segunda-feira, novembro 25, 2019

Para que não seja uma farsa

Na primeira sessão de Novembro da Assembleia Nacional, a matéria da composição do futuro Conselho de Finanças Públicas (CFP) foi dos pontos da ordem do dia que mais celeuma levantou. Em discussão esteve a questão se devia ser o Ministro de Finanças a propor o presidente e dois vogais de entre os cinco membros do conselho ficando os dois restantes por serem indicados pelo governador do banco e pelo presidente do tribunal de contas.
Tratando-se do órgão superior de uma instituição de escrutínio orçamental independente compreende-se que houvesse dúvidas quanto à indicação da maioria dos seus membros pelo ministro de finanças. De facto, o que está em jogo é nomeadamente o avaliar pelo CFP da consistência em termos macroeconómicos das projecções orçamentais e também do cumprimento de regras orçamentais e da dinâmica e sustentabilidade a prazo da dívida pública, todas essas acções sob a responsabilidade directa do ministro de finanças. E o que se quer é que não haja qualquer suspeita no que concerne à sua competência técnica e a independência. Nesse sentido, atribuir competência directa ao ministro na indicação da maioria dos seus membros, mesmo que mediada pelo conselho de ministros, certamente que não ajuda.
Conselhos de finanças públicas foram criados em vários países da União Europeia a partir de 2012 e na sequência da crise do euro e da dívida soberana com o objectivo de monitorização independente das contas públicas. O figurino adoptado para a composição do seu órgão superior foi como aconteceu em Portugal o de fazer o conselho de ministros nomear personalidades indicadas em proposta conjunta pelo presidente do tribunal de contas e pelo governador do Banco central. Pela via de proposta conjunta de duas instituições com altas funções técnicas e uma cultura organizacional de independência procurava-se garantir que os indicados reunissem qualidade técnica e fossem independentes. Associando a isso, entre outros atributos, mandatos relativamente longos e não renováveis, autonomia administrativa e financeira e inamovibilidade dos seus membros assegurava-se que poderiam ser uns verdadeiros watchdogs fiscais. A experiência portuguesa neste aspecto foi rica porquanto não faltaram tensões entre o CFP e outras entidades públicas incomodadas com os seus pareceres, à medida que o país nos anos difíceis da Troika e nos anos seguintes procurava fazer uma gestão orçamental, e em particular do défice e da dívida, em conformidade com as exigências europeias.
A adopção por Cabo Verde de instituições com esse perfil tem razão de ser. Quer-se com isso granjear credibilidade na gestão da contas do Estado, transmitir confiança que as previsões orçamentais de diminuição do défice orçamental vão-se verificar e que se irá trabalhar para que a dívida pública, ainda a níveis demasiados elevados, seja sustentável. E porque atingir tais objectivos é essencial para o país ser atractivo para o investimento externo e assegurar um bom ambiente de negócios, não se pode ficar a meio de caminho na forma como são constituídos os órgãos e alimentar dúvidas futuras quanto à sua competência e independência. Também não é procurando inovar com exigências de 15 anos ou 10 anos de experiência para os cargos de presidentes e vogais do CFP, que mais parecem critérios administrativos de antiguidade, ou estabelecendo que os órgãos fiquem adstritos à Chefia do Governo que se vai garantir capacidade técnica e autonomia.
Em instituições similares no estrangeiro, designadamente em Portugal, por causa do elevado grau de tecnicidade exigido abre-se a possibilidade de nomear vogais do CFP que não sejam nacionais do país, uma ideia que podia revelar-se interessante em Cabo Verde ainda carente de quadros altamente qualificados em domínios chaves. Outrossim, porque quem é fiscalizado e avaliado é o governo que executa o orçamento, afirma-se a autonomia fazendo o CFP tomar posse perante o presidente do parlamento que é um órgão plural e fiscaliza o poder executivo. Um grande desafio de todos estes conselhos fiscais seja nas experiências mais antigas como na Holanda ou nos Estados Unidos e mais recentemente na Suécia, Reino Unido e Hungria é garantir a autonomia e sobreviver ao descontentamento e críticas que num momento ou outro provocam junto de quem governa. Independentemente de algum mal-estar que eventualmente podem provocar, o facto é que os CFP com as suas análises, estimativas e monotorização da execução orçamental, ao trazer dados acima de qualquer suspeita, podem dar um contributo enorme para um debate político mais saudável e útil sobre a situação económica e financeira do país.
A opção por ter um Conselho de Finanças Públicas não deve ser visto como mais uma dessas medidas cujo principal objectivo é passar a imagem do país como de “bom aluno” junto das organizações internacionais e da União Europeia, na perspectiva de conseguir mais ajuda. Fez-se e continua-se a fazer muito disso, des­cur­ando os resultados e possíveis benefícios das medidas adoptadas e fixan­do simplesmente nos efeitos imediatos dos fluxos externos. Seria bom que no acaso actual houvesse um comprometimento para se ter um órgão de escrutínio orçamental realmente inde­pendente. Para isso, seria fundamental que se alterasse o quadro de nomeação dos seus membros porque como popularmente se diz não basta à mulher de César ser séria, tem que parecer ser séria. 
Nesse sentido não bastam as garantias do ministro de finanças quanto à indicação dos três membros do CFP, há que alicerçar a nomeação em bases institucionais sólidas. Um simples olhar pela actual estrutura do governo e pela actuação dos governantes não deixa dúvidas quanto à abrangência das funções do ministro de finanças que também é vice-primeiro-ministro. O poder que acaba por concentrar não deixa de causar desequilíbrios com impacto até na relação com os colegas ministros como visivelmente ficou patente ao público no processo de preparação do orçamento de 2018 e actualmente se nota no que alguns críticos já chamam de subalternização do papel do primeiro-ministro. Num quadro desses dificilmente se mostra credível que as suas indicações para os vários conselhos de administração de entidades públicas e empresariais são efectivamente escrutinadas em sede de conselho de ministros. E como parece, acreditando no que foi dito no parlamento por todas as forças políticas, que ninguém quer um Conselho de Finanças Públicas, que no futuro venha a revelar-se uma farsa, então que se legisle em conformidade para lhe garantir competência técnica e independência efectivas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 938 de 20 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Resiliência democrática precisa-se

O trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim aconteceu no sábado passado, dia 9 de Novembro. Por todo o mundo e em especialmente nas democracias o evento foi saudado com especial relevo nos jornais, rádio e televisão e relembrado em conferências, fóruns e artigos de opinião.
Nas universidades, think tanks e centros de estudos políticos e estratégicos foi matéria de apreciação sistemática em múltiplos encontros procurando perspectivar como foi possível regredir da euforia inicial e da aparente imparável vaga de democracia dos primeiros anos da década de noventa para o que agora se configura como uma espécie de recessão democrática. Foi também momento para se interrogar sobre as razões que têm levado multidões anteriormente entusiásticas com a liberdade e a democracia a apoiar populistas e demagogos que abertamente se declaram iliberais e questionam os direitos fundamentais, o primado da lei e a independência dos tribunais. E ainda para se saber porque gente que lutou e sofreu pelos ideais da cidadania plena, do civismo e do pluralismo presentemente se deixa arrastar por demagogos que cavalgam as ondas do medo contra o outro e cultivam o ódio sob a capa de políticas identitárias.
Em Cabo Verde, os trinta anos da queda do Muro de Berlim passaram praticamente despercebidos. Apesar do Cabo Verde moderno e democrático também ser parte vaga da democracia que partindo do desmoronamento do comunismo e do império soviético se propagou pelo mundo inteiro e derrubou regimes autoritários e totalitários, não há uma assunção explícita dessa herança. E isso é particularmente sentido nos órgãos de comunicação social pública que pela sua própria missão de informar e formar deviam ser os primeiros a cultivar os princípios e valores da liberdade e da democracia inscritos na constituição que resultou dessa vaga da democracia. A verdade é que mais facilmente os veremos em menos de um mês a comemorar os 45 anos da tomada da Rádio Barlavento, um acontecimento que efectivamente marcou o fim da liberdade de imprensa no país e da presença de privados na comunicação social durante quinze anos. Assim se tem verificado durante anos seguidos e dificilmente este ano será excepção.
O mesmo se pode dizer da Universidade Pública que se esperaria que fosse o grande centro de debate de ideias e a sede da mais ampla liberdade intelectual e liberdade de expressão e nessa medida relevasse o grande acontecimento da Queda do Muro de Berlim que inaugurou uma nova era no país e no mundo. Estranhamente a preocupação da universidade pública criada em 2006 é, nestes dias de Novembro e Dezembro, de comemorar 40 anos do ensino superior em Cabo Verde que supostamente teria sido iniciado com um curso de formação de professores em 1979. Um curso que o então Primeiro Ministro na abertura solene do mesmo definiu o perfil do professor pretendido como “um professor nacionalista e comprometido com a materialização dos princípios políticos do Partido, o PAIGC”. Não se percebe que tipo de valores se pretende resgatar de uma ligação com tal curso de formação de professores quando da universidade pública se espera que, em oposição aos propósitos que o nortearam, preze e exalte os princípios e valores de liberdade intelectual, da autonomia e da tolerância.
O descaso de entidades e de instituições públicas em matéria de defesa da liberdade e da democracia não é algo que só acontece em Cabo Verde. Queixa-se por esse mundo fora que uma das razões da recessão democrática actualmente vivida advém do facto de já não se ter memória presente do que é viver sem liberdade e sem uma imprensa livre, ser sujeito a prisões arbitrárias e não contar com um sistema judicial que administre justiça e obriga o Estado a cumprir a lei. Por isso que há quem queira testar o sistema estabelecido e submetê-lo a pressões anti-sistemas vindas de demagogos e populistas. Há quem nem queira se responsabilizar pela sua manutenção e cultive o cinismo em relação às instituições e à classe política. Há ainda quem sonhe com democracias de participação perfeita, de transparência absoluta e de corrupção zero. E tudo o que não corresponder, a todo o momento, ao sonho é motivo para indignação, seguido de frustração e posterior apatia ou militantismo violento. Estranhamente ninguém espera que a democracia soçobre por causa dos solavancos e choques a que é submetida. Tomam-se as liberdades e a democracia como garantidas mas a realidade é que não estão mesmo, como se pode constatar da ascensão do autoritarismo em vários países com tradição democrática.
Em Cabo Verde acresce-se a tudo isso o facto de a defesa dos princípios e valores democráticos ser enfraquecida pela presença forte de vários simbolismos dos primeiros anos da independência. As instituições e a própria classe política dividem-se em procurar equilíbrios e convivências de valores que de facto estão nas antípodas um do outro. O resultado é que prejudica a assunção de uma cultura democrática de real tolerância do outro, abre espaços para ambiguidades onde vão refugiar todas as resistências a reformas e à modernização do país, impede efectivamente o exercício da liberdade intelectual e não deixa energia para pensar o futuro e nele investir. A falta de “resiliência” democrática que tudo isso traduz pode revelar-se ainda mais problemática no ambiente actual no mundo em que as democracias estão sob ataque, os efeitos negativos da globalização aumentam com o enfraquecimento da ordem mundial e as expectativas das pessoas tendem a exacerbar-se com o acesso às redes sociais e total exposição ao que o mundo pode oferecer. Acossada a democracia poderá não haver reservas em termos de confiança e convicção que permitam resistir e recuperar-se de estragos causados.
Sinais preocupantes já se notam. As reacções ao surto da criminalidade e à insegurança não têm sido as melhores. Algumas configuram compressão de liberdades para responder a problemas de segurança. Outras querem “colaboração” do sistema de justiça acusando-se de demasiadamente garantístico. Ainda outras clamam para uma espécie de guerra ao crime com envolvimento de militares. O que não se vê é uma efectiva responsabilização pela situação acompanhado de um diagnóstico que vá além da procura de bodes expiatórios e de justificação porque é que depois de tantos meios materiais e humanos disponibilizados não há resultados sustentáveis. Entre os pilares da democracia está a exigência de “acountability” e o respeito pelo primado da lei os dois princípios de um Estado de Direito que os acontecimentos que se seguiram à queda do Muro Berlim tornaram possível. Há que os preservar e manter sempre a memória de como foram conquistados e como seria trágico ter de os perder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 937 de 13 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 11, 2019

