segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Evitar bloqueio, se não colapso

A dois meses das eleições legislativas são notórias as movimentações de partidos, sindicatos, associações, grupos de interesses e personalidades para beneficiar ainda da situação actual e desde já ficarem bem posicionados para o que segue.

O governo desdobra-se em inaugurações por todas as ilhas, municípios e outros pontos do território nacional; partidos da oposição apontam o não cumprimento de promessas e minimizam obras feitas; sindicatos marcam manifestações, ameaçam greves e reivindicam aumentos, promoções e progressões para trabalhadores do sector público; grupos de interesses diversos pelas razões as mais espúrias, como se viu na última sessão do parlamento com a petição de ex-militares, procuram extrair benefícios do Estado em forma de pensões e outras facilidades; e personalidades apanhadas na luta intrapartidária para listas de deputados salvaguardam-se para o amanhã. Com o futuro imprevisível e os outros sectores da economia à espera de uma oportunidade de retoma, o Estado tornou-se o foco da atenção de todos. Na corrida aos recursos públicos assim desencadeada nem a pandemia da Covid-19 mostra-se capaz de forçar a olhar para os lados.

Em vários momentos de lucidez surgem vozes na sociedade cabo-verdiana que apelam a mudança de atitude e a troca de “chip”. Os apelos invariavelmente caem em saco roto ou são esquecidos. Entretanto, o mundo não pára e o país inexoravelmente vai ficando para trás porque as reformas para a modernização não chegam a tempo. Neste processo o país vai acumulando dívida pública, aumentando vulnerabilidades, reproduzindo precariedade e perdendo oportunidades. Mesmo quando beneficia de uma conjuntura internacional favorável como aconteceu entre 2016 e Março 2020 com todas as grandes economias do mundo a crescerem em simultâneo, não consegue dar o salto. Não fez as reformas no tempo certo. Suficientes, porém, revelaram-se os três anos de seca para revelar as vulnerabilidades que persistem no país não obstante ter vindo a crescer até o surto do coronavírus a taxas que se aproximava dos 6% do PIB.

A chegada da Covid-19 a partir de Março de 2020 acabou por mostrar cabalmente a extrema fragilidade de uma economia pequena, insular, muito pouco diversificada e dependente do turismo. O grande problema é que, quase um ano depois do início da pandemia, não se vislumbram alterações substantivas na forma como os actores políticos e sociais se comportam. Não há muitos sinais de que realmente se quer mudar de atitude, trocar de chip ou iniciar preparativos para um eventual take off. Num mundo em que a normalidade anterior desapareceu, quer-se continuar a funcionar como se nada tivesse acontecido.

A questão que se pode colocar é, ou o choque da pandemia não foi suficiente para uma chamada à realidade, ou então o país de tão preso que está na sua forma de estar, viver e sobreviver que nada já o afecta. A falta de reacção adequada a situações anteriores de erupções, desastres, naufrágio e até de massacre que não foram seguidas de mudanças consequentes nas instituições, nos procedimentos e na postura das autoridades já deixava entender isso. Não se esperava é que, mesmo com uma pandemia global sem uma previsão de acabar tão cedo, a tentação de persistir em fazer o mesmo fosse tão forte. Não muito ausente dessa atitude provavelmente estará a crença que a dívida pública entretanto acumulada será perdoada, que a ajuda externa até irá aumentar por causa da covid-19 e que o interesse dos operadores estrangeiros não se alterará no “novo normal”.

Ajuda a manter essa inércia o sentimento que muitos parecem nutrir de que a pandemia da covid-19 poderá ter os dias contados particularmente depois que várias vacinas com elevados níveis de eficácia foram criadas. A realidade porém é muito mais complexa como demonstra o aparecimento de várias variantes do coronavírus mais contagiosas e algumas talvez até mais letais. A luta de vários anos que vai opor o coronavírus em mutação rápida e o sistema imunitário humano com a ajuda das vacinas certamente terá consequências. Prevê-se que depois de contida a pandemia, em vários países a doença vai ficar endémica com surtos epidémicos periódicos. Também sequelas da doença não deixarão de manifestar-se entre os muitos milhões de recuperados. Os constrangimentos que tudo isso irá provocar a todos os níveis asseguram que não haverá o regresso à normalidade anterior.

É evidente que será profundo o impacto que a Covid’19 vai provocar nas economias nacionais e na economia mundial. Como reagir a essas mudanças é o grande desafio que se coloca a todos, sejam países desenvolvidos, emergentes ou mais pequenos e frágeis como Cabo Verde. Há que reformular políticas, prioridades e atitudes. Recentemente Ruchir Sharma, autor do livro Milagres Económico do Futuro, no jornal Financial Times, aconselhava os países em desenvolvimento a fazer as reformas necessárias para aumentar a produtividade e a competitividade e a não seguir o exemplo dos países ricos que procuram estimular a economia com injecção de liquidez recorrendo a mecanismos financeiros que aumentam extraordinariamente a dívida pública. Estes, além de terem capacidade para pagar a dívida ainda beneficiam de juros baixos e mesmo negativos o que dificilmente acontecerá com os outros países menos desenvolvidos.

Pensar diferente é também o que aconselha Dani Rodrik. O economista de Harvard propõe para ultrapassar a situação actual de grandes desigualdades sociais e esvaziar os extremismos políticos que se faça um comprometimento sério para criação de um grande número de postos de trabalho que também sejam bons empregos. Num artigo no Project-Syndicate ele nota que em África constata-se que grandes empresas industriais de capital intensivo são produtivas, mas empregam poucas pessoas enquanto pequenas e médias empresas têm muitos trabalhadores, mas produtividade muita baixa o que leva globalmente a salários mais baixos, não criando os bons empregos. Ao Estado aconselha um novo papel para resolver esse e outros problemas, nesta nova era pós-pandémica e de necessidade de um novo contrato social, numa linha próxima daquela que Mariana Mazzucato expõe no seu novo livro Economia de Missão.

Em Cabo Verde infelizmente o papel do Estado não é visto como promotor e facilitador de processos de criação de riqueza. É mais compreendido no papel que aparece todos os dias na televisão a representar. O papel de distribuidor de riqueza que o faz paternalista, realizador de sonhos da população e generoso para com as reivindicações das pessoas. Com o Estado nessa função todos, as pessoas e a sociedade, correm o risco perder a noção de como se cria valor. Também sempre vai aparecer quem tente extrair valor para servir a si próprio e à uma clientela. Globalmente acaba por verificar-se uma grande destruição de valor com as ineficiências, os desvios e as oportunidades perdidas.

