Os tempos actuais nas democracias, infelizmente, são propícios a esse enviesamento que ao descredibilizar cada vez mais os partidos aumenta as possibilidades de efectivamente se matar a democracia. E é verdade que já são visíveis sinais de alguma degradação da democracia, tanto no mundo em geral como no próprio país. Nos partidos, os efeitos do desgaste são naturalmente muito maiores e mais difíceis de conter. O foco do partido no poder, seja para o conquistar ou para o manter, conforme se está na oposição ou no governo, serve de pretexto para arregimentar seguidores, calar quem discorda e extremar posições sem preocupação com os efeitos no sistema político. Os apelos à unidade do partido, que na maior parte dos casos não passam de apelos ao unanimismo, servem fundamentalmente para paralisar adversários internos. Já para os cidadãos, seria ideal que os partidos fossem um viveiro de ideias e de talentos para melhor enfrentar os desafios de uma realidade sempre a mudar e cada vez mais complexa. Nesse sentido, impõem-se mudanças urgentes na cultura partidária pouco democrática que vigora por aí. Se se quer preservar a democracia, há que salvar os seus pilares.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 941 de 11 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 09, 2019

Governar com verdade e responsabilidade

Na semana passada Cabo Verde foi classificado pela Internacional SOS como um dos países mais seguros para turistas. É uma boa notícia, considerando que o turismo tem sido, e tudo leva a crer que vai continuar a ser por algum tempo, o principal motor da economia nacional. A questão que se coloca é se o país continuará a ser seguro no futuro próximo ou mesmo se a sua segurança irá melhorar como seria desejável.
Os surtos de criminalidade na ilha de Santiago e na Cidade da Praia, mas também nas outras ilhas, constituem um mau presságio e já preocupam a todos. São a razão por que ainda se mantém o sentimento de insegurança não obstante todos os investimentos públicos em recursos humanos e materiais no sistema de segurança. Ainda bem que até agora os seus efeitos não se fazem sentir nos turistas como parece confirmar a Internacional SOS. Pergunta-se é até quando, se entretanto não se encontrar formas mais eficazes de lidar com a criminalidade, de a combater nas suas origens e de conter o seu impacto nas comunidades e na vida das pessoas em todos os pontos do país.
As autoridades vêm anunciando baixas na criminalidade como, aliás, quase sempre fizeram. O problema é que praticamente não convencem ninguém. O sentimento de insegurança não desvanece. As pessoas não se sentem seguras a andar nas ruas das cidades e vilas do país a qualquer hora do dia como outrora acontecia. Cabo Verde não está a ser a terra de paz e morabeza que os poetas cantaram e com que todos sonham. Há que dizer um basta a isto. Uma terra de paz não pode ter armas circulando e pessoas armadas a assaltar e atirar contra as outras em ajustes de contas e crimes passionais ou por acidente. Para isso é evidente que não chega mexer mais uma vez na lei das armas. É preciso ir mais longe e desarmar a população como já foi sugerido em editorial deste jornal (12/10/2016) e como já o fizeram vários outros países que se viram perante verdadeiras epidemias de crime.
Também para ser terra de morabeza há que apostar forte na civilidade na relação entre as pessoas e numa cultura cívica que ligue os indivíduos à sua comunidade, crie um ambiente de confiança e constitua a base de crescimento do capital social essencial para que haja cooperação entre as pessoas e a vida não seja um jogo de soma zero. Há que ir mais longe na compreensão das razões de tanta violência nas relações entre as pessoas e o que leva conflitos por motivos aparentemente menores a ganharem dimensão desproporcional e a tornarem-se mortíferas. Nesse sentido, há que identificar condicionantes do comportamento, designadamente códigos de honra, rituais de iniciação e demonstrações de masculinidade que estão por detrás de manifestações excessivas de agressividade. Por outro lado há que reconhecer como muitas vezes o crime e a violência são induzidos e alimentados por uma economia subterrânea que tende dilacerar o tecido social e a esvaziar todas as iniciativas dirigidas para tirar as pessoas e as comunidades do círculo vicioso da pobreza, da insegurança e do desespero em relação ao futuro. Sucesso na diminuição do sentimento de segurança terá que passar não só pelo combate eficaz ao crime como também na transformação do ambiente sócio-económico e cultural que o alimenta e sustenta.