Imperativo diminuir a insegurança

A sensação de insegurança piorou nas últimas semanas na ilha de Santiago, em particular na cidade da Praia. Assaltos, homicídios e o assassinato de um polícia em rápida sequência deixaram toda a gente preocupada e intranquila e exacerbaram o sentimento de insegurança que nunca tinha realmente diminuído apesar dos dados oficiais apresentados que apontavam para a baixa da criminalidade. No meio da confusão que se tem gerado, a tentação para se fazer o aproveitamento político das ocorrências policiais à medida que são dadas a conhecer só tem piorado a situação.
Paralelamente, em surdina ou às claras, sucedem-se acusações dirigidas contra entidades integrantes do sistema de segurança e de justiça amiúde provenientes do seio do sistema e na lógica de “passar culpa”. De todo esse exercício de stress público, procura de bodes expiatórios e aproveitamento político já se sabe que vai acabar por resultar em promessas de mais meios materiais e humanos em particular para a polícia nacional. A exemplo do que se passou em situações similares no passado recente (2014, 2010). O Governo já veio a público comprometer-se em os facultar.
Se a experiência do passado serve como ensinamento, tudo leva a crer que a situação actual até pode vir a melhorar e o número de assaltos diminuir e os assassinatos tornarem-se mais raros, mas é uma questão de tempo até que aconteça a próxima crise. Aí repete-se o que já se viu antes e, como das outras vezes, volta-se a fechar o circuito com mais meios. Entretanto, os problemas ficam por ser identificados, não se desenvolvem estratégias efectivas para os enfrentar e não se fazem os ajustamentos necessários em termos organizacionais, operacionais e de adequação do próprio sistema de forças para os resolver. No fim do dia é de espantar que com isso não haja uma gradual viciação de partes integrantes do sistema porque deixados a si próprios, numa espécie de círculo em que picos de criminalidade são seguidos de mais meios, mais salário e de outras prerrogativas.
Torna pior a situação o posicionamento das forças políticas. Como se viu na semana passada e ao longo do debate sobre a situação da justiça no parlamento, a tentação é emprestar voz a reivindicações de órgãos integrantes do sistema na perspectiva de ter ganhos políticos imediatos. Em intervenções, mas também em decisões tomadas, não se tem o devido cuidado com as consequências em termos de custos directos para o Estado, da perda de uniformidade na estrutura de salários do sistema e no convite implícito a “greves de zelo” de parte de certos agentes. São acções que põem em causa a eficiência e a eficácia do sistema e se tornam num ponto de partida para um novo ciclo de reivindicações. Nos últimos anos viu-se o impacto orçamental das mudanças salariais e outros benefícios dos oficiais de justiça, das polícias, agentes prisionais, dos militares e os efeitos dinâmicos de arrastamento que essas medidas tomadas em tempos distintos tiveram subsequentemente nos próprios funcionários em forma de novas reivindicações e até desembocando em manifestações laborais diversas e em greves inéditas da polícia.
Pela voz de deputados na última reunião plenária da Assembleia Nacional a ler missivas de sindicatos já se sabe que se pode estar na iminência de um período de turbulência na magistratura judicial devido a reivindicações salariais com possibilidade de greve em cima do processo de apresentação de candidaturas para as eleições autárquicas. Tal eventualidade que a acontecer iria mexer com a integridade e a funcionalidade do sistema político e do próprio Estado que não devia deixar qualquer força política indiferente e muito menos numa posição activa de promover dinâmicas complicadas. Há que entender que certas decisões particularmente em sectores que são de soberania ou representativas da autoridade do Estado devem são tomadas de forma compreensiva e não deixaram perceber fragilidades que comprometam o todo. A questão revela-se ainda mais complicada se se tiver em consideração que, no quadro actual de contenção do défice orçamental, ser colocado em posição de deixar disparar as despesas com o pessoal implicará, para compensar, sacrificar o investimento público, actualmente segundo o Banco Mundial correspondente a 4,4% do PIB de um pico de 15% em 2010, com consequências adversas designadamente em serviços essenciais prestados ao público.
É essencial acabar com o sentimento de insegurança que teima em apoderar-se das pessoas. Cabo Verde deve ser a terra segura tranquila que todos os seus filhos sonham e cuja imagem pretende-se projectar para fora de modo a fazer aumentar o turismo e atrair investimentos para o país. Garantir a segurança é a missão primordial de qualquer Estado e para o caso de Cabo Verde é o pilar indispensável para o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento. A conse­cução de políticas com foco na segurança implicaria a reavaliação e a adequação do sistema de forças no país como aparentemente ficou estabelecido no programa de governo. O problema é que na prática isso até agora não se verificou.
Optou-se por deixar as forças de segurança como estavam e só se procurou resolver os problemas criados na adopção pelo governo anterior da actual configuração de forças e colmatar as deficiências de meios encontrados. Se antes não tinha dado resultados que perdurassem no tempo a ponto de diminuir o sentimento de insegurança da população dificilmente fazendo o mesmo teria resultados diferentes e sustentáveis. As coisas complicam-se se começa a ficar manifesta a incapacidade dos políticos em fazer as mudanças necessárias para uma nova abordagem dos problemas de segurança. Uma incapacidade que a manter-se se traduziria numa erosão de autoridade com as consequências que se pode antever.
A estabilidade das democracias depende em muito da clara subordinação das forças armadas e segurança às autoridades civis legitmamente estabelecidas. Democracias sob tutela ou sob chantagem dessas forças ficam num estado de fragilidade que não lhes permite consolidar as suas instituições nem criar as condições para se desenvolver e prosperar. Guiné-Bissau é um caso paradigmático do tipo de erosão institucional que pode acontecer quando tais relações não são claras. Em Cabo Verde, fruto de histórias passadas, resistências a reformas de fundo tendem a subsistir em instituições que às vezes se veem quase como um estado dentro do estado. Mesmo em Portugal, 45 anos depois do 25 de Abril, há resquícios disso como ficou patente no caso do roubo de armas em Tancos, manifestando as autoridades civis uma fragilidade que o colunista Vasco Pulido Valente caracterizou de “desmaiar perante uma farda”. Em Cabo Verde parece acontecer algo similar e não há a autoridade necessária para fazer as reformas fundamentais. Há que mudar isso e sendo algo vital deveria merecer um consenso das forças políticas. O que está em jogo é conseguir que o sentimento de insegurança da população diminua de forma permanente para a tranquilidade de todos e um futuro melhor para o país.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 936 de 06 de Novembro de 2019.

segunda-feira, novembro 04, 2019

Lose-lose

Os dados recentes dos relatórios do Doing Business e da Competitividade, que colocam Cabo Verde respectivamente na posição 137 entre 190 países e 112 entre 141, mostram o quão difícil tem sido fazer reformas no país. No início da década, o índice do Doing Business estava em 142.
 Depois de algum progresso em que chegou a 119 em 2012, mas que se revelou passageiro, entrou numa trajectória menos positiva que devia interpelar a todos. Aparentemente as resistências à mudança existentes no aparelho do Estado e na estrutura sócio-económica do país têm sido capazes de conter o impacto das reformas mesmo quando vêm de governos ideologicamente diferentes e com abordagens distintas. Caso para notar com inquietação o quanto o confronto dos dois grandes partidos, pretendendo ser protagonistas num jogo de soma nula em que o ganho de um é a perda do outro, tem-se revelado afinal ser um jogo (lose-lose) no qual todos perdem.
Situações similares acontecem em outros países. Um exemplo recente é a Argentina que no domingo passado elegeu um novo governo em plena crise económica e na sequência de um plano de resgate do FMI de 57 bilhões de dólares. O problema é que esse governo é do mesmo partido que tinha lá estado há cinco anos atrás e deixara o país numa situação praticamente de falência. Desde o fim da segunda guerra mundial que os dois partidos têm-se substituído no poder sem conseguir resolver os problemas de desenvolvimento desse país tão promissor, considerando os extraordinários recursos que dispõe. Alternam-se em políticas mais assistencialistas ou mais promotoras de iniciativa individual, mas não se constroem bases seguras de desenvolvimento que permitiriam às populações aumentar significativamente os seus rendimentos e criar coesão social com menos desigualdade. Para além das pessoas que vêem as suas expectativas sistematicamente goradas, desgastam-se também as instituições que perdem credibilidade e efectividade. Muita da agitação que se vive actualmente em vários países da América Latina tem aí a sua origem.
Também em Cabo Verde poder-se-á estar a verificar a fragilização das instituições derivado do impasse que se constata nas reformas e consequente dificuldade das pessoas em descortinar os efeitos das medidas de política no seu quotidiano e nas suas expectativas de futuro. O fenómeno é agravado pela tentação de no jogo político se extrapolar as diferenças, exacerbar as críticas e não deixar espaço para uma análise mais ponderada de possíveis soluções e de como ultrapassar as dificuldades no processo de implementação. A falta de consenso mínimo num conjunto de questões essenciais cria a sensação de insegurança, incentiva a que se resolvam conflitos por vias outras e acaba por promover uma cultura de desenrascanço que valoriza o informal e desencoraja o civismo e o espírito de cooperação. Em tal ambiente reforçam-se as resistências que vão se opor a reformas, venham de onde vierem, deixando o país num círculo vicioso que depois de iniciado dificilmente se escapa como se pode constatar do caso referido da Argentina.
A realidade do mundo de hoje com as oportunidades abertas pela globalização, com acesso à informação como nunca antes se viu e a possibilidade de comunicação numa escala sem precedentes alterou significativamente as expectativas de virtualmente toda a gente. Lidar com a nova realidade não tem sido fácil tanto a nível individual como a nível colectivo. O choque das expectativas com a realidade muitas vezes acaba por desembocar em frustrações pessoais, em raivas contra as elites e em ressentimentos dirigidos a outros grupos identitários. O alvo primeiro da desconfiança e do cinismo no mundo de hoje é a democracia representativa em nome de mais democracia mas também é a verdade dos factos e a universalidade da ciência e do conhecimento. Muito mal fazem os políticos e os seus partidos sempre que na luta pelo poder exploram essa tendência actual de pessoas e grupos de descredibilizar as instituições da democracia, em particular o parlamento, põem em causa os direitos humanos, que são um ganho de civilização, por supostamente servirem aos “bandidos” e incentivam um relativismo que abre às portas à desinformação e à manipulação do sentimento das pessoas. Depois, como se pode constatar de vários casos, mesmo em democracias consolidadas, os políticos e a política acabam por ser vítimas de si próprias quando capitulando a democracia sob o impacto de forças anti-sistemas com ela vão todas as suas instituições, a começar pelos próprios partidos.
Um sinal que o sistema político em Cabo Verde já não está a gozar de boa saúde é o facto de que tudo, do mais insignificante ao mais importante e dramático, é motivo para batalhas campais entre forças políticas onde quase tudo vale. Choques entre os partidos acontecem por tudo e por nada, designadamente por causa da seca, de gafanhotos, lagartixas, planos de salvamento do gado, barragens, preço da água, estradas asfaltadas, vinda de aviões, chegada de barcos, assaltos, mortes, reivindicação salarial, crianças desaparecidas etc. A discussão nunca é serena ou substantiva. Todos procuram ganhar à custa do outro. Nenhuma desgraça é suficiente para se juntarem e desenvolver uma estratégia que poderia romper com resistências construídas e abrir finalmente um caminho para a prosperidade que não deixasse muitos de lado. Com a seca, que vai no terceiro ano consecutivo e revelou a vulnerabilidade da população rural, não aconteceu. Com a insegurança, que é especialmente sentida na Cidade da Praia mas também em outros pontos do país, também não aconteceu. Com as falhas que o sistema educativo dá provas todos os dias e todos fingem ignorar, não se conseguiu elevar o país para um patamar superior. O mesmo acontece com as insuficiências que o sector da saúde já vem demonstrando à medida que os custos aumentam consideravelmente.
Prefere-se com discursos inflamatórios ficar neste jogo de quebrar a confiança do eleitorado num e noutro partido para tirar proveito próprio e não perceber que, com isso a situação, de facto é de lose-lose em que todos saem a perder. Viu-se isso no debate de ontem no parlamento com o Primeiro-ministro em que a barreira entre as forças políticas, de facto, não foi quebrada nem mesmo quando um deputado citando o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, lembrou que assim como não há Terra 2, não há Cabo Verde 2. Fica deveras evidente que o país e as suas gentes mereciam melhor e que é dever de todos facultá-lo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 935 de 30 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 28, 2019

