segunda-feira, dezembro 14, 2020

Acabar com as lutas partidárias na administração pública

 

O impacto das eleições autárquicas e a proximidade das eleições legislativas em Março/Abril já se faz sentir nas estruturas do Estado tanto a nível central como local.

Sucedem-se movimentações de pessoal na administração central e nos municípios que uns dizem ser fruto de retaliação politicamente motivada e outros justificam como empregos criados sem possibilidade de sustentabilidade. Multiplicam-se denúncias de funcionários que terão feito a balança eleitoral pender para um lado ou para outro seguidas de exigência das bases partidárias para se tomar medidas em conformidade de promoção ou despromoção. Nota-se o alvoroço repentino que ataca muitos – tanto os que vêm o momento como oportunidade como os outros que se sentem apreensivos perante a imprevisibilidade dos resultados. No meio disto tudo, até a demissão inesperada da ministra da Educação, alegadamente a seu pedido, não escapou às especulações, acusações e manifestações de júbilo.

O frenesim que se sente actualmente em toda a administração pública repete-se em todos os ciclos eleitorais iniciando antes das eleições e perdurando durante vários meses na renovada realidade pós-eleitoral. Mesmo durante a legislatura nunca desaparece completamente porque a pressão das fileiras partidárias mantém-se seja para pressionar, seja para denunciar, conforme o caso. O país acaba por pagar os custos da instabilidade na função pública em tudo o que respeita ao pessoal, às carreiras e aos níveis de competências e expertise que consegue acumular. Juntando-se a outros factores, não espanta que anos e décadas passadas após a criação de uma máquina do Estado ela não se revela particularmente competente e eficaz em dar corpo às orientações e políticas dos sucessivos governos nem na prestação de serviços aos utentes. Num mundo em que todos voltaram a reconhecer a importância de um Estado apto e funcional é de maior importância não mais adiar as reformas necessárias para a administração pública ultrapassar as suas actuais ineficiências, garantir isenção e imparcialidade na prestação de serviços aos utentes e mostrar-se totalmente engajada na prossecução do interesse público, independentemente da cor político-ideológica do governo do momento.

A situação da pandemia da Covid-19 veio relembrar a importância crucial de se ter um Estado capaz, ágil e sábio para se poder enfrentar os vários desafios desencadeados, entre outros factores, pelas mudanças nas configurações das forças mundiais e pelas alterações climáticas e outras ameaças globais. A proximidade das eleições não deve servir de pretexto para se repetir os jogos do passado em que uns se preparam para substituir outros enquanto tudo fica na mesma ou pior. Nas legislativas de 2016 talvez se podia ter feito diferente. O primeiro-ministro de então, já no fim dos seus 15 anos de governo queixou-se em várias ocasiões da partidarização da administração pública. Segundo ele a AP precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada e estar mais virada para a produtividade e para o bem comum. Em face desta constatação, apesar de tardia, talvez tivesse havido possibilidade dos actores políticos chegarem a algum tipo de consenso quanto a reformas que desembocassem na reconversão da administração do estado numa força profissional construída em base meritocráticas e com uma cultura de serviço que a fizesse mais amiga das empresas, dos cidadãos e do desenvolvimento global de Cabo Verde.

Não foi todavia o que aconteceu. Rapidamente as forças políticas voltaram-se a engalfinhar à volta dos lugares na AP na perspectiva de garantir lugares para correligionários e de assegurar alavancas de poder e a oportunidade esfumou-se. Um facto que se tem muitas vezes de conviver nas democracias é que ganhar eleições não se traduz automaticamente em poder, autoridade e influência na sociedade, na economia e mesmo nas instituições. Não poucas vezes quem assume o governo depois da vitória eleitoral depara-se com a realidade da penetração ideológica da outra força política no corpo social e político do país constituindo logo à partida numa forte resistência à implementação das suas políticas. A complicação é maior na ausência de uma administração pública profissional porque ela própria se torna no principal campo de batalha na luta para traduzir a vitória nas eleições em exercício efectivo do poder. Passados quase cinco anos infelizmente a lição ainda não foi apreendida e, em vésperas de eleições, todos se preparam para repetir as lutas passadas e nos mesmos moldes. Aparentemente, mesmo com a pandemia, não se tem consciência de quão crítico se tornou para o país ter uma administração pública à altura dos desafios da actualidade.

Cabo Verde nos índices do Doing Business e de Competitividade, colocado entre 119º e 137º lugar num total de 180 países, tem sido incapaz de ganhar posição que o podiam qualificar como um país atractivo para o investimento externo, um país competitivo e facilitador da actividade privada. Contribui fortemente para isso a ineficácia da actuação estatal que afecta grandemente os custos de contexto e constrange a actividade empresarial. E isso não é segredo para ninguém. A insensibilidade da administração pública perante as necessidades do mundo de negócio de há muito que foi constatada pelos sucessivos governos. O facto de ainda não ter melhorado nos índices de competitividade e do Doing Business demonstra que as tentativas de reforma não têm tido o sucesso desejado.

Uma das razões para o fracasso tem sido precisamente a instabilidade da administração pública derivada da extrema partidarização. Uma outra razão é o protagonismo crescente de interesses corporativos que jogando muitas vezes com promessas e críticas feitas pelas forças políticas no governo e na oposição consolidam-se no seio da administração pública absorvendo cada vez mais recursos sem que a eficácia global do Estado aumente. Pelo contrário, nota-se uma tendência para mais reivindicações, mais greves mesmo nos sectores tradicionalmente mais comedidos com os de segurança. De acordo com as declarações do Vice-primeiro-ministro cerca de 40% dos mais de 7 milhões de contos de aumento nas despesas de funcionamento do Estado e verificados entre 2016 e 2020 foram para cobrir aumentos salariais, promoções, progressões e requalificações acordadas ou prometidas anteriormente. O país e a sociedade, entretanto, não deixam de notar que apesar dos agentes e estruturas do Estado absorverem um maior quinhão da riqueza nacional não viram maiores benefícios em termos de eficácia da acção estatal com impacto na actividade económica.

A desigualdade social crescente entre quem está no Estado e quem depende do sector privado formal ou informal poderá a prazo criar problemas. Com a pandemia viu-se que houve aqueles que ficaram com os salários intactos e os que tiveram de se contentar com os programas de lay-off ou com subsídio de desemprego à medida que as actividades económicas se iam reduzindo com o avanço da crise sanitária. Não é uma situação que deva perdurar. Melhorar a eficácia do Estado deve ser uma tarefa vital para os próximos tempos e não se compadece com a continuidade das lutas políticas pelo controlo da administração pública que até agora só tem levado a mais custos para os contribuintes sem que se vejam os benefícios. Melhorar o Estado para que se criem e se aproveitem as oportunidades é tarefa urgente e fundamental para se voltar aos caminhos de prosperidade com liberdade e paz social. Das próximas legislativas deve vir um pacto nesse sentido.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 993 de 9 de Dezembro de 2020.

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