Mudar de atitude ou trocar o chip deveria passar por redefinir o papel do Estado numa a perspectiva em que a criação de riqueza não estaria desligada da sua distribuição e utilização na potenciação dos recursos do país e em particular do capital humano. Infelizmente o que parece estar na ordem do dia é o poder e a corrida aos recursos. A possibilidade real de “um bloqueio, se não colapso do Estado” se não houver perdão da dívida externa e investimentos externos transformadores, como referiu o Vice-Primeiro-Ministro, na segunda-feira, devia servir de travão efectivo a tais ímpetos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1003 de 17 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 15, 2021

Tempo para acabar com os mitos

 

A reorganização da economia mundial e de muitas economias nacionais é uma das consequências da pandemia da Covid-19 que vem avassalando o mundo desde dos primeiros meses de 2020.

É um processo quase incontornável considerando o impacto que o Sars-coV-2 tem tido em todos os aspectos da vida. As previsões para o regresso a uma normalidade, que certamente não será a mesma de antes, apontam para um mínimo de dois ou três anos. Entrementes, para combater os efeitos disruptivos do coronavírus, não obstante a vacinação em massa das populações, vão-se exigir novos comportamentos e novas formas de trabalhar. Para se posicionarem com vantagem para o futuro os países terão de renovar a capacidade de resposta a pandemias e a outras catástrofes naturais. Muita coisa vai mudar e nem sempre para melhor. Já há sinais de proteccionismo e de repatriação de indústrias estratégicas, mas também de priorização de investimentos no sector da saúde e em geral medidas de reconfiguração do comércio internacional.

Para os países mais pequenos e insulares o desafio é ainda maior. Muitos como Cabo Verde têm uma economia pouco diversificada e qualquer perturbação nas transacções de mercadorias e no fluxo de pessoas e de capitais tem efeitos demolidores. A retracção do turismo tem um efeito demolidor porque põe em causa sectores-chave como a construção, transportes e acolhimento que depois afectam por arrastamento várias indústrias e serviços. O desemprego e a perda de rendimento que daí resultam têm consequências sociais e até psicológicas graves que juntas com as exigências de distanciamento social e outros constrangimentos podem levar a situações muito complicadas.

Saber reagir perante o choque inesperado que foi a pandemia é crucial para poder conter os seus efeitos perniciosos e preparar-se para potenciar eventuais vantagens. Uma das vias a ser considerada numa perspectiva de maior diversificação da economia e de criação de mais riqueza nacional é a exploração dos recursos naturais existentes. A celebração do Dia do Pescador veio relembrar a importância actual do sector para a economia e para o rendimento das pessoas e o que potencialmente podia ter, se ao longo dos tempos, nele se tivesse investido com uma outra visão.

O sector, de facto, teria outra relevância se ao invés das quinze mil toneladas pescadas anualmente se se aproximasse das 40.000 toneladas possíveis. Se houvesse capacidade para suprir com captura de origem cabo-verdiana os milhares de toneladas de peixe que a Frescomar precisa processar durante o ano e depois vender como enlatados nos mercados da Europa sem necessidade de pedidos anuais de derrogação dos direitos de origem. Se, ao invés de milhares de operadores na pesca artesanal e na distribuição de peixe sobrevivendo com pequenos rendimentos e a viver precariamente, fosse possível organizar o sector em outros moldes, por forma a aumentar a produtividade da faina, alargar a área de actividade da mesma e ainda melhorar a qualidade do produto que chega ao consumidor. Todos ganhariam com consequente ampliação do mercado e maior mais-valia nas vendas.

A verdade é que, como todos reconhecem - operadores, público e Estado - o sector das pescas, mais de 45 anos depois da independência, está muito aquém do que seria desejável. Ouvindo os debates públicos sobre a matéria, fica-se com a sensação que praticamente ainda se está nos primórdios do que seria necessário para um verdadeiro arranque. Da captura nacional, cerca de 43% vem da pesca artesanal feita com botes frágeis e de alcance muito limitado mesmo quando motorizados. A outra parte é feita com embarcações semi-industriais que, não obstante os esforços, mostram-se incapazes de explorar devidamente os vários bancos de pesca existentes no arquipélago. Toda a actividade da pesca nos termos referidos apresenta riscos que dificultam investimentos no sector e tendem a onerar créditos já conseguidos. As tentativas de quebrar o círculo vicioso e diminuir os riscos de financiamento com fundos públicos não tiveram grande sucesso. Talvez tenha contribuído para isso o facto de nunca se ter encontrado uma visão e desenvolvido uma estratégia que efectivamente fizesse o sector crescer de forma sustentável e ir além do estádio artesanal e semi-industrial que sempre o limitou.

A omissão em matéria de políticas públicas estranhamente parece conviver com mitos à volta do potencial de pescas no país que ainda em 2021 se luta por ultrapassar. Um esforço provavelmente inútil considerando que até agora ninguém o conseguiu. Continua-se a acreditar que o país é rico em peixe. Num mesmo fôlego dá-se por assente que os recursos haliêuticos andam a ser roubados por estrangeiros. Paradoxalmente não há acção consequente para criar riqueza a partir dos recursos reais nem mesmo para fiscalizar as águas nacionais e os acordos de pesca assinados com outros países. Assim é, porque alimentar mitos e nutrir sentimentos de vitimização nunca beneficiaram ninguém e convidam à inacção.

Um primeiro resultado é o espectáculo que se assiste todos os anos à volta da possibilidade da Frescomar fechar com perda de centenas de empregos e prejuízos enormes nas exportações. Um outro é o debate patético que se faz à volta dos acordos de pesca com a União Europeia. Já no que diz respeito à capacitação de uma Guarda Costeira, virada para a fiscalização da zona económica exclusiva do arquipélago e para busca e salvamento de forma a diminuir os riscos de perda de vida dos pescadores, não se discute, talvez para não se intrometer em domínios “reservados”. O facto é que Cabo Verde continua indefeso perante as incursões ilegais de entidades outras e dependente da ajuda externa num sector em que por excelência devia criar riqueza, submetendo-se, pelo contrário, a uma lógica redistributiva de botes, motores, caixas térmicas e até bicicletas e motos eléctricos para procurar superar vulnerabilidades que insistem em se manter. Economias de escala e acesso a outros mercados seriam necessários para diminuir os riscos inerentes à actividade, mas mesmo quando essas condições são criadas, pela via das conserveiras viradas para exportação como a Frescomer, faltam políticas para as aproveitar em pleno.

Outros mitos alimentados por gerações servem muitas vezes para distrair do essencial, justificar investimentos duvidosos e convidar a uma espécie de resignação que de tempos em tempos é sobressaltada com euforias particularmente na sequência de construção de infraestruturas, seguida de frustrações quando os objectivos não são atingidos para depois a ela se regressar. Um desses mitos baseia-se na crença que se o país chovesse “todos seriam felizes e ninguém precisaria do Estado”. Muito da euforia à volta da mobilização da água via barragens ontem, e via dessalinização de água hoje, resulta desse mito. Água é importante assim como ter mar e peixe. Mas não chega, como mostra a persistente vulnerabilidade das populações envolvidas nessas actividades.