O vale tudo tem custos

Aproxima-se o debate anual no parlamento sobre a situação da justiça e em antecipação já os actores políticos se posicionam com as queixas e as críticas de sempre.
Todos focam na questão da morosidade da justiça, pedem-se mais meios no pressuposto que o problema central é de falta de meios e notam-se as tentativas de encontrar culpados para a situação. Repete-se o jogo que, pela forma como nele se entra e se pratica, tende a simplificar o que é complexo, atiça as achas para mais um “round” da luta político-partidária estéril e convida outros protagonistas do sistema a baixar os braços ou a fazerem-se de desentendidos. Olhando, porém, para o sistema sem os filtros habituais de natureza política ou corporativa as constatações não são muito diferentes das que o sociólogo António Barreto recentemente identificou na justiça portuguesa quando se referiu “Ás regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e Ministério Público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.” 
O Estado de Direito democrático instituído com base no respeito pelo primado da lei depende para o seu funcionamento pleno da independência efectiva dos tribunais e da autonomia do Ministério Público. Seguindo a moldura institucional da Constituição de 1992 há quase trinta anos que do sistema herdado dos anos antes e depois da independência procura-se construir um poder judicial com um nível de eficácia suficiente para administrar a justiça, garantir os direitos fundamentais e contribuir para preservar a paz e a segurança de todos. As dificuldades reconhecidas por todos com que o sistema ainda se depara, funcionando aquém do desejável, deviam deixar a claro os obstáculos a serem vencidos ou ultrapassados sejam eles materiais, ou de natureza organizativa, cultural ou formativa.
O comprometimento de todas as forças políticas com a independência do poder judicial é inequívoco. As leis que erigiram o sistema foram aprovadas por quase unanimidade dos votos dos deputados de todas as forças políticas. Certamente que outras leis que eventualmente poderão aprimorar mais o sistema no sentido de uma efectividade maior a todos os níveis se devidamente negociadas terão o acordo dos partidos representados no parlamento. Prova disso foi o consenso conseguido na revisão constitucional de 2010 que transferiu para os conselhos de magistratura judicial e do ministério público a gestão efectiva dos recursos dos tribunais, das procuradorias e das respectivas secretarias. Também o engajamento dos sucessivos governos em disponibilizar recursos ao sistema da justiça pode ser comprovado por todos.
Daí que as razões para a persistente ineficácia dos tribunais traduzida na morosidade da justiça não terão somente a ver com o sistema em si ou com falta de vontade política. Deverão contribuir para as ineficiências e a falta de eficácia outros condicionantes cujos efeitos perniciosos também se fazem sentir em outros sectores da vida económica, social e cultural onde os retornos dos investimentos feitos não se traduzem, por exemplo, em maior qualidade do ensino, na diminuição perceptível da insegurança, na melhoria significativa da competitividade, no aumento de produtividade e em maior civismo. Condicionantes esses que devem ser identificados e ultrapassados num esforço colectivo mas dentro de um quadro de pluralidade, para que o país acumule competências, veja os seus propósitos realizados e invista com confiança no futuro.
Infelizmente demasiadas vezes acontece o contrário. Não são os condicionantes que são eliminados, mas sim as resistências à mudança que se vêem reforçadas no ambiente de crispação política criado pelos partidos, quando focados na procura de pequenas vantagens tácticas ou no aproveitamento de alguma oportunidade para passar uma má imagem do adversário. O país ouviu na semana passada as declarações da presidente do Paicv a envolver em dúvidas e suspeições a nomeação do novo procurador-geral da república, dizendo que “é estranho que só depois de se terem avançado com processos, que envolviam personalidades muito próximas do actual poder, é que houve essa pressa na mudança do PGR”. Foi algo totalmente desnecessário, mas que se justifica com a lógica do “vale tudo”.
As quatro nomeações anteriores do PGR pelo presidente da república sob proposta do governo nunca mereceram apreciação do género pelas forças políticas precisamente porque é vontade de todos que o PGR seja independente do governo e esteja acima de qualquer suspeição. Declarações feitas em ambiente de stresse, embora graves, mas sem qualquer impacto institucional não devem servir de pretexto para pôr em causa um processo de substituição que cai dentro da normalidade, considerando que o fim do mandato se verificou no passado mês de Maio e o novo mandato inicia-se com a abertura do ano judicial. Desde 2003 que a prática tem sido a nomeação do PGR para um único mandato de cinco anos. Politizando a justiça o que se consegue é a descredibilização do sistema e que em consequência aumente a tentação de agentes na administração da justiça de se desresponsabilizarem pelos resultados. Podem continuar a pedir mais meios e regalias, mas passam a responsabilidade pelos resultados aos políticos ávidos nas suas tricas políticas de oportunidades para se culparem uns aos outros.
É evidente que ninguém ganha com isso, muito menos quem quer uma justiça célere e eficaz. Também a prazo não ganham as forças políticas que, num momento, prontificam-se a suportar um poder judicial independente e a enfrentar a complexidade da tarefa de pôr a funcionar com eficácia todas partes do sistema, salvaguardando a sua independência e a autonomia, e, noutro momento, parecem dispostas a alimentar teses conspirativas que o descredibilizam. Globalmente esses avanços e recuos e a falta de consistência estratégica na implementação de políticas tendem a aumentar a ineficiência do sistema no seu todo porque não é só a justiça que é afectada. Também o são outros sectores da vida do país com impacto directamente nas pessoas, na economia e na sociedade. A credibilidade da democracia sofre no processo porque para os cidadãos a política deixa de ser o processo para se encontrar as melhores vias para o desenvolvimento para passar a ser simplesmente jogadas de poder onde tudo é possível. Há que rejeitar definitivamente a lógica do “vale tudo” na política. Os custos presentes e futuros são incomportáveis.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 934 de 23 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 21, 2019