E é isso que aconteceu nas cidades e países onde efectivamente se conseguiu diminuir a criminalidade e restaurar a ordem e a tranquilidade pública. Necessário foi porém que primeiro se construísse um consenso geral a todos os níveis que se devia agir decisivamente para pôr cobro à situação, mas sem pôr em causa os princípios e valores que constituem a base de uma comunidade de paz e justiça. Afinal os que cometem crimes não passam de uma pequena minoria e conhece-se da história os graves atropelos sobre a maioria inocente que podem vir de um Estado dotado de poder quase absoluto em nome da luta contra o crime. O caminho para a construção dos compromissos múltiplos entre as forças políticas e entre o governo e a sociedade, indispensáveis para uma acção compreensiva das autoridades nesse combate, não pode passar pela polarização do discurso político que, quando levado ao extremo, deixa de um lado uns que são tidos a favor dos polícias e, do outro, os que “representam” os criminosos. É o tipo de discurso que se ouviu na última reunião plenária da Assembleia Nacional, mas já que se tinha assistido em outras sessões e com o resultado negativo que se conhece. E a verdade é que não sendo simétricos os papéis do governo e da oposição no sistema político quem politicamente paga mais pelo impasse que se cria com esse tipo de situações é o governo. É ele que tem o mandato, os recursos e o poder sobre as instituições para implementar políticas e atingir objectivos de interesse geral como são a segurança e a ordem pública.
Tanto assim é que da análise das eleições nas democracias nota-se que nas eleições o eleitorado – mais do que escolher entre as propostas programáticas das forças políticas em presença – com o seu voto, geralmente, decide se o incumbente merece ter mais um mandato ou se dá ao lugar ao partido alternativo no sistema. Ou seja, quem governa tem que apresentar resultados que vão ao encontro das aspirações da população ao passo que a oposição praticamente tem é que dar prova de vida confirmando que há possibilidade de alternância. Qualquer governo que queira continuar no poder tem que saber constituir a vontade necessária geral na sociedade e nas instituições para que as medidas de política resultem e os objectivos sejam atingidos. Não pode o governo justificar-se com acusações de obstaculização por parte da oposição e muito menos com lamentos patéticos de que o país não merece a actual oposição, detendo ele o poder e o controlo dos recursos do Estado.
Governar com verdade e sentido de responsabilidade é essencial para se construir essa vontade política, mobilizar energias e assegurar que as instituições cumpram as usas funções. De outra forma interesses corporativos emergem e encontram campo para se entrincheirarem ao se aperceberem que as forças políticas dividem-se na tentativa de os apaziguar e agradar. Sacrifica-se no processo a eficiência na utilização dos recursos públicos e eficácia na dispensa de serviços aos cidadãos. É de se evitar, por exemplo, a situação que se viveu durante quase um mês em que todo o país se sentiu consternado e menos seguro com a informação de que um agente da polícia tinha sido morto por delinquentes e que depois veio revelar-se falsa. Segundo o Director da Polícia Nacional terá sido um acidente. A questão que todos colocam é quando é que se soube a verdade do acontecido e porque se optou por não a revelar sabendo o impacto que estava a ter no público e na imagem do país. Desertar as pessoas e a sociedade em situação crítica como essa não contribui para a construção da confiança que se mostra essencial para fazer de Cabo Verde um país seguro. E a verdade é que o futuro depende precisamente da capacidade de realização do sonho de fazer de Cabo Verde uma terra de paz e morabeza.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 940 de 04 de Dezembro de 2019.

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Pressão externa a espevitar o país

Os encontros semi-anuais do governo com o Grupo de Apoio Orçamental (GAO) têm-se revelado momentos interessantes para se confrontar a visão oficial sobre a situação do país com o olhar dos parceiros que financeiramente suportam o Orçamento do Estado.
É claro que o foco da atenção dos parceiros incide fundamentalmente sobre a questão do défice orçamental, do nível de endividamento público e da sustentabilidade da dívida a prazo. Mas acabam por fazer uma análise global sobre o estado da economia nacional, salientando resultados positivos e registando evoluções promissoras na implementação de políticas. Normalmente completam o seu comunicado final com recomendações sobre caminhos a seguir em cuja formulação, muitas vezes, deixam implícitas constatações menos positivas, questionamentos de prioridades e alertas em relação a certos desenvolvimentos. Num ambiente sócio-político em que, para além do confronto entre os partidos com todas as suas limitações e tendência para o sectarismo, não são muitas as oportunidades de debate sistemático sobre a economia, a apreciação que o GAO faz da situação do país influencia e ajuda a condimentar o discurso dos diferentes interlocutores. E como os encontros, em geral, acontecem em Novembro, nas vésperas da apresentação ao parlamento da proposta de Orçamento do Estado, ou então em Junho, um pouco antes do debate parlamentar sobre o estado da Nação, o impacto é ainda maior.