Há que ter políticas consequentes com investimento, desenvolvimento do capital humano e acesso organizado a mercados para se criar um círculo virtuoso que resulte em mais riqueza para o país e mais rendimento para as pessoas. Cabo Verde precisa libertar-se dos mitos que o mantém ainda conformado a esperar a ajuda dos outros. O impacto da pandemia sobre o turismo e sobre toda a economia nacional deveria ser choque suficiente para se livrar desse torpor e mobilizar energia e vontade para construir a prosperidade que todos almejam.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1002 de 10 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Pandemia e política externa

 A política externa tem sido tema de conversa e controvérsia nas últimas semanas. Depois da demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros, na sequência da nomeação de um cônsul honorário considerado controverso por certos sectores da política nacional por causa das suas preferências políticas, ganhou mais força.

A matéria foi agendada para a discussão na Assembleia Nacional e como seria de esperar o debate acabou por resumir-se a disputas de quem foi mais patriótico, quem trouxe mais ajuda externa e quem mais prestigiou o país. Interessante, mas revelador do nível e pertinência do discurso político produzido pelas partes, é o facto que, quando se traz à baila a questão concreta da taxa comunitária no valor de 20 milhões de dólares que Cabo Verde já deve à CEDEAO e cujo montante aumenta todos os dias, não há respostas claras.

Ninguém aparece a disputar a taxa, todos se predispõem a pagar, mas não se fica com a impressão que alguém sabe realmente como fazer. Aparentemente ninguém tem um plano de rever as transacções internacionais do país para deixarem de ser mais de 80% com países que não são da CEDEAO e não produzir essa taxa comunitária elevadíssima e desproporcional. Isso obrigaria Cabo Verde, um país insular a mais de 400 milhas da costa ocidental da África a industrializar-se e a diversificar a sua economia no sector de serviços e das tecnologias de informação e comunicação de forma a competir com outros países no acesso aos mercados africanos. De facto, é só com a expansão da economia nacional provocada pelo aumento de produtos transaccionáveis com a África é que se pode pretender pagar o montante da taxa em dívida e a prazo minimizar o valor anual da própria taxa. E sem pagamento não há meio de Cabo Verde ter algum papel de relevo na comunidade como todos tiveram a oportunidade de constatar no caso recente da apresentação da candidatura à presidência da CEDEAO.

Ou seja, todos podem proclamar ter a melhor, a mais inteligente e mais pragmática política externa, mas a verdade é que sem uma consistente política interna de atracção de investimentos, de incentivo à iniciativa privada e de desenvolvimento dos recursos humanos não há como posicionar-se externamente de forma vantajosa para crescer e produzir riqueza. Fica-se na prática por uma política externa dirigida para a captação de ajudas que pode parecer pragmática por não questionar a origem e os condicionalismos das doações e até “esperta”, numa perspectiva de curto prazo de mobilizar fluxos externos para o país. A médio e longo prazo porém revela-se pouco inteligente porque sendo na essência passiva e submissa não é articulada com uma política interna virada para o crescimento. Com o andar dos anos, já se passaram mais quatro décadas após a independência nacional, acabam por se revelar os custos das opções feitas visíveis na persistente vulnerabilidade do país, e na precariedade da vida das populações e num endividamento externo quase insustentável.

Um debate sobre a política externa do país não deveria ficar por exercícios de auto-congratulação por supostos grandes resultados conseguidos. Muito menos deveria servir de arma de arremesso para conquistar eleitores na emigração com vista às próximas eleições legislativas e presidenciais. A fragilidade do país é por demais notória e a pandemia do coronavírus veio expô-la ainda mais. Sem uma política interna dirigida para a potencialização dos recursos do país a começar pelos recursos humanos e sem espírito de abertura ao mundo para realisticamente aperceber das oportunidades e agir sem complexos e com desembaraço para os aproveitar fica difícil construir um outro caminho. E isso é fundamental para sair do que retrospectivamente se pode constatar como tendo sido uma gestão “corrente” do Estado que apesar de avanços nalguns indicadores do crescimento económicos e social nunca de facto foi capaz de colocar o país numa plataforma sustentável de desenvolvimento.

A urgência de uma nova abordagem é ainda maior quando é mais que evidente que o mundo está a mudar e que o multilateralismo das últimas décadas dificilmente irá sobreviver nos mesmos moldes. Nesse sentido há que considerar que já passou o tempo da guerra fria em que se podia tomar como grandes artes da diplomacia saber esconder certas simpatias ideológicas para aproveitar o grosso da ajuda externa que vinha das democracias da Europa e da América. Ou que se podia recorrer às velhas reivindicações de utilidade do país no plano internacional como eixo da política externa em grande parte para salvaguardar o orgulho nacionalista e terceiro-mundista e para justificar um quadro de relação que era de facto de dependência da ajuda externa.

O tempo é agora fundamentalmente para a utilidade que conduz a maior autonomia das pessoas e da sociedade e traz prosperidade e que o país pode granjear atraindo investimentos, sendo destino turístico de qualidade e integrando cadeias de valor globais. Também em simultâneo com o fortalecimento de relações multilaterais deve-se investir em relações bilaterais fortes e confiáveis na base da partilha de princípios e valores que sirvam de âncora para enfrentar as múltiplas ameaças, sejam elas do crime, do terrorismo ou dos diferentes tráficos, sejam elas naturais como a da actual pandemia e as alterações climáticas. O pragmatismo na actual situação deve significar evitar que resquícios ideológicos de outras épocas interfiram nas relações com os outros países não deixando espaço para que a prosperidade mútua se construa na base de confiança.

A pandemia do coronavírus enquanto ameaça global tem permitido obter uma perspectiva dinâmica das relações entre as nações e seu possível impacto no futuro. A escassez sucessiva de máscaras, álcool gel, máquinas de PCR e reagentes e agora de vacinas desencadeou várias reacções dos países desenvolvidos que vão desde o proteccionismo com controlo de certas exportações consideradas vitais, a apelos para fazer regressar ao país (onshoring) indústrias estratégicas e até à redefinição das actuais cadeias globais de abastecimento. Em tal ambiente sofrem os mais pequenos e os mais fracos. Desembaraçam-se melhor os que souberam alimentar relações bilaterais fortes por razões históricas ou outras com países em posições- chave.

As ilhas Maurícias e as Seichelles por exemplo receberam da Índia respectivamente 100 mil e 50 mil doses de vacinas e puderam iniciar a imunização da sua população em Janeiro. O mesmo aconteceu nas Caraíbas onde várias ilhas que se suportaram na relação especial com países da União Europeia para beneficiar da quota das vacinas atribuídas. Já Portugal, em Janeiro, abdicou de comprar 800 mil doses de vacinas que constavam da sua cota. Se logo no início da pandemia o aprofundamento da relação bilateral com Portugal tivesse sido visto como estrategicamente vital para o país talvez as coisas tivessem corrido melhor na luta contra a covid-19, fruto de melhor articulação, acesso a recursos diversos e apoio científico.