Chega de panaceias

O discurso do governo particularmente pela voz do Vice-primeiro-ministro e Ministro das Finanças tem sido dirigido para os jovens e para a necessidade de investimento na formação profissional.
Nesse sentido, segundo Olavo Correia, até agora 7 mil jovens foram beneficiados com formação e estágios profissionais, mas a meta a atingir é de 10 mil beneficiários. A proposta do Orçamento do Estado para o ano de 2020 prevê 358 mil contos para financiar a formação e 387 mil contos como comparticipação do Estado em estágios profissionais. E a ideia é de se ter um centro de formação profissional em todas as ilhas. Com essas medidas o governo reitera a sua aposta nos jovens e sugere que está na linha de cumprir com a promessa de campanha, várias outras vezes repetida, de criação de 45 mil postos de trabalho e de ter uma economia a crescer a uma média de 7% até ao fim da legislatura. O facto de até agora só se ter atingido um crescimento de 5,1% em 2018 (o World Economic Outlook de Outubro de 2017 põe o crescimento numa média de 5 % nos próximos anos) e de ser baixado o desemprego para 12,2% revela as dificuldades e a complexidade da situação socio económica e laboral que não se compadecem com panaceias, voluntarismos e apelos motivacionais.
Mesmo com as melhores das intenções são vários os obstáculos a um aproveitamento adequado de um investimento massivo na formação profissional. Na sua página oficial do Facebook, o VPM e Ministro das Finanças começa por reconhecê-los ao apelar que se valorize a formação profissional ao mesmo nível de outras carreiras, ocupações e profissões. Depois constata a tentação de no processo de contratação se descartar os formados nas escolas profissionais a favor de trabalhadores sem qualificação e recomenda a adopção de carteiras profissionais para que possam ter emprego digno. Por último propõe que as empresas que recebem renúncia fiscal do Estado sejam obrigados a recrutar jovens formados. Outros problemas certamente existirão designadamente no ajuste entre as ofertas de formação e a procura real de qualificações, em conseguir a sinergia certa entre o centro de formação e o ambiente empresarial que favoreça a qualidade e em ganhar dimensão crítica em termos de número e rotatividade de formandos que permita aos centros consolidar-se como instituição de formação.
Sucesso na implementação de políticas depende muitas vezes da devida articulação com outras e do encadeamento no tempo certo que se fizer das medidas previstas. Razão para que isoladamente não sejam tomadas como panaceias que vão resolver todos os males. No caso da política de formação profissional, é evidente que só se terá grande absorção de mão-de-obra formada se houver boa evolução da exportação de bens e serviços e do turismo tendo em conta que a procura interna é limitada e não suficientemente diferenciada. Para se conseguir isso porém é fundamental que o país seja competitivo apresentando entre outros factores uma mão-de-obra especialmente preparada para ser atractiva para investidores que tenham na mira mercados externos. Também internamente constrangimentos como a informalidade da economia e a resistência das empresas em contractar profissionais terão que ser confrontados decisivamente sob pena de se ver todo o investimento público na formação a perder-se ou a ficar subaproveitado. Não se pode ter uma situação similar àquela descrita pelo presidente da associação dos taxistas da Praia à agência Inforpress de já estarem a circular um número de táxis clandestinos quase igual aos legalmente estabelecidos depois de todo o esforço feito por várias entidades para regularizar a situação.
Corre-se o risco de frustrar as expectativas das pessoas quando se extrapola os efeitos de certas políticas ou o impacto de certas obras ao mesmo tempo que se simplifica a realidade e não se dá à sociedade a dimensão real dos problemas. Quantas vezes se anunciaram obras que seriam estruturantes e catalisadores do desenvolvimento em ilhas ou partes do território nacional para depois se constatar que afinal “a montanha pariu um rato”. Não é que os investimentos feitos em portos, aeroportos, estradas, barragens, habitação social, escolas, etc, não tenham trazido algum benefício. O problema é que os benefícios são muito menos do que os prometidos e esperados e os custos são muito maiores do que inicialmente assumidos porque não acompanhados de outras acções e políticas com as quais deveriam criar sinergia e potenciar a criação de valor.
O resultado por exemplo é, para as autoridades, como reconciliar os surtos de insegurança que acontecem na cidade da Praia com os investimentos de milhões feitos no âmbito da cidade segura e também em garantir à polícia nacional os meios e os incentivos para serem efectivos nas suas funções. Ou congratular-se com o sucesso já conseguido da CV Airlines no hub do Sal ao mesmo tempo que declara o governo sem poder para baixar preços das passagens aéreas como se não tivesse políticas para o sector de transporte aéreo e dever de dar combate a práticas monopolistas. Ou ainda assistir-se ao investimento na educação na ordem dos 12 milhões de contos na proposta do OE e se ter a sensação generalizada de que está longe o retorno desejável em termos de qualidade, de preparação dos jovens para o futuro e de assegurar uma base em termos de competência linguística, educação humanística e base científica e técnica.
Em Cabo Verde sempre se alimentaram sonhos do tipo: se o país chovesse ter-se-ia fartura e todos seriam felizes. Por causa disso a mobilização da água torna-se panaceia e investe-se em sistemas de captação, mas descuram-se os passos seguintes para se ter uma agricultura que não seja de simples subsistência. No fim do dia a precariedade persiste, as populações continuam vulneráveis e paradoxalmente não se alimenta uma cultura de poupança de água como deixam saber as revelações vindas a público de perdas escandalosas de água nas redes públicas. Talvez por razões similares tende-se a acreditar que mesmo ficando tudo o resto igual se houvesse crédito o país estaria a fervilhar de actividade com o empreendedorismo ou que se pode criar cyber islands com investimentos dos outros em data centers sem que no domínios das Tecnologias de informação (TICs) se se verificasse um esforço sistemático de formação nas escolas e universidades durante anos seguidos, a exemplo de outros países.
Não devia ser assim. O país sem recursos, com população diminuta e localização geográfica não muito vantajosa apesar dos devaneios em contrário devia encarar a problemática do desenvolvimento com mais humildade, responsabilidade e abertura para o diálogo. A política infelizmente não tem servido para isso. Bem pelo contrário, tem-se prestado ao camuflar dos problemas, à insistência em panaceias de toda a espécie e em levar as pessoas numa montanha russa de expectativas altas e frustrações profundas. Há que dar um basta a isso.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 14, 2019

Restabelecer os equilíbrios

O descontentamento das pessoas em relação à democracia é hoje um fenómeno quase universal. Multiplicam-se as críticas sobre o seu funcionamento e suposta ineficiência e aumentam as dúvidas quanto à sua capacidade de encontrar soluções para os problemas da actualidade.
 Hoje fala-se da recessão democrática, da crise de representação e do défice de participação e não é para menos. Pelo tom usado por muitos nas redes sociais em constantes momentos de indignação perante situações grandes e pequenas, em acusações de corrupção dos políticos que quase não deixam ninguém de fora e na atitude cínica com que se encaram os ideais democráticos podia-se pensar que o fim da democracia está próximo. A realidade é que mesmo com dúvidas e frustrações, aparentemente, todos aspiram viver em democracia. Regimes mais ou menos autoritários ou iliberais reivindicam o manto de democratas e ditaduras totalitárias vestem a roupagem da democracia para se camuflarem e se legitimarem. A ideia da democracia não está morta nem moribunda, mas carece de vitalidade e ela só pode vir da sociedade, da sua convicção e do seu engajamento.
Já dizia Alexis de Tocqueville que o sucesso da democracia americana devia-se à existência de uma sociedade civil particularmente activa e participativa desde dos primórdios da república. O capital social existente traduzido numa cultura cívica intensa e num elevado grau de associativismo foi crucial para a consolidação da democracia americana. Claro que o rápido desenvolvimento de uma classe média empreendedora cuja prosperidade dependia do respeito pelo direito de propriedade e pelos direitos contractuais conjugado com a garantia de um poder judicial independente capaz de eficazmente redimir os conflitos foi central para se manter a sociedade civil autónoma, exigente na qualidade dos serviços prestados pelo Estado e fiscalizador do uso dos recursos postos à sua disposição pelos contribuintes. Ao longo dos tempos nem todas as experiências democráticas conseguiram reunir as condições óptimas para triunfar.
Cabo Verde não é excepção. A adopção durante décadas do modelo de desenvolvimento com base na reciclagem da ajuda externa no quadro do regime de partido único fez crescer a dependência do Estado e o espírito assistencialista em todo o território nacional. Em 1988 o então presidente da república Aristides Pereira constatava isso apelando que as frentes de trabalho (FAIMO) deixassem de ser “o local onde se degrada a consciência laboriosa do nosso povo”, mas a verdade é que praticamente todo o país se tinha tornado numa grande FAIMO. No processo, as elites socioeconómicas anteriores tinham sido suprimidas ou neutralizadas e em substituição tinha emergido uma outra elite intimamente ligada ao Estado que lhe dá os acessos, faculta-lhes os meios e cria-lhes as oportunidades. É evidente que a nova elite dificilmente podia ser a base para uma sociedade civil autónoma, crítica e reivindicativa perante o Estado.
Com o advento da democracia no pós 13 de Janeiro de 1991, pôs-se a questão de qual seria mais difícil, se mobilizar a sociedade civil para apoiar a reestruturação da economia e, no processo, conseguir-se mais crescimento e emprego ou fazer o desmame material e cultural de pessoas e instituições do modelo de reciclagem da ajuda externa. Ter-se-á ficado a meio do caminho e o resultado é que da parte das elites existentes não houve um comprometimento forte com os valores democráticos, com a economia de mercado e a ideia de uma sociedade civil realmente autónoma. Acredita-se ainda que o mais natural é o Estado continuar no “topo da cadeia alimentar” mas, não talvez da mesma forma. Anteriormente os recursos foram essencialmente ajuda, hoje são mais variados, mas a tendência é o Estado comportar-se da mesma forma e o sector privado e as elites submeterem-se à sua orientação, preferência e humores.
O estado actual do país reflecte em vários aspectos o quanto se falhou em criar as condições para a emergência de uma sociedade civil engajada que desse suporte à democracia. Sente-se isso principalmente neste momento de especial fragilidade da democracia a nível local e global em que a opinião expressa nas redes socias, em comentários e também em alguns discursos visa atingir fundamentalmente o parlamento, o sistema judicial e os media. Coincidentemente os mesmos alvos que em países como a Polónia e a Hungria, mas também os Estados Unidos e o Reino Unidos estão na mira dos assumidamente populistas. Em Cabo Verde aparentemente está-se a dar continuidade às críticas e ao maldizer que acompanharam a construção da democracia a partir dos anos 90. Paradoxalmente, nesse período, a sair do regime de partido único, já se criticava a existência de partidos, o bipartidarismo e o parlamento plural. Com pouco tempo de vigência dos direitos fundamentais já se acusava as autoridades de serem pior que a ditadura anterior. Sem ainda tempo para recuperar da estagnação dos tempos de economia estatizada já se transbordava de indignação pela suposta venda do país a investidores externos. Caso para perguntar se antes não encontraram razão suficiente para defender a democracia o que aconteceu de novo que poderia tornar os críticos no seu defensor activo.
De facto, o que vem acontecendo é o contrário. Os ataques recrudesceram sem preocupação com as consequências. Para muitos que sempre viveram na democracia e na liberdade as críticas até podem ser normais considerando que parecem reflectir insuficiências no sistema democrático e falhas dos agentes políticos e suas organizações. Não lhes passa pela cabeça que a sua actual vivência democrática e tudo o que dão por garantido pode ser reversível, como aliás vem acontecendo em alguns países até recentemente liberais e democráticos. Por outro lado, não parecem ter apercebido que muita crítica expressa no espaço público é pobre, segue certas conveniências e deixa-se instrumentalizar. Nem notam que por algum bloqueio o país ainda está por dar sinais de que o nível do debate público se elevou com as várias universidades criadas e os seus milhares de estudantes formados.
A democracia cabo-verdiana perde com a falta de uma sociedade civil autónoma, activa e focalizada. O discurso político empobrecido sem a pressão dos problemas e prioridades trazidas pela sociedade limita-se aos temas dos partidos que lhes podem trazer pequenas vitórias tácticas na luta pelo poder. Ou, então, coopta a agenda das instituições internacionais que não poucas vezes substitui o que deviam ser políticas públicas do país com as consequências que todos conhecem. Basta analisar os custos e benefícios dos múltiplos projectos em todo o país. Por isso é que a vitimização, o “coitadismo”, o ter sido abandonado ou discriminado são temas constantes não só do discurso político como também de activistas sociais. Tragicamente procura-se compensar a quebra da autoestima que tudo isso acarreta com “bengalas identitárias” que desviam o país da narrativa que historicamente lhe deu consciência da nação muito antes de ser um Estado independente. Desvio que só pode levar à autoflagelação do tipo que o Presidente da República aconselhou para se evitar, na sequência do incidente com o professor universitário guineense no Aeroporto da Praia, e à quebra na motivação de cada um em particular e da sociedade em geral de se fazer mais e melhor em prol de uma vida de prosperidade e em liberdade. Para isso, há que cortar com o cinismo, enfrentar os problemas sem cair no ilusionismo e reconstruir os equilíbrios necessários entre o Estado, a sociedade e o mercado..
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 932 de 9 de Outubro de 2019.

