A primeira fase de desconfinamento aconteceu a 29 de Maio e, a par com a retomada da circulação entre algumas ilhas e de alguma euforia das pessoas por se verem menos condicionadas nos contactos sociais, notou-se em pouco tempo um aumento do número de casos confirmados de covid-19. A partir de 15 de Junho focos de contágio surgiram na ilha do Sal e em S.Vicente e foram confirmados casos em S.Nicolau e em Santo Antão. Segundo o director nacional da Saúde em conferência de imprensa nesta segunda pode-se distinguir dois momentos na epidemia da covid-19 em Cabo Verde. O primeiro que abrange o estado de emergência em que os casos semanais oscilavam entre os 60 e 84 e um outro com o fim do confinamento em que o número de casos fica no intervalo 126 e 180 com um pico na semana de 22-28 de Junho de 341 casos.
É provável que na sequência da liberação da circulação inter-ilhas e o fim de outras restrições designadamente no acesso às praias se vá entrar numa terceira fase de desconfinamento com consequências imprevisíveis considerando que em Santiago, a ilha mais populosa, ainda a epidemia está activa e no Sal, onde muitos esperam sair da ilha, continua galopante a transmissão comunitária. Não será muito fácil evitar um recrudescer de casos de covid-19 no país e o alastramento para as ilhas até agora poupadas. Tendo em conta os custos que tudo isso pode acarretar para a situação sanitária do país é de se perguntar como se comparam com os benefícios esperados da retoma de circulação inter-ilhas praticamente nos mesmos moldes que existiam anteriormente. Entretanto o país continua sem ligações com o exterior tendo ficado fora da lista de países autorizados a voar para a União Europeia. Um constrangimento que poderá prolongar-se se o país não se mostrar capaz de diminuir para números aceitáveis os casos diários de contágio ou ver-se confrontado com o agravamento da situação sanitária nas ilhas.
Dias atrás o director geral da OMS em várias intervenções públicas foi muito claro a dizer que no futuro próximo não há regresso ao velho normal e que se o básico do controlo da infecção que passa por testar, rastrear, isolar e fazer quarentena não for conseguido a pandemia só vai ficar pior. Também apontou como constrangimentos sérios a politização da pandemia e o envio de mensagens contraditórias que acabam por se tornar em factor de divisão e contribuem para minar a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias. A verdade é que por todo o mundo, em maior ou menor grau, dificilmente os actores políticos resistem à tentação de tirar benefícios político-partidários da luta contra a pandemia. Todos a partir do seu ponto de vista e posicionamento no sistema tendem a mostrar o quão importante é o seu contributo para o sucesso na contenção da pandemia. O problema não é a política em si, que em democracia tem que se fazer para conseguir resultados que sirvam o interesse geral, mas as tácticas utilizadas que acabam por criar divisão, confusão nas orientações dadas para se evitar o contágio e alimentam expectativas irrealistas quanto à forma como resolver a crise sanitária. Prejudica-se enormemente aquilo que o Dr. Tedros Ghebreyesus considera o ingrediente crítico de qualquer resposta à pandemia: confiança.
Em Cabo Verde parte das dificuldades com que se depara na contenção da pandemia tem a ver com a colaboração da população. As autoridades queixam-se de que as orientações quanto ao distanciamento social e uso das máscaras não estão a ser seguidas com suficiente rigor. Também consideram que muitos, em particular os jovens, mostram-se displicentes nessas matérias e continuam a organizar festas, idas às praias e a fazer outros ajuntamentos sem preocupação com a transmissão do coronavírus, convictos de que ou não serão afectados pela doença ou então que os sintomas serão ligeiros. O problema talvez advenha de ainda em grande medida não se ter conseguido transmitir às pessoas a real gravidade da covid-19. E isso normalmente acontece como diz o director geral da OMS quando não se comunica claramente com os cidadãos e que não se desenvolve uma estratégia compreensiva focalizada na supressão de transmissões. O que está a acontecer em particular na ilha de Santiago e na ilha do Sal de facto não é tranquilizador nem transmite confiança. Pergunta-se se o que aparentemente resultou na contenção de casos na Boa Vista e em S.Vicente não tem aplicação nas outras ilhas.
Com a proximidade das eleições, a questão de confiança, crucial para a luta contra o coronavírus, tende a ficar mais difícil. A sociedade polariza-se e simplesmente não se consegue o engajamento total da população indispensável para o combate vitorioso contra a pandemia. Tudo fica ainda mais complicado se achas são deitadas na fogueira como aconteceu na última reunião plenária da Assembleia Nacional. Foram levadas para debate e votação matérias potencialmente fracturantes sem suficiente concertação das partes e ignorando que se tratava de legislação que exige dois terços dos votos dos deputados. A descredibilização das instituições e dos seus titulares que daí resulta certamente que não contribui para se manter a frente unida contra a pandemia nem transmite uma imagem de autoridade a quem deve liderar no combate ao vírus. Pior ainda quando, como aconteceu, as divisões não ficaram pelas traduzidas nos posicionamentos de cada partido e saltaram para a rua e pelas redes sociais em acusações e agressões verbais contra membros do mesmo partido. Daí foi um passo para se dar o salto e fomentar o confronto aberto entre naturais de diferentes ilhas.
No mundo inteiro enfrenta-se neste momento a pandemia provocada pelo coronavírus. É reconhecido por todos a necessidade de uma acção conjunta para debelar os efeitos da doença. Os países que menos sucesso têm tido nessa luta são os onde é maior a polarização política e mais dividida a população quanto ao distanciamento social. Cabo Verde não está bem colocado entre os países com maior sucesso no combate ao vírus. Precisa de mais unidade, melhor liderança e mais sabedoria em lidar com a crise sanitária. Devia tomar como exemplo o Ruanda que realmente viveu divisões profundas no seu seio, mas depois conseguiu unir-se para dar combate ao vírus e integrar a lista exclusiva de países com voos para a União Europeia. Infelizmente nem com a ameaça de uma pandemia consegue-se ter foco para, parafraseando Mario Cuomo, ex-governador de Nova Iorque, deixar cair a “poesia” da campanha eleitoral para se dedicar à “prosa” da governação.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.
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