Os tempos de hoje pedem um outro foco nas relações externas que realmente beneficiem o país e não sejam simplesmente ir atrás de certos sentimentos ou interesses que depois trazem custos como a taxa comunitária que ninguém depois sabe como justificar ou como pagar. O debate sobre a política externa deve ter essa perspectiva de futuro e não deixar-se apanhar por distracções como o pseudo conflito entre embaixadores políticos e embaixadores de carreira, que só servem para o arremesso político e justificar as insuficiências da diplomacia. Convenhamos que ninguém ignora que o vaivém entre cargos políticos e cargos diplomáticos não é de hoje. Vem desde sempre e nunca constituiu o problema maior da política externa cabo-verdiana.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1001 de 3 de Fevereiro de 2021.

segunda-feira, fevereiro 01, 2021

Ininterrupto

 


O Expresso das Ilhas põe nas bancas nesta quarta-feira, 27 de Janeiro, a sua edição número mil. Quase vinte anos se passaram desde a primeira edição de 12 de Dezembro de 2001.

Ininterruptamente nas bancas desde então o jornal passou por muitas fases e até agora tem conseguido driblar o destino que muitos pressagiam para a imprensa escrita. Com uma nova direcção a partir de Agosto de 2010, e após uma reestruturação profunda, que colocou a empresa em bases financeiras mais resilientes, o Expresso das Ilhas tem vindo a navegar os ventos difíceis encontrados pelos jornais em todo o mundo. Em Cabo Verde, como noutras latitudes, alguns já soçobraram ou tiveram de mudar de plataforma para poder sobreviver, ficando o país em tempos de pandemia sob o risco de não ter qualquer jornal impresso.

De facto, à actual realidade de um mercado publicitário a encolher-se, juntaram-se há algum tempo as ameaças da televisão 24/7, que vinham de longe, e as novas ameaças representadas pelas redes sociais. Estas últimas até dão espaço a alguma pretensão de que os médias tradicionais não são necessários e que se pode passar sem mediação na comunicação social. Por isso mesmo a caminhada não tem sido fácil até agora mas talvez este momento venha a revelar-se como um ponto de inflexão numa tendência que até recentemente parecia inelutável. Um sinal claro é a derrota de Trump. Na sua esteira sofreram sério revés as movimentações que vinham propondo realidades alternativas e também combatendo a comunicação social tradicional e acenando com uma sedutora ligação directa do líder às pessoas através do Twitter, do Facebook e de outras plataformas na internet. Uma oportunidade poderá estar a oferecer-se para afirmação de uma outra forma de jornalismo que não deixe as pessoas completamente expostas à demagogia, ao populismo e à manipulação violenta de sentimentos e paixões em detrimento da razão.

Ninguém hoje pode pretender desconhecer que por detrás dessas ondas de apoios a demagogos e extremistas estão problemas reais que tardam em ser devidamente enfrentados. As frustrações, os ressentimentos, a insegurança, a perda de rendimentos e de estatuto social de largas camadas da população nas democracias têm sido a fonte que alimenta todos os candidatos a autocratas no seu esforço de descredibilização das instituições, de questionamento dos processos democráticos e de se apresentarem como o único e verdadeiro representante do povo. Não se pode esconder, porém, que ao longo do tempo têm recebido preciosa ajuda de onde em princípio devia haver mais recato.

É uma realidade os estragos que a classe política vem provocando nas instituições democráticas. Quantas vezes usam do mesmo discurso populista para lançar descrédito sobre as instituições ou servem-se de argumentos mesquinhos para bloquear acções urgentes e necessárias, mostrando-se incapazes de compromissos. Também é preciso ver o papel dos médias que no seu afã de conquista de audiência perdem a perspectiva do que deles se espera: fiscalização consistente e até acutilante da acção governativa e não produção de mais cinismo em relação às instituições que depois deixa as pessoas e todo o sistema político mais vulnerável. Ainda há a acrescentar a indiferença de boa parte da sociedade civil que, mostrando desprezo pela actividade política e cultivando um cosmopolitismo que não deixa ver os problemas mais locais, tudo faz para alimentar sentimentos anti-elitistas que tendem a ser aproveitados por demagogos para lançar as pessoas contra tudo o que é ciência, conhecimento consolidado e informação institucional.

O Expresso das Ilhas na sua última iteração procurou ir além do que o panorama jornalístico cabo-verdiano oferecia. Como historicamente se pode comprovar, as democracias nos seus primeiros anos tendem a ter uma imprensa muita partidarizada ou facciosa. É, em certos aspectos, natural que seja assim considerando que instituições democráticas estão a ser construídas, uma cultura democrática está ainda por ser absorvida e nem sempre se consegue distinguir o adversário do inimigo. Também não se viveu tempo suficiente em democracia para perceber que a política é a arte do possível e que para se conseguir ganhos consistentes há que criar disponibilidade para negociar, chegar a acordos e firmar compromissos. Num ambiente do tipo, muito do que aparece nos jornais é um misto de informação, opinião e especulação procurando servir interesses de partidos e facções e ambições de certas personalidades. A crispação política nas instituições e em particular no parlamento é replicada e amplificada via imprensa com sacrifício muitas vezes da verdade e do debate das questões públicas pertinentes e num registo que não poucas vezes desemboca em acções judiciais por injúria, calúnia e difamação.

Preparar Expresso das Ilhas para ir além das contendas iniciais da democracia e prestar-se a servir o público com mais equilíbrio e objectividade traduziu-se em primeiro lugar na introdução do editorial enquanto opinião expressa do jornal quanto aos assuntos correntes do país. Libertava-se assim o resto do jornal e também os jornalistas para informação sem contaminação opinativa e especulativa. Nas páginas deixadas para os colunistas e opinião de colaboradores houve sempre a preocupação em as manter plural. Por outro lado, querendo um jornal generalista, procurou-se dar cobertura com alguma profundidade a matérias de natureza económica e ter uma secção de cultura vibrante, não descurando o seguimento de situações internacionais e o acesso a opiniões habilitadas de personalidades estrangeiras. A ciência e a tecnologia sempre foram áreas de eleição no jornal e é com agrado que se pode constatar que de alguma forma a “moda” pegou.

A partir da nova abordagem o jornal reafirmou o seu comprometimento com a verdade e com a informação factual e também a sua disponibilidade em promover o conhecimento indispensável para uma participação cidadã plena. Coincidentemente é o que hoje em plena crise das democracias se espera de um papel renovado da imprensa na defesa das instituições e dos direitos fundamentais e na luta contra realidades alternativas e contra os promotores da pós-verdade. Neste número 1000 celebra-se essa caminhada e renova-se a vontade de a prosseguir com firmeza.

Saudamos todos os colaboradores do Expresso das Ilhas pela contribuição ao jornal ao longo de todos estes árduos anos de colocar o jornal nas bancas com a qualidade e assiduidade esperadas pelos leitores e anunciantes.