segunda-feira, outubro 07, 2019

Evitar a “desconsolidação” democrática

O ano parlamentar que praticamente coincide com o ano político iniciou a 1 de Outubro. Arranca com a quarta sessão legislativa cujo término a 31 de Julho de 2020 se verificará provavelmente em cima das eleições autárquicas a terem lugar entre Julho/Agosto.
 Por ser um ano pré-eleitoral o mais normal é que se acentue a polarização política entre os partidos e aumente substancialmente a crispação. E o facto de se realizarem eleições disputadas para a liderança do maior partido da oposição no próximo mês de Dezembro certamente irá afectar o tom e a natureza do discurso político em direcção ao governo. Cada candidato vai querer ser o mais contundente e efectivo nas críticas à governação. Também não deverá ficar grande espaço para grandes entendimentos entre os grupos parlamentares que implicam maiorias de dois terços dos votos dos deputados. Com estas pedras no caminho dificilmente irá ser um ano parlamentar mais produtivo, correndo-se o risco de a legislação prometida em matéria eleitoral, tanto quanto à paridade de géneros como à limitação de mandatos, ficar comprometida. Nem tão pouco se conseguir acordos alargados no provimento de cargos exteriores à Assembleia Nacional como o Provedor da Justiça e o Conselho Superior de Magistratura Judicial que há mais de um ano esperam ser substituídos.
Quer isto dizer que não será este ano ou o próximo que se vai constatar uma melhoria na qualidade do trabalho parlamentar. Com o ciclo eleitoral já à porta e as três eleições autárquicas, legislativas e presidenciais separadas cerca de seis meses umas das outras, não será o melhor momento para se reparar as relações parlamentares no sentido de maior efectividade seja na produção legislativa, seja na elucidação da nação dobre os problemas candentes do país ou ainda na fiscalização dos actos da governação. De facto, não se pode considerar que nestes últimos anos houve avanços entre as forças políticas quanto à capacidade de negociar, de firmar acordos e de chegar a compromissos em matérias cruciais para o país. Pelo contrário. Como todos se vêem ou querem apresentar-se como representantes genuínos e únicos do povo, com exclusão dos outros que são tidos como antipatriotas, negativos e maledicentes, não fica espaço para o diálogo.
Mesmo fortes chamadas à realidade, como foram, entre outras, a quase estagnação económica dos primeiros cinco anos desta década e a seca desde de 2017, não se mostraram suficientes para alterar o tipo de debate político em Cabo Verde. Persiste-se no confronto que impede visão clara e plural sobre os problemas do país, dificulta a identificação das prioridades e não mobiliza vontades para se investir no futuro. Complica a situação o facto de quaisquer alterações favoráveis do ambiente externo, quase sempre conjunturais, mas com repercussões positivas no país, serem suficientes para se esquecer males passados, vulnerabilidades reveladas e omissões até ao momento despercebidas. Ultrapassado o mau momento é só ver o país a retomar o seu caminho imperturbável como se nada tivesse acontecido até que desperte com mais um choque externo. Entretanto, reformas são adiadas, cresce a inércia social e cultural impeditiva do desenvolvimento e diminui a capacidade de resiliência a todos os níveis.
Para os autores do best-seller “Porque Falham as Nações” Daron Acemoglu e James Robinson no seu novo livro “O Corredor Estreito: Estados, Sociedades e o destino da Liberdade” não basta que se tenha uma moderna Constituição e leis democráticas para se dar a democracia como realizada, para se considerar garantido o exercício da liberdade e criadas as condições e oportunidades para maior prosperidade. Ao lado do Estado forte e legitimado pelo voto popular tem que existir uma sociedade também pujante, alerta e fiscalizadora capaz de correr a passo e passo com o Estado nesse corredor estreito onde espaço para liberdades existem, garantem-se com eficácia serviços do Estado, a começar pela segurança e justiça, e se assegura que a dinâmica plural de ideias, projectos de futuro e escolha de prioridades sirva a todos e não seja sequestrado por qualquer grupo político ou económico para benefício próprio. Ninguém quer viver na anarquia ou ausência de Estado mas também ninguém deseja um Estado autoritário sem limites no uso do poder. Segundo Acemoglu e Robinson só se consegue o equilíbrio certo e o desenvolvimento com uma sociedade que não só compete mas também coopera ou na perspectiva de Raghuram Rajan no seu livro “O terceiro pilar” com uma comunidade activa e focada, capaz de conter o Estado e o mercado nos seus excessos e garantir que o impacto do desenvolvimento chegue a todos.
O problema com as democracias actualmente é que a sociedade ou não se engajou na consolidação da democracia ficando essencialmente pela formalidade derivada da adopção da Constituição e das leis modernas ou deixa-se levar por discursos políticos do tipo populista que enfraquecem os princípios e valores liberais e descredibilizam as instituições democráticas. Assiste-se mesmo em democracias mais velhas a um processo que o cientista político Yascha Mounk chama de “desconsolidação” democrática devido a várias razões, designadamente o aumento da desigualdade social, a pressão migratória e os efeitos da globalização. Aconteceu no Reino Unido e na semana passada e viu-se como o Supremo Tribunal, por unanimidade dos 11 juízes, pôs fim a algo similar que visava diminuir o papel do parlamento na discussão do Brexit
Em Cabo Verde a construção das instituições democráticas não foi acompanhada de uma adesão activa e engajada com os princípios e valores liberais. Para isso contribuiu uma inusitada preocupação em desculpar o regime de partido único cujos valores estavam nas antípodas do regime democrático. Por outro lado, falta à sociedade civil a base económica para uma verdadeira autonomia perante o Estado e na luta de todos e de cada um para se “desenrascar” faltam razões fortes para a defesa da liberdade económica, da igualdade de oportunidades e das bases para a criação de riqueza. Nestas condições a pressão para a “desconsolidação” democrática é real. Vê-se na descredibilização do parlamento, no comportamento às vezes pouco curial dos órgãos de soberania e seus titulares, nos ataques ao sistema judicial, no assalto populista aos partidos e na movimentação de interesses corporativos junto do Estado.
Inicia-se um novo ano político e é sempre de desejar que seja diferente e se reoriente para preparar o país para eventuais consequências das incertezas criadas designadamente pela guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China, a instabilidade no Médio Oriente e no mercado petrolífero e a quase certa quebra na dinâmica da economia mundial. Cabo Verde cresceu nos dois primeiros trimestres deste ano acima dos 6%. Isso é bom, mas deve-se em grande medida ao impacto da conjuntura internacional favorável sobre as exportações e o turismo. Ninguém garante que continue assim. Os efeitos das incertezas, já visíveis no horizonte, serão maiores se o país, entretanto, não melhorar a sua competitividade e produtividade. E isso só se consegue com instituições fortes, uma sociedade engajada e uma profunda mudança de atitude.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 931 de 2 de Outubro de 2019.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Dia Nacional dos direitos humanos

O governo de Cabo Verde com a aprovação da Resolução 123/2018 que declarou o 25 de Setembro Dia Nacional dos Direitos Humanos deu por duas razões um passo importante ao fazer as pessoas, a sociedade e as instituições do Estado mais conscientes da importância da garantia do exercício desses direitos para uma convivência em liberdade, na paz e confiança na justiça.
Primeiro, com a consagração de um dia próprio para a comemoração dos direitos humanos separado da data internacional de 10 de Dezembro, convidou a que no país se faça uma reflexão sobre o caminho percorrido e se invoquem os sacrifícios passados para os resgatar. Por essa via, eleva-se a sensibilidade face a qualquer violação presente e futura dos mesmos e reaviva-se a memória do que acontece quando os indivíduos são despojados dos seus direitos e ficam indefesos perante eventuais abusos das autoridades e de outros poderes na sociedade.
Segundo, ao fazer coincidir a o dia nacional dos direitos humanos com a data de entrada em vigor da Constituição de 1992 ajuda a cimentar na mente de todos e em particular das instituições a importância de se ver os direitos humanos como o pilar base da democracia liberal e constitucional. Em simultâneo deixa claro que a afirmação constitucional do primado da lei como princípio fundamental, a declaração que o exercício do poder só é legitimo se for conforme à Constituição e a garantia da independência dos tribunais visam fundamentalmente salvaguardá-los por forma a que em liberdade e com “governo consentido” todos possam exercer o seu direito à felicidade.
O gesto do governo em criar um dia nacional para os direitos humanos ganha particular pertinência quando se notam tendências de os considerar excessivos ou até contraproducentes em certos momentos, designadamente de emergência securitária. Sente-se isso, por exemplo, em discursos populistas, na postura das instituições ligadas ao combate ao crime e ao terrorismo e em atitudes de indivíduos ou grupos atraídos por um certo justicialismo demagógico. Há que contrariar essas tendências e trabalhar para desenvolver uma sensibilidade nas pessoas e na sociedade que permita reacção imediata na forma de repúdio, denúncia e exigência de acção das autoridades perante o que configurar atropelo de direitos. Particular atenção se deve prestar à polícia e outras forças de segurança que, por força da acção coerciva que são chamadas a exercer, podem incorrer em excessos na sua actuação ou em flagrantes demonstrações de abuso de poder. Das queixas apresentadas à Comissão Nacional para os Direitos Humanos e Cidadania, a polícia é a mais visada, segundo a presidente da referida comissão em declarações recentes à imprensa. É facto que essas queixas em geral não provocam da parte das autoridades reacções que vão além do inquérito interno. Mesmo em situações de mortes violentas em circunstâncias complicadas (mortes nas esquadras, o caso de Monte Tchota, etc.) fica-se por saber se houve auditoria externa ou qual foi o papel do Ministério Público no aclaramento dos acontecimentos e na defesa dos direitos dos cidadãos.
Em Cabo Verde constata-se uma deficiente sensibilidade em relação aos direitos humanos. A explicação para isso estará por um lado nas muitas décadas, quarenta e oito anos de salazarismo e quinze anos de partido único, vividas com regimes avessos aos direitos humanos e que submetiam o indivíduo e a sua dignidade ao poder do Estado, na perspectiva de Mussolini de tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado. Uma outra razão terá a ver com a forma com a transição política para a democracia se verificou em que tudo foi feito para negar uma descontinuidade entre os dois regimes, o democrático e o de partido único, e para não assumir de forma consequente que em termos de princípios e valores encontram-se nas antípodas um do outro. O resultado é que não se depara em Cabo Verde com situações como aquela do Chico Buarque num concerto em Portugal a referir-se aos jovens como “mocidade portuguesa” e a ter em reacção o silêncio geral e olhares de incompreensão. Ou do embaixador alemão, com a memória da juventude hitleriana, a dizer “não gosto de manipulação de crianças”, quando convidado a opinar pelo seu anfitrião sobre um espectáculo de crianças de um país africano seguindo coreografia norte coreana. Pelo contrário. Ainda hoje referências de violência nos anos de partido único contra pessoas, comprovadas por testemunhas vivas, pela imprensa da época e outras fontes, são apresentadas pela comunicação social pública como “alegadas torturas”. Recentemente com a discussão e aprovação da lei da reparação das vítimas da tortura viu-se a reacção de vários sectores de opinião ostensivamente a negar o acontecido e a discordar que se fizesse o mínimo para os que claramente foram injustiçados no passado, sofrendo na pele e na alma a sanha do aparelho repressivo do regime.
Em tal ambiente de dúvidas e disputas político-partidárias sobre os valores e princípios que estão na base dos direitos humanos dificilmente as instituições democráticas vão assumir pronta e integralmente tudo o que a Constituição consagra. Se mesmo em países com democracia mais consolidada com é o caso de Portugal fala-se em “deficiente sensibilidade e preparação constitucional” de polícias, procuradores e juízes que são quem no Estado de Direito democrático devem ser os garantes do exercício dos direitos fundamentais, imagine-se o caminho que ainda se tem que percorrer aqui em Cabo Verde. A iniciativa do governo em criar o Dia Nacional dos Direitos Humanos tem, pois, uma especial utilidade. Para além de celebrar essa conquista de civilização que são os direitos humanos e contribuir para uma cidadania mais participada e atenta, deve ser um dia para se dedicar uma especial atenção às instituições que a Constituição confia a defesa desses mesmos direitos e avaliar o progresso delas na assunção completa dos valores constitucionais na aplicação da lei.
Humberto Cardoso

