A primeira impressão que se tem ao assistir ao primeiro debate entre os líderes partidários em período de preparação para as eleições legislativas é que Cabo Verde não parece estar no meio de uma pandemia.
Os argumentos trocados, as críticas feitas e as propostas apresentadas pouca atenção deram ao facto concreto e presente de que o país vive uma recessão sem precedentes, acumulou uma enorme dívida pública e as perspectivas de retoma são incertas e dependentes de como outros países irão dinamizar as suas economias. Ao longo do debate a abordagem escolhida pelos diferentes actores acabou por reforçar a ideia de que o discurso político – cheio de chavões como inclusão, empreendedorismo, clusters e hubs, futuro digital e de ideias fixas como mobilização de água para agricultura, terminais de cruzeiros e aeroportos internacionais sem um quadro estratégico claro – está divorciado da vida real. Passa ao lado da realidade de que as pessoas querem a possibilidade de ter um emprego de qualidade, de se qualificarem através de uma educação e formação adequada e de prosperarem num ambiente ordeiro e não discriminatório. Para isso requerem segurança pessoal, mas também jurídica e condições sanitárias que lhes permita qualidade de vida.
Tal discurso contribui para uma postura das pessoas e da sociedade perante os problemas do país que passa por minimizar ou desvalorizar os formidáveis obstáculos que teimam em manter-se no caminho para o desenvolvimento. As persistentes vulnerabilidades do país e precariedade na vida das pessoas deviam estar aí para ajudar a reconhecê-los e a criar vontade para os superar. Vê-se, porém, pela forma como a pandemia do coronavírus tem sido assumida que aparentemente nem com uma ameaça maior e de natureza existencial consegue-se sacudir a modorra.
As recentes reivindicações acompanhadas de ameaças de greve que tem aparecido nas últimas semanas deixam claro a impressão de que aparentemente não se reconhece que o país vive dificuldades extraordinárias. O corte com a realidade presente e futura é mais notória porque vêm particularmente do sector público, precisamente de onde nos meses de estado de emergência e de quatro lay-offs que reduziu o rendimento de milhares de trabalhadores a 70%, os salários dos funcionários mantiveram-se a 100%. E ninguém protesta por causa disso.
Sem assunção da gravidade do problema em mãos não há como trazer à tona sentimentos mais altruísticos e solidários, atenuando impulsos mais reivindicativos, nem se é capaz de mobilizar energia para fazer da crise uma oportunidade e encetar reformas profundas que serão necessárias para redinamizar a economia. O facto de, em algumas sondagens, a pandemia ter aparecido em lugares muito abaixo nas preocupações dos caboverdianos denota o quanto o discurso político no país tem ajudado a dar uma falsa perspectiva da realidade vivida. Estar-se a viver um ano eleitoral em tempo de pandemia, agravou a situação ainda mais.
A tendência é de reproduzir discursos e práticas políticas que, numa espiral ascendente de promessas estimulado pelas duras críticas da oposição apontando a não realização, deficiente realização ou inadequação das soluções da governação, põem enfase em obras e na distribuição de rendimentos. A dialéctica entre as forças aí estabelecida não leva nem ao melhor conhecimento da situação do país nem a mais cooperação para enfrentar os problemas. Pelo contrário, tende a excitar ainda mais o sentido reivindicativo das pessoas e da sociedade quando menos dele se precisava e mais solidariedade se mostrava necessário.
A falta da adequação do discurso político produzido aos problemas do país e à realidade do mundo é vista por uns como oportunidade para se oferecerem como alternativa na governação e por outros como prova de falência da democracia, do seu sistema de partidos, do seu pluralismo, das suas instituições e das suas leis. Pelo debate vê-se que há projectos de poder diferentes. Não é claro para muitos como é que as propostas de governação divergem substancialmente. Ninguém parece querer disponibilizar-se em ver o país numa outra perspectiva não obstante as crises recentes e a pandemia que revelaram profundas vulnerabilidades das populações. Nem tão pouco quer-se ter em devida conta a conjuntura internacional que tornou evidente que voltar a crescer irá exigir reformas inovadoras, uma outra atitude e muita solidariedade.
Neste ambiente o cepticismo de alguns em relação aos partidos parece justificar-se. Daí os ataques aos partidos que acabam por fragilizar o sistema democrático e que, a exemplo de outros países, pode abrir caminho a líderes tendencialmente autocráticos e a derivas iliberais com baterias apontadas no pluralismo, na liberdade de expressão e de imprensa e na independência dos tribunais. Essa via, porém, não tem que ser a única possível para os descontentes com o funcionamento da democracia e com a aparente falta de alternativa.
Tocqueville no seu livro A Democracia na América fala no papel das associações de todo o tipo profissional, social, civil e político, naquilo que hoje se chama de sociedade civil, em ancorar o sistema democrático. Para ele a democracia não tem que ficar só pelos cargos e órgãos eleitos. Precisa da participação activa, atenta e fiscalizadora dos cidadãos e das suas associações para que a sua integridade baseada na liberdade, no pluralismo e no primado da lei não seja posta em causa. Atirar-se contra as instituições da democracia descredibilizando-as, por que descontente com o seu funcionamento num determinado momento, é como dar um tiro no pé. E a história mostra que depois de se fazer ruir as instituições o caminho fica aberto para candidatos a “salvadores da pátria” todos eles prontos a sacrificar a liberdade em nome da sua ordem e da sua justiça.
A democracia também é ancorada nos seus fundamentos quando, como se viu recentemente na América de Trump, maiorias conjunturais são limitadas no seu poder de desestruturação institucional do sistema político vigente por órgãos independentes. O Supremo Tribunal de Justiça, a comissão eleitoral e a instituição militar efectivamente impediram que a legitimidade das eleições de 2020 fosse posta em causa e que não se verificasse a transferência de poder para o candidato vencedor. O exercício independente, competente e com sentido de serviço público das suas funções pelas magistraturas judiciais e do ministério público e pelos titulares de órgãos como o banco central, comissão eleitoral, autoridades reguladoras, comissão de dados e outras entidades afins é de maior importância para a credibilidade do sistema e para manter a confiança dos cidadãos. Devem ser protegidas de interferências desestabilizadoras das suas funções.
Ainda estão por realizar mais dois debates antes das legislativas e a campanha eleitoral só começa no dia 1 de Abril. Deve haver mais pressão das pessoas e da sociedade civil para que o discurso produzido pelos candidatos reflicta mais a situação real do país neste tempo de pandemia e de recessão mundial na perspectiva de se encontrar as melhores soluções. O momento não é só dos partidos. É também de todos os cidadãos e suas organizações. E não se trata só de votar no dia 18 de Abril, mas de se fazerem ouvir com responsabilidade e um sentido apurado de que é preciso preservar as virtualidades do sistema democrático para que o futuro do país se realize com ganhos para todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1008 de 24 de Março de 2021.