O nosso apreço vai para todos os que com os seus artigos de opinião contribuíram para que o jornal fosse um espaço plural de debate político.

Os nossos agradecimentos aos patrocinadores das múltiplas iniciativas do Expresso da Ilhas na promoção da cultura cabo-verdiana s e aos anunciantes pela sua contribuição na sustentabilidade do jornal como uma voz interventiva no espaço público do país.

Um muito obrigado ao parceiro especial que é a Tipografia Santos que todas as quartas-feiras com mais uma edição acabada de imprimir nos permite cumprir com os nossos leitores e anunciantes.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1000 de 27 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Democracia e verdade

 

Hoje, dia 20 de Janeiro de 2021, acontece nos Estados Unidos da América a inauguração de uma nova presidência com a substituição de Donald Trump por Joe Biden. As inaugurações americanas, que acontecem de quatro em quatro anos na sequência das eleições presidenciais, por se tratarem de um processo de transferência de poder feito de forma pacífica desde os primórdios da república, são seguidas com fascínio em todo o mundo.

Evidenciam a superioridade do sistema de governo democrático que consegue renovar-se e apresentar alternativas de governação sem convulsões, revoluções ou violência de qualquer espécie. Desta vez o acto inaugural é especial porque o seu caracter pacífico, a concordância das partes e o veredicto institucional quanto aos resultados foram postos em causa. Felizmente ganhou a democracia e espera-se que a enorme ameaça às instituições e à liberdade tenha sido ultrapassada para benefício e conforto de todas as outras experiências democráticas em todos os continentes.

Durante quatro anos a democracia americana foi desafiada de forma sistemática pelo seu próprio presidente e por representantes do partido republicano nos outros órgãos de soberania. Costumes e normas ostensivamente não foram cumpridos, bloqueios foram colocados aos actos de fiscalização política da governação e fez-se da presidência o maior púlpito para propagar mentiras e teorias de conspiração, para alimentar realidades alternativas e para atacar a comunicação social com acusações de fake-news e de elitismo. Paralelamente procurou-se desequilibrar o poder judicial com nomeação de juízes ideologicamente próximos.

Viveu-se durante algum tempo uma experiência directa e assustadora de como as democracias podem morrer pela acção dos seus líderes, pela omissão de muitos que falham no cumprimento dos seus deveres e pela complacência daqueles que se deixam ficar no seu lugar por cinismo ou por considerarem que os políticos são todos iguais e todos corruptos. Ainda bem que o desfecho foi outro, mas convém que se assuma que foi quase à tangente e que é de toda a importância saber porquê, por exemplo, os checks and balances do sistema pareciam não funcionar. Também procurar conhecer as razões por que um grande número de pessoas se prontificava a seguir um chefe cuja relação com a verdade era espúria. E ainda descortinar por que gente “normal” parecia não mostrar qualquer pudor, repugnância ou estranheza mesmo perante as maiores enormidade proferidas, as demonstrações de falta de ética e a incompetência sem precedentes na condução dos assuntos do Estado.

São questões que se colocam a todos aqueles que nas democracias em crise debatem-se com populismos e extremismos tanto da direita como da esquerda. Um factor comum que contribui para esse tipo de dissonância cognitiva é o abandono da procura sistemática da verdade, o não reconhecimento de uma realidade objectiva e a eliminação da diferença entre facto e opinião. Realmente, a polarização da sociedade tem levado os actores políticos a entrincheirarem-se nas suas narrativas, na sua visão do mundo e nos seus factos, não deixando espaço para compromissos e consensos sobre qualquer matéria. As instituições de mediação têm sido alvo de ataques anti-elitistas para os descredibilizar alimentando a desconfiança em relação aos órgãos de comunicação social e atitudes de cepticismo mesmo perante as conquistas da ciência. E as redes sociais têm propiciado um espaço para o aparecimento de grupos herméticos de pensamento similar e por isso pouco dados a diálogo e tendencialmente hostis aos outros com posições diferentes.

Uma das consequências mais graves desta situação é a tendência para o surgimento de teorias de conspiração que procuram compreender e explicar a realidade não com base em métodos científicos ou em regras já estabelecidas para avaliar a evidência no quadro de processos transparentes e plurais mas sim pela revelação de jogadas, conluios e tráfico de influência obscuros. Quem se vê com esse suposto conhecimento sente-se completamente empoderado para depois de identificar os inimigos usar as tácticas que quiser para os esmagar. Da paranóia, que transforma adversários políticos em inimigos, à violência é um passo, como vários exemplos na história demonstram. O potencial para a violência dessa abordagem da realidade ficou mais uma vez patente nos últimos acontecimentos nos Estados Unidos que culminaram no ataque ao Capitólio. Impedir que a política seja sequestrada por teorias de conspiração deve ser uma preocupação fundamental das democracias neste momento que ainda se está a aprender a lidar com a realidade das redes sociais e que no contexto da pandemia se procura restaurar credibilidade à ciência, aos médias e às instituições que são fontes de informação factual.

Dificuldade maior em fazer esse combate verifica-se nos países em que a transição de regimes autoritários e totalitários para a democracia não se saldou pela ruptura completa em termos de princípios e valores ficando o novo e o velho a conviver em permanente tensão. Ora, como já alguém disse meias-vitórias, ou meias-derrotas, são uma espécie de veneno para a democracia e uma espécie de bálsamo para os ressentidos. O regime assim constituído dificilmente irá engajar-se completamente na busca da verdade histórica-política, sócio-económica e cultural que de alguma forma arriscasse a pôr em causa os equilíbrios existentes. Sendo assim, é evidente que facilmente pode tornar-se em ambiente propício para o digladiar permanente de narrativas sem possibilidade de resolução através da verificação dos factos e em terreno fértil para mentiras, fake news e teorias de conspiração que justifiquem a classificação dos adversários políticos como inimigos, antipatriotas e promotores do “quanto pior, melhor”.

Em Cabo Verde todos os anos por altura do 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, que celebra a II República e, uma semana depois, até o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais, que relembra a I República revive-se com mais fulgor a tensão sócio-política que resultou da percepção de meia-vitória, ou meia-derrota no processo de transição para democracia. Para quem tiver dúvidas quanto a isso é só ouvir os recentes testemunhos divulgados na comunicação social durante a chamada Semana da República. A tensão, como se pode facilmente constatar, é real e permanente no país e condiciona pela negativa o diálogo na esfera pública, a procura de soluções para o futuro do país e o enfrentar das múltiplas fragilidades que teimam em deixar o país vulnerável e asseguram que a vida das populações continue a ser precária.