Editorial originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 930 de 25 de Setembro de 2019.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Sobrevivência vs. desenvolvimento

Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva.
Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva. A alegria no rosto de todos revela mais uma vez o efeito poderoso que “azágua” tem na psique cabo-verdiana. Mobiliza pessoas de volta para os campos, dá um outro vigor aos camponeses que em antecipação já tinham semeado em pó e renova a esperança de todos que o ano agrícola será de fartura. Há séculos que os cabo-verdianos vivem o drama de esperar que as chuvas caiam, que venham no tempo certo e que não causem demasiados estragos. Demasiadas vezes não acertam. A história do arquipélago é em muitos aspectos tributária do facto do sonho não se concretizar e em vez do bom ano desejado se ter que lidar com a tragédia das secas, com mortes do gado e não raramente ao longo da história também com o horror das mortandades resultantes das fomes. Toda essa luta pela sobrevivência numa terra em que realmente não chove e deixa as populações completamente desamparadas perante os efeitos de secas sucessivas moldou este povo como nenhum outro. Contribuiu com os ingredientes certos para gerar uma nação, a partir das gentes a labutar nas diferentes ilhas, caracterizada por um rosto e marcas culturais sem igual nas várias experimentações humanas na bacia do Atlântico que se sucederam à descoberta do Novo Mundo.
O sucesso na luta pela sobrevivência foi fundamental para a cabo-verdianidade. No meio da precariedade reinante alimentou os laços de solidariedade, ajudou a criar um ethos e uma ética de trabalho que sempre distinguiu os cabo-verdianos no país e no estrangeiro e dirigiu o foco das famílias e da sociedade para a necessidade de educação e da relação com o mundo. Sentimentos de fatalismo, ressentimento e menoridade falharam em se instalar. Pelo contrário, o amor à terra natal, a sodade e a morabeza tornaram-se elementos distintivos da alma do cabo-verdiano nos quais todos procuram se rever. Com a independência nacional e a ajuda externa mais abrangente e substancial, porque não limitada ao que Portugal poderia oferecer, a questão da sobrevivência deixou de se colocar. Como diria o poeta “as estiagens deixaram de nos meter medo”. O país com mais apoio financeiro e de outro tipo e maior acesso a mercados estaria pronto para passar de uma postura de sobrevivência para uma de luta pelo desenvolvimento. Com sorte e perspicácia dos governantes talvez pudesse capitalizar sobre as qualidades adquiridas no confronto com as dificuldades do país e fazer da luta pelo desenvolvimento também uma caminhada de sucesso. Quis o destino que não fosse assim.
As secas de 2017 e 2018 vieram relembrar com particular brutalidade que a vulnerabilidade das populações no mundo rural e a precariedade da sua existência não foi alterada substancialmente desde da independência. É um facto que investimentos de muitos e muitos milhões foram feitos ao longo de décadas e nos últimos anos em barragens, sistemas de irrigação e acções múltiplas de apoio a agricultores. A verdade porém é que não se submeteram a qualquer estratégia coerente de desenvolvimento e o resultado é o que se vê: a produtividade manteve-se baixa, a qualidade fraca, o mercado restrito e os canais de distribuição ineficientes. Deixaram as populações a funcionar numa lógica de sobrevivência e quando a seca adveio com particular dureza ficaram completamente expostas e mais uma vez teve-se que pedir ajuda internacional para minimizar o impacto no rendimento das pessoas e nos seus pertences. Alternativas de emprego e rendimento em sectores como a indústria e os serviços não foram construídas porque faltou visão, empenho para fazer as reformas no ambiente de negócios e não se apostou na educação com inteligência e sentido estratégico.
Olhando retrospectivamente pode-se constatar que realmente nunca se chegou a operar a mudança completa do paradigma de sobrevivência para o de desenvolvimento. Há provavelmente várias razões para isso mas é evidente que a principal é política. Num país de escassez brutal de tudo e funcionando numa lógica de sobrevivência, detém de facto o poder quem administra os recursos, garante os acessos e escolhe os ganhadores. O aumento expressivo de ajuda externa no período pós-independência serviu para legitimar o partido único que dizia querer acabar com as fomes e educar toda a gente. Nos anos que se seguiram o Estado cresceu de forma acelerada e com ele uma classe média a ele subordinada e grata enquanto se reduzia a parte da estrutura produtiva do país nas mãos de privados. Com tanta gente no Estado, nas empresas públicas e nas FAIMO na condição de dependentes é evidente que não havia espaço para se cultivar os valores civis e éticos indispensáveis ao desenvolvimento.
Desenvolvimento precisa de liberdade, autonomia, iniciativa e criatividade, para além de um ambiente socioeconómico e político que respeita os direitos da propriedade, dá garantia de cumprimento de contractos, trata a todos por igual e tem tribunais independentes para dirimir conflitos. O problema é que ao não existirem durante muitos anos ficou difícil institucionalizá-los na sua plenitude ao longo da segunda república. Nestas condições a resistência às reformas de todo o tipo e em particular às reformas económicas é enorme. É só ver a resistência da administração pública em adoptar procedimentos mais expeditos, o apoio transversal na sociedade que se dá à economia informal e o suporte explícito de que gozam certos interesses corporativos com prejuízos evidentes para o país. Contribui para a manutenção desta situação o facto de a ajuda externa e da cooperação ter mantido um papel proeminente e praticamente nos mesmos moldes mesmo nos anos de regime democrático não obstante a retórica no sentido diferente. Sem uma alteração dos hábitos a tendência é para as instituições e os actores deixarem-se ficar no seu papel tradicional e resistir às reformas que eventualmente irão enfraquecer o seu status sócio-económico e afectar negativamente nos meios que poderá aceder ou disponibilizar. Por aí se vê o quanto tem sido difícil pôr de lado a perspectiva de sobrevivência e abraçar a via de desenvolvimento.
Entretanto o país vai sulcando o seu caminho ainda com a pessoas a sonhar que as chuvas poderão trazer a felicidade, ou na falta delas, a água das barragens ou a água dessalinizada servirão para isso e para manter fixa as populações nas zonas rurais com as suas culturas de subsistência. Num outro registo assiste-se ao esforço de outros sectores como o turismo, a construção civil, o comércio, transportes e os serviços em geral em se manterem de pé perante os efeitos erosivos de uma economia em vários aspectos desestruturada e dominada pela informalidade. Em acréscimo têm ainda de suportar os custos de água, energia e outros produtos e serviços tornados caros precisamente por falta de eficácia na acção do Estado para pôr cobro à situação existente. Concluindo, pode-se dizer que sem a solidariedade de outrora, em que realmente estava em jogo a sobrevivência, todos quererão arrebatar o seu quinhão onde puderem e não haverá vontade crítica e orientação compreensiva e estratégica para efectivamente se criar valor e prosperar com benefícios para todos.

