A qualidade duvidosa do debate político em Cabo Verde leva muitos a pensar em como agir para o melhorar. Há quem considere que o surgimento de outros partidos, o fim do bipartidarismo e a eventualidade de governos de coligação ou mesmo de governos minoritários podiam trazer grandes benefícios para o sistema político.
Assumem que sem maiorias absolutas todas as forças políticas seriam forçadas ao diálogo. Apesar de não haver qualquer evidência que isso possa acontecer, considerando as experiências anteriores e recentes tanto a nível local como central, a crença existe e é generalizada. Aparentemente as pessoas estariam dispostas a sacrificar alguma estabilidade governativa se em contrapartida houvesse menos crispação entre os actores políticos e maior consenso nas grandes questões do país.
A verdade é que provavelmente a questão de falta de diálogo é mais profunda do que parece. Não é algo que se resolve naturalmente com mais intervenientes e mais fragmentação política. Primeiro, todos teriam que assumir que têm responsabilidade em fazer as instituições funcionar e em debater profunda e demoradamente as questões, evitando bloqueios e procurando eficácia na acção. Porém, ainda está-se longe de alcançar a cultura cívica e política que pudesse constituir-se no respaldo de que a democracia tanto precisa para funcionar na plenitude. O espaço público ainda é dominado por narrativas politico-ideológicas tributárias da origem histórica dos grandes partidos que de alguma forma continuam a reproduzir a bipolarização original com o seu cortejo de insultos, acusações e denúncias sem deixar muito espaço para compromissos em questões fundamentais.
Ouvindo o ruído criado pelas múltiplas interacções na esfera pública, facilmente pode-se constatar que Cabo Verde é um país de monólogos. O diálogo praticamente não existe. Nem a situação extrema da pandemia conseguiu que se levantassem as barreiras e fosse produzido um diálogo compromissório à altura dos desafios actuais. A discussão na semana passado do Orçamento do Estado para 2021, que podia ser uma novidade, porque feita no quadro da nova lei de bases do OE e com o objectivo de manter mais funcional a gestão financeira do Estado num ano de eleições, resvalou para a crispação do costume, com acusações de eleitoralismo e populismo à mistura. Mesmo face à ameaça da covid-19, é como se cada um se mantivesse no seu registo sem que houvesse intermediação, troca de ideias, o exercício construtivo do contraditório e mesmo o fact checking, a verificação dos factos.
Curiosamente não é uma falha que se limita à interacção na área política. Perpassa toda a sociedade, afecta a comunicação social, escolas e universidades e outros centros que deviam ser de cultura e conhecimento. Como diria Jonathan Rauch da Brookings Institution num artigo recente no National Affairs, a informação até pode circular vinda de vários lados, mas a constituição do conhecimento é deficiente. Por isso e por outras razões que é cada vez mais evidente a discrepância entre o investimento feito pelo Estado, pelas famílias e pelos indivíduos na educação a todos os níveis e o retorno global para o país em termos, designadamente de nível académico, de competitividade em sectores da economia do conhecimento e de capacidade de governança. A perda também se reflecte nos indivíduos que em vez de verem abrir oportunidades de carreiras e de negócios e outras possibilidades de mobilidade social e de realização pessoal acumulam frustrações num ambiente profissional e económico-social demasiado restrito para o seu potencial e ambição.
Sem diálogo já se viu que fica difícil fazer a alternância política funcionar em prol de Cabo Verde. A falta de consenso em questões fundamentais abre caminho para eternos recomeços sempre que há mudança de governo. Também a ausência de debate construtivo não contribui para o amadurecimento das posições partidárias e governativas, ficando o país e a sociedade com a percepção que novas dinâmicas não são despoletadas mesmo com diferentes governos. Uma outra consequência dessa falta de diálogo é a dificuldade enorme de se desenvolver uma estratégia para contornar a extrema dependência do país em relação ao exterior. Como a cooperação com outros países e com instituições multilaterais pela sua natureza e impacto, tempo próprio e interesses de agenda dos parceiros não é substituto para um plano de desenvolvimento, a verdade é que sem uma vontade nacional consolidada para contrapor a logica dos projectos acaba-se por não aproveitar o potencial do que é disponibilizado. Ainda incorre-se no risco real de suportar custos presentes e futuros de opções erradas e de projectos mal concebidos e sem encadeamento, fazendo do país um cemitério de projectos ou um parque de elefantes brancos.
A verdade é que quando não se tem um plano e uma estratégia própria não há como escapar à agenda dos outros. Há que por exemplo liquidar, privatizar ou de outra forma alienar activos para continuar a receber ajuda orçamental. Também se adotam opções de parceiros em matéria de aplicação de investimentos para poder aceder a linhas de crédito mesmo que os custos futuros ultrapassem os benefícios. E ainda se aceitam políticas de combate à pobreza, à partida sem sustentabilidade futura, apenas pelo impacto esperado durante a vigência do projecto. Os custos disso tudo, porém, não ficam por aí. Acaba-se por perder de vista a relação entre meios e fins, investimento e retorno e custos e benefícios. Depois de décadas de ajuda, fica-se admirado como a administração do Estado ainda continua desfalcado em termos de competência governativa e expertise em várias áreas.
O impacto sobre a sociedade em se manter um modelo de desenvolvimento que reproduz dependência a todos os níveis não deixa de ser inibidor de iniciativas individuais e de expressões de criatividade e motivação para inovação, em suma, de se constituir num forte empecilho ao diálogo necessário entre as pessoas e as instituições para se forjar um caminho próprio. Por outro lado, as vulnerabilidades que têm sido reveladas e dramaticamente vividas pelas populações depois de décadas de crescimento económico deviam ser alertas suficientes de que o país não deve continuar como até agora. No mesmo sentido deviam-se ter os sinais de frustração e até de desespero que se vêem manifestando particularmente entre os jovens. Tal estado de coisas, na falta de alternativas viáveis de rendimento e oportunidades, tende a provocar uma corrida aos recursos e ao controlo dos poderes dos Estado com o fito de assegurar quem os deve aceder e onde os aplicar.
A persistir no mesmo caminho não há como não reproduzir o ambiente de polarização que sustenta o bipartidarismo. Ultrapassar a situação actual significaria cortar com o círculo vicioso que mantém Cabo Verde como um país de monólogos e passar a dialogar como só é possível num ambiente de liberdade e pluralidade. E nisso há que se mover, como diria Barack Obama, com “a feroz urgência do agora”.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 994 de 16 de Dezembro de 2020.
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