Uma das recomendações que chamaram a atenção da imprensa foi a do eventual impacto de novos incentivos fiscais dirigidos a investidores nas futuras zonas económicas especiais (ZEE). Subjacente está a preocupação em não se ter receitas derivadas das actividades desses operadores que compensem a perda fiscal com os incentivos dados logo à cabeça. Daí que aconselhem a ter em devida conta critérios de custo-benefício na projecção de novos esquemas de incentivos para as ZEEs. Acrescentam ainda que “antes da formulação de políticas é importante entender quais as categorias de investidores que potencialmente se localizariam na Zona e quais os mercados que eles almejariam alcançar”. Com tais alertas procura-se evitar que se repita o que aconteceu no princípio da década quando se endividou o país para financiar os investimentos públicos que iriam dar corpo aos clusters e depois não houve o retorno prometido. O “crowding in” do investimento privado, que viria na sequência do investimento público, não se verificou e Cabo Verde acabou por acumular uma dívida externa que o colocou na posição de um dos países mais endividados do mundo. Agora já não com “clusters” mas com “plataformas” ninguém deseja que aconteça o mesmo.
A verdade é que lendo os parceiros nas entrelinhas do comunicado não há por aí muita confiança que apareça alguma coisa que, pelo menos a médio prazo, se sobreponha ao turismo como motor da economia nacional. Neste aspecto parecem estar em linha com o que diz o Banco Mundial nos seus últimos estudos vindos a público sobre a economia de Cabo Verde. Não obstante, mostram-se optimistas em relação ao crescimento do PIB, que projectam em 5% no médio prazo, estão cientes dos vários factores que o poderão comprometer e também afectar a sustentabilidade da dívida. Vêem uma saída para as incertezas e uma forma de amortecer choques externos em políticas de investimento e uma estrutura de promoção consistente, focada na sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento local e à diversificação económica. Apelam a que reformas sejam feitas e conduzam a mais coordenação e maior competitividade do país para que se concretize o objectivo de ter o turismo a impactar positivamente os outros sectores económicos e a contribuir para prosperidade geral.
A preocupação central do GAO com a dívida pública, actualmente no valor correspondente a 120% do PIB, faz com que avalie e siga com especial atenção os possíveis riscos orçamentais que o Estado pode vir a incorrer por causa das dificuldades financeiras do sector empresarial público, de outras participações empresariais ou ainda da eventual má gestão municipal. Nesse sentido há, por um lado, pressão para se prosseguir com as privatizações e as vendas de participação do Estado e a recomendação para fortalecer nos municípios a gestão dos aumentos dos recursos orçamentais. Por outro lado, nota-se alguma apreensão quanto às recentes aquisições do Estado na telecom e na banca e incentiva-se o governo a esclarecer os planos de alienação das acções compradas. Fica por saber é se as razões para isso são de natureza ideológica ou se advêm dos constrangimentos da dívida pública. De qualquer forma, a orientação parece ser a que Estado deve libertar-se de toda e qualquer intervenção em empresas públicas ou participadas. Já está a acontecer na ENACOL e, em princípio, o mesmo vai verificar-se com a venda de 39% das acções da Cabo Verde Airlines e mais tarde com a ELECTRA.
O problema com esta abordagem da gestão económica do país é que se fixa demasiado na questão da dívida e nos riscos de endividamento, subalternizando tudo o resto. O nível de rigidez que tende a impor deixa qualquer governo sem a necessária flexibilidade para responder a desafios e situações que revelem alguma complexidade. Num país pequeno e arquipelágico como Cabo Verde, onde a intervenção estatal se mostra muitas vezes indispensável para responder a mercados imperfeitos, falhas de mercado e dificuldades em conseguir economias de escala, deve haver sempre espaço para a discussão sobre qual deve ser o papel do Estado. Há que poder questionar, sempre, qual deve ser o escopo da sua actuação e inquirir dos níveis de eficiência e eficácia que deverá demonstrar enquanto prestador de serviços aos utentes e promotor da iniciativa individual e empresarial, vital para o país prosperar. Este é um componente do debate político que o país não pode abdicar mesmo quando conjunturalmente está sob forte pressão externa devido aos constrangimentos da dívida.
Deixar-se apanhar por razões ideológicas, ou sujeitar-se a amarras para receber dádiva externa, não é a melhor via para quem, com a realidade difícil e complexa que tem, devia sempre poder orientar-se pelo realismo e o pragmatismo na sua actuação. O facto não o ter feito por demasiado tempo explica muito as dificuldades com que hoje se depara e o nível mais baixo de desenvolvimento, em comparação com realidades insulares similares. Sabe-se que nem sempre será possível contornar as pressões, mas também se conhecem as consequências de capitular perante elas. Todo o país está hoje a pagar por opções de desenvolvimento mais apostadas na sobrevivência do dia a dia do que no investimento no futuro. As recomendações da GAO vêm relembrar com força que é urgente uma mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 939 de 27 de Novembro de 2019.