segunda-feira, setembro 16, 2019

Corrupção e populismo ameaçam as democracias

A democracia corre perigo em todo o lado. Há mesmo quem fale em recessão mundial da democracia. O mais recente exemplo das ameaças com que a democracia se depara vem precisamente do Reino Unido e da Inglaterra onde as ideias liberais, o parlamentarismo e o constitucionalismo assentaram arraiais pela primeira vez nos tempos modernos. Na confrontação sobre o Brexit, o processo de saída da União Europeia, tem-se assistido a um esforço deliberado do governo em minimizar o papel do parlamento. Primeiro recorreu-se a expedientes procedimentais que efectivamente o impediriam de deliberar sobre as questões cruciais do país. Agora o primeiro-ministro Boris Johnson prepara-se abertamente para, nas próximas eleições, se apresentar como paladino da vontade popular contra a vontade do parlamento num embate que promete opor a democracia directa à democracia parlamentar. A exemplo de outras democracias em que fenómenos semelhantes estão a acontecer, vê-se que o objectivo de certas movimentações políticas é ter dirigentes que se colocam acima da lei, que minam as instituições e submetem o interesse geral aos caprichos particulares. Para conseguir os seus intentos não têm qualquer pejo em cavalgar medos, paixões e preconceitos de multidões.
Em Cabo Verde sente-se também o impacto do mesmo populismo que vem causando estragos consideráveis tanto nas novas democracias como nas mais consolidadas. Os seus promotores, refugiando-se ora em discursos identitários, ora num mal disfarçado desprezo pelo pluralismo e ora numa hostilidade aberta às elites, supostamente querem apresentar-se como a cura ou a via para se ultrapassar os males da democracia, corrigir desigualdades e assimetrias regionais e promover melhor cidadania. Na prática, o que conseguem é a degradação institucional com perdas em eficiência e eficácia, um aumento de resistência a reformas essenciais para se ter prosperidade e alterar o quadro da desigualdade e acréscimos num cinismo na esfera pública que mina a confiança entre as pessoas, impede a cooperação entre elas e deixa cada uma perdida na sua verdade. Perante esta força há que contrapor uma outra em sentido contrário e é urgente que isso aconteça porquanto vem aí o ciclo eleitoral com os três certames autárquico, legislativo e presidencial e conhece-se perfeitamente o efeito da polarização que as eleições provocam.
As forças do populismo, porém não estão sozinhas nessa acção de erosão da democracia e das suas instituições. Paradoxalmente os cúmplices no processo vão-se encontrar nos partidos, na classe política em geral e em detentores de cargos públicos cujas instituições no “final do dia” são os alvos preferidos do populismo e da demagogia que ameaça a generalidade das sociedades democráticas. Exemplos encontram-se em todo lado sendo o caso do Reino Unido referido acima o mais recente. E na maior parte dos casos trata-se de gente do sistema político e não “outsiders” como Donald Trump. É só ver o caso de candidatos a deputado e a primeiro-ministro que, em cima das eleições, ao afirmar que não lhes interessa o cargo de deputado, diminuem o papel do parlamento enquanto órgão representativo do povo. Ou os vários casos de detentores de órgãos de soberania que na relação com os outros órgãos põem em causa o princípio da separação de poderes deixando-os fragilizados e desacreditados. Ou ainda o espectáculo oferecido pelos partidos, a digladiarem-se como se inimigos fossem, revelando falta de tolerância mútua, défice de honestidade nos argumentos e fraca adesão à verdade dos factos.
O efeito erosivo do populismo sobre as democracias, nos últimos tempos, vem-se fazendo sentir indiscriminadamente nas velhas e novas democracias. Tem encontrado no ambiente actual, dominado pelas novas técnicas de comunicação e dinamizado pela acessibilidade oferecida pelas redes sociais, as condições certas para se aprofundar ainda mais e pôr em causa os alicerces institucionais do sistema. A tolerância cada vez maior da sociedade a expressões de individualismo destemperadas têm contribuído para uma esfera pública dominada por manifestações quase narcisísticas de indivíduos na ânsia de se mostrarem autênticos, por comportamentos de políticos a copiar celebridades e por tentativas de fazer da governação, em parte, um espectáculo em ilusionismo. Os excessos, as fugas às normas estabelecidas e o aproveitamento directo ou indirecto dos cargos têm encontrado um travão no sistema judicial e nos tribunais independentes.
Não é por acaso que choques terríveis com os juízes se têm verificado em países como Polónia, Hungria e os Estados Unidos à medida que se acentua a deriva autoritária. A exigência que o Estado no exercício do poder deve respeitar a Constituição e as leis democraticamente criadas faz do poder judicial o guardião do sistema democrático. Torna-o também num alvo a abater ou a desacreditar para quem quer exercer o poder colocando-se acima da lei e considerando-se como único capaz de representar o interesse geral e de realizar o bem comum. A tentação de instrumentalizar o sistema também é grande tanto de quem selectivamente pela judicialização da política recorre aos tribunais como forma de fazer política por outros meios como daqueles que pela politização da justiça põem em causa a credibilidade do sistema atribuindo-lhe desígnios que violam a separação de poderes. As experiências recentes da crise nas democracias reafirmam a importância de se ter um sistema judicial íntegro, tecnicamente capaz e credível. Em tempos de fragilização das instituições democráticas o último recurso são os juízes. Por isso mesmo não se devem deixar apanhar nem pelos excessos de protagonismo pessoal que caracteriza os tempos actuais nem muito menos pelo tipo de justicialismo anti-classe política que às vezes se manifesta.
Uma outra ameaça com que as democracias se confrontam é a corrupção. Aliás, uma parte da energia que move os populismos nos tempos actuais vem da extrema sensibilidade contra a corrupção nas suas diferentes formas que se desenvolveu na pós- crise financeira de 2008. Desvio de fundos públicos para privados, tráfico de influências, conflito de interesses, subornos, lavagem de capitais hoje são práticas mal vistas e condenadas transversalmente nas sociedades democráticas. As pessoas ainda ressentem-se do facto de que com a austeridade e perda de rendimentos terem pago a crise enquanto os seus autores no sector financeiro saíram praticamente ilesos. Qualquer esperança de conter a deriva para o populismo passa por uma luta efectiva contra a corrupção. Nisso é fundamental um sistema judicial íntegro e competente que também deve estar salvaguardado de ataques dos que preferem governar acima das leis e em seu interesse próprio. Num país como Cabo Verde em que a dependência do Estado é enorme e abrangente e em que o acesso a oportunidades de negócio pode ser ou não facilitado pelo Estado não é tarefa fácil. Mas é necessário que se concretize para que o desenvolvimento possa acontecer de forma inclusiva e não enviesada só para enriquecer uns poucos bem posicionados e relacionados.
                                                                                                                  Humberto Cardoso

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 11 de Setembro de 2019

segunda-feira, setembro 09, 2019

Para fechar em definitivo as feridas da alma

A memória dos acontecimentos de 31 de Agosto de 1981 ficou este ano marcada pelo anúncio da promulgação da lei que visa a reparação das vítimas de tortura, em 1977 em S. Vicente e em S. Antão em 1981, feito pelo próprio Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca.
A proposta de lei tinha sido aprovada pelo Conselho de Ministros em Maio e depois discutida e favoravelmente votada na Assembleia Nacional em Julho. Finalmente, passados quarenta e dois anos e trinta e oito anos, respectivamente, que se verificaram os dois acontecimentos, pode-se enxergar vislumbres de justiça para com as vítimas do regime de partido único na assunção da responsabilidade do Estado de Cabo Verde, traduzida em compensação financeira para os próprios e seus familiares. Mas, como é evidente, a compensação material não é suficiente e, naturalmente, que esperam o pedido formal de desculpas do Estado para que as feridas da alma, desde então abertas, sejam definitivamente fechadas.
Depois dos órgãos de soberania, o Governo e a Assembleia Nacional, terem feito a sua parte e assegurado a aprovação da lei, é agora o momento para o Presidente da República, enquanto Chefe de Estado, com a apresentação de desculpas reiterar que “o respeito pela dignidade humana e o reconhecimento da inviolabilidade e da inalienabilidade dos direitos humanos são o fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. A celebração pela primeira vez do Dia Nacional dos Direitos Humanos a 25 de Setembro, por sinal também dia de entrada em vigor da Constituição de 1992, seria o momento perfeito para uma intervenção que fizesse justiça às vítimas.
De facto, o que aconteceu em S.Vicente nos cinco meses a seguir às prisões de 4 de Junho de 1977 e nos muitos meses após o 31 de Agosto de 1981, até aos julgamentos do Tribunal Militar de 20 de Março de 1982, constituiu um ataque sistemático do Estado contra todos os direitos que hoje todos os caboverdianos têm como garantidos. Ninguém hoje é preso, e muito menos torturado ou morto, por expressar o seu pensamento, por se reunir e manifestar. Ninguém é preso por polícias de “Segurança” e retido em prisões militares por dias e meses sem ser apresentado ao poder judicial e muito menos ser julgado por tribunal militar. Ninguém se vê na contingência de não viajar porque lhe negaram “uma autorização de saída”, ou, ainda pior, de lhe ser revogada a nacionalidade cabo-verdiana por decisão do Conselho de Ministros na sequência de processo organizado e instruído pela “Segurança” (artº 14 da Lei de Nacionalidade, BO de 23/11/76).
Na época, todos esses atentados aos direitos humanos tinham suporte em leis que sistematicamente foram produzidas nos primeiros anos após a independência, tais como a lei do boato que estipulava penas de seis meses de prisão (decreto-lei 37/75 de 1975), a lei que permitia à Segurança prender por um total de noventa dias (decreto-lei nº 95/76 de Outubro de 1976) e a lei do tribunal militar que podia julgar civis (decreto-lei nº 121/77 de Dezembro de 1977). Essas são algumas das leis que, com outras do mesmo teor e o suporte de instituições como as forças armadas, polícia e milícias populares, constituíram um aparato de repressão do regime que se manteve intacto até Maio de 1990, data em que a então Assembleia Nacional Popular procedeu à revogação das leis referidas no âmbito da abertura política iniciada três meses antes, a 19 de Fevereiro. O que aconteceu, em Junho de 1977 e no 31 de Agosto de 1981, não foi pois por mero acaso ou excesso de autoridades locais ou agentes menores. Qualquer dúvida a esse respeito, que alguns teimam em manter, desvanece-se facilmente perante a evidência do envolvimento de todo o aparato do Estado e ao teor dos comunicados oficiais e das declarações dos principais dirigentes registadas em jornais e revistas da época.
As críticas que têm sido feitas à lei de reparação ora promulgada vão no sentido de dizer que não é suficientemente abrangente porque não abarca todos os casos de tortura. Também questionam porque só é dirigida para os acontecimentos verificados em S. Vicente e S. Antão. Na linha desses argumentos há quem terá proposto que se adiasse a sua aprovação. A verdade é que indo por aí se estaria, de facto, na proverbial situação de fazer do óptimo o inimigo do bom. Mapear todas as situações de tortura verificadas durante o regime de partido único, para depois agir, significaria adiar indefinidamente uma tomada de posição do Estado no sentido de fazer justiça a vítimas já conhecidas. Foi acertado ficar-se pelos casos que estão amplamente documentados porque alvos de acção repressiva e sistemática do Estado por vários meses e com envolvimento de polícia, forças armadas, tribunais militares e outras instituições do Estado em que não havia dúvidas qual era a cadeia de comando.
Não é por acaso que foram precisos quase trinta anos de regime democrático para que finalmente o Estado garantisse o direito de reparação às vítimas do regime. Até agora, todos os argumentos têm sido bons para se adiar a questão. Felizmente, finalmente conseguiu-se quebrar a barreira criada por esses argumentos e, pela primeira vez, afirmar o princípio básico de justiça e da responsabilidade do Estado para com as vítimas, a começar pelas já amplamente conhecidas e documentadas. Conseguido esse primeiro objectivo, certamente que casos em todo Cabo Verde, alguns até agora mais obscuros, venham a ser tidos em devida conta. para que a justiça chegue a todos. Para isso, como bem diz o sr. Presidente da República no texto de anúncio de promulgação da lei, é importante que se faça a certificação dos factos justificantes da atribuição da pensão de forma objectiva e séria para evitar aproveitamentos indevidos das compensações. Com a abertura feita para se investigar o regime de partido único não parece haver muitas dificuldades em conseguir dados que identifiquem as suas vítimas reais. Afinal, tudo aconteceu aqui no país. Imagine-se, entretanto, o quanto que o Estado poderia ter poupado se esses mesmos critérios tivessem sido aplicados aos processos de pensão dos auto-proclamados combatentes da liberdade da pátria.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 927 de 04 de Setembro de 2019.