Às vezes extrapola e até alimenta teorias de conspiração que numa nomeação de um cônsul honorário vão encontrar evidência da ligação do partido do governo a partidos da extrema-direita na Europa. Revive-se a paranóia de antigamente em que se acusam os inimigos internos de se aliarem a inimigos externos, neste caso não para derrubar o regime, mas talvez para prejudicar as comunidades emigradas, visto que a extrema-direita é racista, xenófoba e contra os emigrantes. A violência intrínseca nessas teorias de conspiração amplificadas nos tempos de hoje pelas redes sociais até agora só fez cair um ministro, mas pressente-se que os alvos podem ser alargados particularmente quando o primeiro foi tão fácil de atingir.

A lição a tirar da presidência de Donald Trump é que pode ser fatal para as democracias ter uma esfera pública dominada por mentiras, realidades alternativas e teorias de conspiração. A situação é mais grave quando é o próprio Estado a alimentar essa dissonância com a realidade. Na América está-se a pagar essa deriva anti-democrática com mortes, sofrimento e perda de rendimento numa escala nunca vista. A esperança é que o novo presidente restaure os pressupostos que sempre fizeram dos EUA uma democracia vibrante e engajada em diminuir o fosso entre os seus ideais e a sua prática. Para as outras democracias a esperança é que saibam arrepiar caminho a tempo e não deixar que a violência política de qualquer tipo seja tida como legítima na luta política.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 999 de 20 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 18, 2021

13 de Janeiro - Trinta anos depois

 Hoje celebra-se o trigésimo aniversário do momento fundante do Cabo Verde moderno, livre e democrático. No distante dia 13 de Janeiro de 1991 realizaram-se as primeiras eleições livres e plurais.

Só por isso a data já merecia ficar registada e ser comemorada como o dia em que na liberdade pela primeira vez foi exercida a vontade soberana do povo e através dela se legitimou o exercício do poder político na república. Afinal, em certo sentido, a democracia define-se como governo da maioria que resulta de eleições periódicas e pluripartidárias. E foi nesse dia que tudo começou.

O 13 de Janeiro ganhou uma importância ainda mais fulcral para o devir do país com o resultado eleitoral obtido ao assegurar uma maioria qualificada de mais de dois terços dos deputados ao partido da mudança. A decisão popular em mudar o regime político foi claramente expressa. O caminho ficou aberto para a adopção de uma Constituição liberal e democrática que firmemente e sem ambiguidades passou a garantir o respeito pela dignidade humana e a reconhecer a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos fundamentais dos indivíduos.

O quadro político da transição democrática estabelecido unilateralmente pelo então partido único excluía a possibilidade de uma assembleia constituinte para dotar o país de uma nova Constituição. A opção feita em Setembro de 1990 foi de fazer alterações na Constituição de 1980 para permitir a participação de outros partidos e a realização de eleições livres e também para, em conformidade com o sistema de governo semipresidencialista escolhido, redefinir competências do presidente da república e do parlamento. Na prática, enxertava-se na antiga Constituição algumas normas que permitiam um funcionamento num ambiente político-partidário plural deixando o resto praticamente inalterado em particular no domínio dos direitos, liberdades e garantias e no que respeitava ao poder judicial.

Retrospectivamente, pode-se ver que sem uma maioria qualificada para adoptar uma nova Constituição, o pluripartidarismo cabo-verdiano provavelmente iria conhecer anos de instabilidade e não teria adoptado os valores civilizacionais que o catálogo de direitos da Constituição de 1992 consubstanciam. Neste aspecto são esclarecedores os anos de instabilidade na Guiné-Bissau e noutros PALOP, e também na Nicarágua e na Argélia, entre vários outros países que na época fizeram a sua transição para a democracia, que foram provocados em boa parte por essa espécie de “hibridismo” constitucional. Por causa dos resultados do 13 de Janeiro Cabo Verde teve sorte nesse aspecto e essa é uma das razões por que tem beneficiado de governos estáveis nestes trinta anos e tem conduzido processos de transferência de poder em momentos de alternância política com absoluta tranquilidade.

O facto de o país ter tido oportunidade de fazer uma Constituição liberal e democrática num quadro consensual não significa porém que o tenha conseguido realmente. Ficou suficiente areia nas engrenagens institucionais para dificultar a emergência e a consolidação de uma cultura democrática. Como alguém já disse “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. Não pode haver outras legitimidades para o exercício do poder que não a legitimidade democrática. De outra forma todo o processo democrático de confronto da realidade do país, suportado na base dos factos e orientado para a descoberta da verdade, é escamoteado e substituído por narrativas estanques em colisão permanente. Da experiência de Cabo Verde se pode comprovar que daí só pode vir mais polarização política e exercícios em pós-verdade e fake news com os seus males em termos de esterilidade do discurso político, de diminuição da participação política e de uma maior partidocracia a querer resvalar para adulação dos líderes, todos eles cada vez mais autocráticos.

Durante o ano de 1989 o mundo assistiu fascinado ao desmoronar do império soviético na Europa de Leste que culminou com a queda do Muro de Berlim, em Novembro, depois de ter passado pela Polónia e pela Hungria. Seguiram-se depois a revolução de veludo na Checoslováquia e a execução sangrenta dos Ceaucescu na Roménia. Em Janeiro/Fevereiro de 1990 terminou o monopólio político do partido/Estado na Argélia e na União Soviética. A vez de Cabo Verde chegaria com a chamada abertura política iniciada a 19 de Fevereiro.

Da análise desses casos, um facto a assinalar é que quase sempre a iniciativa partia dos ditadores tentando fazer fuga em frente para manterem o país sob controlo. Na maior parte das vezes eram ultrapassados pelos acontecimentos e escorraçados do poder. A realidade inescapável então vivida nos fins da década de oitenta é que reformas na URSS de Gorbatchev e noutros países tinham desencadeado uma onda da democracia que percorreu o mundo derrubando regimes ditatoriais em todos continentes. Houve mesmo quem tenha proclamado o fim da história com a vitória da democracia e com a aceitação universal dos direitos do homem.

Trinta anos depois constata-se porém que afinal a história não acabou. Conflitos entre nações continuam a existir e regimes autocráticos emergentes desafiam as democracias, apresentando-se como um outro modelo bem-sucedido de organização do Estado. Mesmo em várias democracias notam-se derivas chamadas de iliberais que procuram restringir direitos entre os quais a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e põem em causa a independência dos tribunais. Fala-se hoje de recessão democrática num mundo em que as democracias tanto antigas como as mais recentes estão a braços com uma crise profunda que se apresenta como uma crise de representação e uma crise das instituições de mediação acompanhadas de uma espécie de atracção fatal tanto para o populismo de esquerda como da direita.

Assim como em 1989/90 ninguém ficou imune aos efeitos da onda democrática também agora parece que ninguém consegue fugir à crise da democracia. Na semana passada todo o mundo pôde observar o assalto da população ao centro da democracia na América, o Capitólio, e como as pessoas foram atiçadas pelo próprio presidente a usar meios violentos para bloquearem os trabalhos do Congresso. Em maior ou menor grau os ataques à democracia que invariavelmente tomam a forma de agressão ao parlamento, aos órgãos de comunicação social e aos tribunais acontecem um pouco por todo o lado. Também nota-se que nem sempre vêm de fora e que os golpes mais violentos normalmente têm origem precisamente em entidades como partidos, governos e líderes que supostamente deveriam defender o sistema democrático.