terça-feira, agosto 06, 2019

À procura de respostas

O ano parlamentar termina hoje dia 31 de Julho. O último acto vai ser o Debate sobre o estado da Nação que desde a revisão constitucional de 1999 foi instituído como o momento alto de responsabilização política do governo perante a Assembleia Nacional.
A expectativa geral é que depois do discurso do primeiro-ministro, a mostrar as condições em que se encontra o país nos diferentes sectores e também a revelar as suas linhas de actuação e as prioridades da sua governação no futuro próximo, deverá seguir-se o posicionamento dos deputados num exercício do contraditório elucidativo das questões nacionais acompanhado de propostas alternativas e de avaliação de percurso. Infelizmente raramente a qualidade do debate satisfaz, porque tende a descambar para acusações mútuas que não acrescentam valor ao processo democrático de encontrar o melhor caminho para o país. Não obstante, alimenta-se sempre a possibilidade de ser desta vez que o debate vai-se mostrar positivo e confirmar as virtualidades da democracia representativa.
Há certo tipo de confrontos que não deviam acontecer considerando que as duas maiores forças políticas já tiveram a possibilidade de se alternar na oposição e no governo. Têm a obrigação de conhecer os reais constrangimentos do país, de saber quais os limites em matéria orçamental e de dívida externa que não se pode ultrapassar e, com esses dados, ponderar bem as metas propostas e as promessas feitas. Se essas balizas fossem seguidas o discurso político não ficaria por abordagens primárias que invariavelmente asserta que a situação das populações resulta de algum tipo de abandono ou de discriminação. Não se insistiria num discurso que tende a reduzir a relação com os governantes a momentos de reivindicação seguidos de entregas, inaugurações e actos de desencravamentos sem que todo esse investimento público se traduza realmente em ganhos significativos e sustentáveis, em forma de rendimento e de qualidade de vida. Nem a confrontação política seria na linha de que o adversário, para conseguir vantagem política, deseja que as coisas não corram bem, do tipo “que não haja chuva, que os aviões não voem, os barcos não navegem, falte luz e água, etc”. Infelizmente, o facto é que, apesar de toda a experiência dentro e fora da governação, a opção preferida é no essencial por reproduzir o paternalismo do Estado. Só que esse é o caminho aberto para se manter o estado de crispação política em que a atitude assumida por muitos intervenientes, em particular no parlamento, é de “recadeiros” de interesses particulares, cada um procurando suplantar ao outro nas denúncias de abandono e em fazer levar a “quem de Direito” as reivindicações das populações.
Há quem veja na democracia o sistema político mais adequado para se lidar com a realidade complexa das sociedades humanas. Ninguém nega que o exercício da liberdade e a defesa do pluralismo têm sido os instrumentos fundamentais para, face a problemas complexos, se evitar ser levado por soluções simplistas e também de não ficar preso e sem alternativa quando enveredar por uma via sem saída ou sem muito potencial. Também a aceitação do facto de que não é possível captar a verdade absoluta e conhecer o caminho certo para a prosperidade abre o caminho para o diálogo, para negociações e para os compromissos necessários à prossecução dos objectivos de toda a comunidade. Não se cai na tentação de demonizar o outro, de o encarar como inimigo e de ver motivos obscuros nas suas propostas. Evitando isso o discurso deixa de ser primário, tribal ou de reivindicação de identidades complicadas para ser o da cidadania, da igualdade e da criação de oportunidades para todos.
O problema é quando a democracia transmite sinais que fraqueja no que é expectável que deva oferecer e as instituições se mostram desorientadas com falhas na representatividade e com dificuldades em oferecer estabilidade. Sucedem-se movimentações da sociedade civil e aparecem múltiplas propostas para se alterar o sistema eleitoral e promover formas de democracia directa não só no país como também nos partidos. A par disso, nota-se um excesso de protagonismos pessoais dos titulares de cargos políticos e défice de conformidade com os procedimentos. Também abre o caminho para ser desafiado e até confrontado com opções que, embora democráticas, pelo facto do poder conquistado ter legitimidade nas urnas dada pelo voto popular, apresentam práticas que beliscam os direitos fundamentais e a independência do poder judicial. Falha assim na sua função central que é de garantir a via para a prosperidade, na liberdade e segurança. Não tarda muito que a impaciência das populações se venha a manifestar e que as tentações do populismo se tornem cada mais difíceis de evitar com claro prejuízo para a consolidação da democracia representativa, a única que historicamente defendeu a liberdade.
O debate sobre o estado da Nação em ambiente de tensões populistas dificilmente vai poder trazer à luz do dia as extraordinárias questões que se colocam ao país a começar por: como fazer da administração pública uma máquina eficiente e eficaz; como baixar os custos de contexto e os custos de factores como água e energia; como assegurar transportes previsíveis, seguros e a custos baixos entre as ilhas e entre o arquipélago e o exterior; como fazer os operadores nacionais ganhar mais com o investimento directo estrangeiro e o turismo; como articular a disponibilidade financeira com outras medidas para que o financiamento das empresas se concretize e aumente a formalidade e a produtividade da economia; como mover as escolas, os professores e os alunos para abraçarem a luta pela qualidade; como organizar o mercado de trabalho para ser mais qualificado e mais produtivo; como orientar estrategicamente o sector da saúde para garantir sustentabilidade futura; como direccionar a agricultura e a pecuária para produtos de maior valor acrescentado; como reequacionar o embargo para que produtos de Santo Antão tenham acesso aos mercados de Sal e Boa Vista; como promover S. Vicente no exterior para que os investimentos já feitos tenham um maior retorno; como efectivamente fazer circular pessoas, bens e serviços na ilha de Santiago para que não haja discrepâncias tão graves no PIB per capita entre vários pontos do seu território; como modelar uma política de habitação que em simultâneo dê atenção às migrações internas, aos défices de habitações e à mobilidade de mão-de-obra e finalmente como reorganizar as forças de segurança para fazer de Cabo Verde um país seguro, com capacidade de responder a emergências diversas e fiscalizar as suas águas e costas. Mas são essas questões que as pessoas que têm manifestado pelas diferentes ilhas querem respondidas. Esperemos seja este o debate sobre o estado da Nação que lhes vai fazer a vontade.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 922 de 31 de Julho de 2019.

quarta-feira, julho 31, 2019

A magia dos milhões

Falar de milhões é uma constante do discurso público em Cabo Verde. Até parece que se não se trouxer à baila os milhões a comunicação política não tem significado. Da boca de governantes ouve-se quase a martelar a referência a milhões de escudos, milhões de contos, milhões de euros e milhões dólares.
São milhões que vêm da ajuda externa, milhões que foram disponibilizados em linhas de crédito, milhões que vão ser investidos e milhões que serão gastos. Pelo número de vezes que são repetidos os anúncios de milhões o mais normal é que se fique com a impressão que de facto há “dinheiro que não acaba”. A repetição justifica-se porque de alguma forma se criou a ideia em Cabo Verde que a principal função do governo é ir buscar dinheiro lá fora para depois distribuir no país. Uma função que historicamente serviu para legitimar o poder e instituir o paternalismo do Estado a partir do qual laços de dependência estabeleceram-se em todas as direcções.
Não espanta pois que seja prevalecente no país a ideia que desenvolver significa, fundamentalmente, mobilizar recursos e fazer obras. Tudo o resto, designadamente melhorar o ambiente de negócios, aumentar a eficácia dos serviços do Estado, apostar na educação, ser proactivo na atracção de investimento externo, densificar o tecido empresarial e promover as exportações não deixa de ter importância pelo menos no discurso, mas na prática é secundarizado. Quanto aos resultados conseguidos depois de aplicados os recursos e feitas as obras não se lhes dispensa demasiada atenção. Aos críticos pode-se sempre dizer que há obra feita e que o governo cumpriu com a sua parte. E também que cabe à sociedade, ao sector privado e, em tempo de alternância, ao novo governo gerir com eficiência e eficácia o que se conseguiu da acção do Estado. Para quem no momento dirige o país o foco estará sempre em conseguir mais recursos e em fazer mais obras. Afinal, acredita-se que a governação é mais avaliada pelo que se anuncia e depois se inaugura do que pelo que o país realiza em matéria de crescimento, emprego e mais prosperidade para todos.
Imagine-se que corrigir as distorções no processo de desenvolvimento e do papel do governo, induzidas durante décadas por tais práticas, não será tarefa fácil. Deixaram marcas na estrutura produtiva do país pouco diversificada e tornada ineficiente pela informalidade e baixa produtividade. E também nas fragilidades do sector privado que dificilmente conseguiu singrar confrontado com custos excessivos de factores, deficiências de transporte, regulação inadequada e mercado exíguo e fragmentado. Vêem-se na cultura administrativa que com o papel dominante do Estado se impôs a toda a sociedade e que, focalizada em processos e procedimentos e quase indiferente a resultados, se revela hostil ao mundo de negócios. E ainda nas expectativas da população que geralmente quando algo acontece nas suas comunidades é porque estão a ser “contempladas” com alguma obra, ou tidas com “ganhadoras” de alguma infraestrutura ou a ser satisfeitas nas suas “reivindicações”. Sendo prevalecentes no Estado, na sociedade e na economia essas distorções levam a uma rigidez e a uma inércia que tornam difícil mudanças rápidas. E isso é particularmente preocupante quando ainda se precisa continuar a mobilizar recursos e a fazer obras e no processo a correr o risco de ser engolido pela máquina existente e nunca poder alterar os procedimentos e a cultura subjacente no sentido desejado.
Sem mudança efectiva e com o andar dos tempos, mesmo com principais indicadores macroeconómicos a se mostrarem estáveis, custos enormes tendem a acumular-se e poderão acabar por afectar a todos. A dívida pública, o défice orçamental, as dificuldades financeiras das empresas públicas, a vulnerabilidade do país a choques externos, o nível elevado dos créditos malparados, a alta taxa de desemprego e o crescimento ainda relativamente baixo considerando a conjuntura externa favorável são alguns dos sinais a se ter em devida conta. Um outro sinal é o custo elevado que se tem que suportar para continuar a ter energia e água sem ruptura e com qualidade, acontecendo o mesmo com os transportes aéreos e já previsto para os transportes marítimos que vão exigir subvenção estatal de 300 mil contos anuais. Em sectores estratégicos para o futuro como são por exemplo a segurança, a educação e a saúde os custos em não se poder ultrapassar a rigidez e a inercia de décadas poderão efectivamente pôr em risco o almejado para o futuro do país. Perante estas realidades a tentação de adiar ou de ignorar os problemas existentes como tem sido a norma até recentemente não é de todo uma opção a considerar.
Uma outra consequência de cada vez mais se tornarem notórias as dificuldades em mudar o país, em conseguir crescer a taxas elevadas e em debelar o desemprego é a de predispor as pessoas para uma espécie de corrida geral para a captura dos recursos disponíveis. E aí é claro que a pressa e a ambição em vencer em detrimento dos outros acabe por lançar pela janela fora os valores da verdade, da justiça e da solidariedade indispensáveis para se ter o nível de cooperação entre as pessoas e todos puderem prosperar. Haverá quem vai se apresentar como vítima e ou como tendo direito a discriminação positiva. Bodes expiatórios vão ser encontrados conforme a conveniência de uns e outros e manifestações de euforia vão ceder lugar a frustrações e mesmo a ressentimos sempre dirigidos a outrem. No mundo de hoje - em que as tecnologias que prometeram tornar as pessoais mais sociais acabaram por as confinar em grupos identitários cada vez mais restritos - dinâmicas do género têm efeitos cada vez mais perversos. No processo perde-se o sentido do todo nacional, toda a questiúncula é colorida pelas rivalidades das ilhas e o desenvolvimento fica comprometido porque é evidente que não vai resultar do somatório da actividade nas ilhas mas fundamentalmente do que o país pode engajar e ganhar de uma relação estreita com a economia mundial.
Da postura do governo irá depender muito se se vai conseguir travar a degeneração deste processo em curso há décadas. Se ficar pelo debitar de milhões e pelas obras que prometem desenvolvimento em vez de engajar-se efectivamente na remoção de obstáculos e na criação de condições para que a máquina económica e produtiva do país possa funcionar, vão se sentir os efeitos do esmorecimento geral, impaciência e falta de confiança da população. As pessoas precisam que se lhes mostre um outro caminho, onde serão realmente protagonistas, em que as dificuldades não estarão escondidas e em que os frutos do esforço colectivo serão de forma justa partilhados por todos. Basta de paternalismos, de passes de mágica e de eleitoralismo divisivo.


Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 921 de 24 de Julho de 2019.