Em Cabo Verde os sinais típicos da crise da democracia estão presentes e vêem-se nas instituições, nos partidos, nas relações entre os órgãos de soberania e na participação política dos cidadãos marcada muitas vezes por sentimentos de descrédito ou por uma postura cínica. A América de Trump em plena pandemia do coronavírus veio demonstrar o grau de impotência que pode chegar a sociedade mais desenvolvida do mundo se se deixar que o discurso público seja dominado por mentiras, que teorias conspiratórias consigam criar verdades alternativas e que o poder do Estado e a influência dos líderes sejam utilizados para mobilizar paixões, alimentar ressentimentos e direccionar ódios. Neste trigésimo aniversário do 13 de Janeiro é fundamental que ninguém se deixe tentar pelo negativismo que vem acompanhando e aprofundando a crise das democracias. Pelo contrário. Impõe-se que se recupere o estado de espírito positivo e de esperança de há trinta anos atrás para que mais uma vez se faça o país dar o salto para a modernidade e desenvolvimento comparável ao que verificou nos anos noventa, agora com mais sabedoria e sentido do futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 998 de 13 de Janeiro de 2021.

segunda-feira, janeiro 04, 2021

2020 em balanço

 

Entre os acontecimentos de relevo durante o ano de 2020 destacam-se pelas implicações no presente e no futuro a pandemia da Covid-19 e as eleições americanas que deram vitória a Joe Biden.

De facto, com a propagação vertiginosa do coronavírus por todos os países e continentes e o cortejo de mortos que causou, atingindo dezenas de milhões de pessoas, o mundo viu-se perante a primeira do que poderá vir a revelar-se como uma das grandes emergências planetárias deste século. Neste sentido, o impacto causado pela pandemia, deixando saber o elevado grau de interconectividade e de interdependência existente, ao mesmo tempo que faz sobressair as deficiências e as vulnerabilidade ao nível global das cadeias de abastecimento e do comércio entre as nações e os custos da não cooperação, servirá de alerta para quando a emergência for outra de grande envergadura a começar pelas alterações climáticas.

Num outro plano, a derrota de Donald Trump em Novembro último e a impossibilidade de ele assegurar um segundo mandato, em que o mais provável seria de maior degradação democrática, de aumento do risco de conflito entre as potências emergentes e de enfraquecimento do multilateralismo nas relações internacionais, deverá constituir uma oportunidade para conter a onda de populismo tanto da direita como da esquerda. Ao apresentar-se como um candidato moderado e ter saído vitorioso das eleições, Joe Biden renovou a esperança que a polarização da sociedade poderá não ser inevitável nesta época de crise de representação e das instituições democráticas e também de protagonismo cidadão nas redes sociais. Não estará para breve o fim da democracia como muitos, alguns abertamente e vários outros sorrateiramente, vinham augurando.

O ano de 2021 vai iniciar-se bafejado por um algum optimismo não só pelos acontecimentos nos Estados Unidos que deixam prever alguma inflexão em processos de crise das democracias como também pelo início da vacinação em massa das pessoas na Europa e na América e que certamente será seguida de medidas idênticas nos outros continentes. A perspectiva de pelo início do último trimestre se ter uma percentagem importante da população mundial vacinada abre a possibilidade de retoma das economias dos países desenvolvidos com impacto positivo nos países emergentes. Um óbice no processo de recuperação será o elevado grau da dívida pública acumulada e que foi contraída para resistir ao impacto económico e social da covid-19 e fazer os investimentos em particular no sector saúde que se impunham.

O risco de uma maior desigualdade entre as nações poderá aumentar, se, perante um cenário de uma normalização rápida nos países desenvolvidos e, em sentido contrário, de um aprofundamento das dificuldades nos países mais pobres, medidas concretas de perdão ou renegociação da dívida pública não forem tomadas e não se concretizarem. O regresso do multilateralismo que uma administração de Joe Biden pode prenunciar, a verificar-se, poderá criar um melhor ambiente para se encontrar soluções para o endividamento excessivo de muitos países e para abrir as portas a soluções que permitam gerir a dívida de forma sustentável.

Uma outra parte do optimismo no novo ano de 2021 deve-se às vacinas que em tempo recorde foram criadas, testadas e disponibilizadas para uso massivo. Não só tudo aponta que serão extraordinariamente eficazes contra a covid-19 como também a tecnologia baseada no mRNA nelas inserida poderá alimentar as promessas de uma autêntica revolução na luta contra outras doenças infecciosas e de natureza viral e mesmo contra o cancro. Já em matéria de contrariar os extremismos que ameaçam abertamente a democracia em todo o mundo há que dosear o optimismo. A própria derrota de Trump por mais decisiva que foi não deixou de revelar uma base forte do eleitorado que estava disposto a apoiá-lo em todas as circunstâncias mesmo aquelas em que uma gestão claramente incompetente do país estava a causar um número exagerado de mortes. E essa base de apoio tinha uma diversidade surpreendente considerando as causas defendidas pelo líder e mostrava uma dinâmica de crescimento em todos os grupos sejam eles étnico-linguísticos, religiosos, de classe social ou de género.

A força e a natureza dessa base de apoio sugerem que não se faça uma leitura ligeira da polarização hoje visível e presente de uma forma ou outra no eleitorado em todas as democracias. O que motiva essas pessoas não pode ter sido simplesmente a defesa do privilégio de alguns. Há por detrás problemas que precisam ser enfrentados adequadamente. As vias escolhidas pelos que estão no extremo oposto entre as quais demonstrações de indignação e actos justicialistas com recurso às redes sociais têm-se revelado como aceleradores da polarização. Dão razão ao aforismo popular de que os extremos se tocam e crescem alimentando-se mutuamente em confrontos que exacerbam as posições respectivas numa dialéctia em que nada e ninguém escapa.

Em Cabo Verde a pandemia teve o impacto que seria de esperar, quando numa economia não diversificada a actividade que gera empregos e receitas por pressão de mercado externo se vê, de repente, sem essa procura. Desemprego e buraco orçamental são os resultados directos arrastando os outros sectores numa espiral descendente. O confinamento decretado nas situações de emergências e os sérios constrangimentos à mobilidade e ajuntamento de pessoas postos durante meses seguidos afectaram ainda mais a actividade económica, em particular a informal. Ainda bem que as remessas de emigrantes, ajuda externa e os vários mecanismos utilizados pelo governo designadamente o layoff contribuíram para um nível de rendimento e uma procura interna que não deixou que tudo colapsasse. Não foi suficiente para conter o alastramento da pobreza, mas o efeito de travão foi sentido.

Como vários outros países, Cabo Verde seguiu no confinamento imediatamente imposto nos primeiros casos do coronavírus os procedimentos adoptados pelos países europeus logo que se viram com casos de covid-19. Pelo que se ouviu das autoridades sanitárias recentemente na imprensa não se sabe avaliar o real impacto das medidas adoptadas nem como explicar o que se passou nas diferentes ilhas. Uma coisa parece certa. Não obstante as queixas quanto ao comportamento das pessoas em matéria de confinamento parece evidente que o uso da máscara generalizou-se na população e impactou positivamente a situação, talvez contribuindo para actual quebra do número dos casos. A confirmar-se, devia ser celebrada e referenciada como exemplo de civismo, da auto responsabilidade e de sentido de pertença, virtudes essas que em todos os momentos precisam ser incentivadas. São elas que dão robustez aos alicerces da democracia e constituem um travão necessário à manipulação do sistema democrático por forças iliberais e aos efeitos perversos de certas derivas identitárias.

Em Cabo Verde o ano ainda foi marcado pelo início do ciclo eleitoral com as eleições autárquicas de Outubro. Como seria de prever, considerando a situação algo anómala saída das eleições em 2016, verificou-se um reequilíbrio autárquico com a distribuição mais equitativa das câmaras municipais pelos dois grandes partidos. Aparentemente não era para muitos o resultado esperado e viu-se num e noutros sectores muita euforia e algum sinal de desânimo. A consequência imediata foi toda a acção dos partidos ter sido direccionada para as legislativas previstas para daqui a três/quatro meses.

Com isso notam-se sinais de que a gestão mesmo institucional das câmaras municipais tem-se subordinado à luta por um melhor posicionamento nas legislativas. O mesmo acontecendo nas estruturas centrais do Estado com grande movimentação de pessoal dirigente num jogo de acertar contas, satisfazer as bases partidárias e renovar lealdades. Infelizmente com a alta no nível de crispação são os problemas do país que vão ficar de molho praticamente durante cerca de seis meses. Depois do que se passou no ano de 2020, que deixou em claro as vulnerabilidades do país e a precariedade da vida das pessoas, não tinha nem devia ser assim.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, dezembro 28, 2020

Solidariedade

 

Já próximo do fim deste ano atípico de 2020 e em plena época natalícia as pessoas em todo o mundo animam-se com a perspectiva de virem a ser vacinadas contra a Covid-19 e de se verem livres desta pandemia que se tem revelado desastrosa e mortífera para a humanidade.

O futuro já não parece tão complicado face ao feito impressionante de, em tempo recorde, se ter desenvolvido vacinas revolucionárias, tanto na forma como actuam e mobilizam o sistema imunitário como ao nível de eficácia atingido (à volta de 95%), e prontas a ser aplicadas massivamente nos próximos meses. Renovaram-se as esperanças de que mais cedo do que seria esperado haverá condições para a retoma económica e alguma normalização da vida social e cultural.

O facto de isso resultar de uma cooperação internacional inédita, traduzida em investimentos massivos na pesquisa científica com foco na produção de vacinas e também na colaboração estreita entre comunidades científicas de diferentes países, funcionou como um bálsamo para o sofrimento suportado com os milhões de mortos e os confinamentos obrigatórios. Por ter trazido resultados por altura do Natal reforçou a importância da solidariedade entre as pessoas, visto agora como um sentimento que não deve ficar só pela família e pela nação mas estender-se a todos num abraço global. Os desafios que se colocam à humanidade a começar pelas alterações climáticas e incluindo a transição energética e outras pandemias que, segundo os experts, inevitavelmente irão se verificar no futuro, clamam por essa solidariedade global.

Outrossim a pandemia veio pôr um foco especial sobre as graves consequências do aumento da desigualdade social que desde a Grande Recessão de 2008 se tornou particularmente perceptível na maior parte dos países do mundo e em especial nas economias mais desenvolvidas. Ficou visível que as camadas sociais mais pobres e mais desfavorecidas foram particularmente atingidas pela doença e desproporcionalmente sucumbiram devido ao efeito cumulativo dos sintomas provocados pelo coronavírus e das comorbidades de que já padeciam. Na sequência da covid-19 já não havia como negar os sinais, que vinham já antes, que o modelo económico social suportado no livre movimento de capitais e em cadeias mundiais de valor num quadro de crescente globalização da economia tinha deixado de funcionar para todos. Também ninguém podia esconder que as tensões sociais criadas, a perda de status de sectores da população anteriormente pertencente à classe média e o alargamento de cinturas de pobreza estavam a afectar gravemente a própria saúde das pessoas e contrastavam com a concentração desmedida da riqueza numa pequena percentagem da população.

O desencanto provocado pela quebra do contrato social implícito na crença que todos ganham com o crescimento económico tem vindo a alimentar o populismo e a crise das democracias. Reverter a situação vai implicar um esforço dirigido para aumentar a confiança e a solidariedade entre as pessoas. A exemplo da cooperação internacional para produzir vacinas, deverá haver uma luta ao nível local e nacional para mais solidariedade social, cívica e política. A luta contra a covid-19 será bem-sucedida se, a par da massificação das vacinas e dos avanços no tratamento dos sintomas da doença, se manter o ambiente social de confiança e de oportunidade que motive as pessoas a proteger umas às outras e a desenvolver uma nova etiqueta na relação interpessoal, mais consentânea com a presença ainda por alguns anos do coronavírus e do seu modo de contágio.

Nos países que vivem com o sentimento de quebra do contrato social, um outro público a ser alvo de uma nova abordagem é o constituído pelos chamados trabalhadores essenciais. Ou seja, todos aqueles que a exemplo dos profissionais de saúde, da segurança, da protecção civil, dos trabalhadores nos supermercados e em toda a logística de abastecimento e distribuição permitiram que o confinamento se verificasse sem perturbações de maior. Reconhece-se que o teletrabalho que permitiu que apesar de tudo muito nas empresas e no Estado funcionasse em tempo de “lockdown” só foi possível porque trabalhadores essenciais continuaram a deixar a segurança das suas casas e a exporem-se no exercício da sua actividade. Ao longo da pandemia pagaram um duro preço em número de infecções e também de mortes. Mais solidariedade significará para esse grupo um maior apreço e reconhecimento do seu trabalho e o inflectir da tendência na degradação dos níveis salariais desses serviços quando outras profissões têm ganhos desproporcionais.

Em Cabo Verde a grande luta é ter-se solidariedade social sem ser esvaziada pelo assistencialismo que torna as pessoas dependentes e construir a solidariedade cívica para além das afinidades partidárias e dos interesses dos partidos. A covid-19, a exemplo do que aconteceu noutros países, revelou as vulnerabilidades existentes e penalizou quem mais em situação desvantajosa vivia. As dificuldades em controlar surtos em vários pontos do território nacional têm a ver com as condições socio-económicas e habitacionais das populações que dificilmente conseguem cumprir com as exigências dos confinamentos, do distanciamento social e de higienização permanente das mãos e das superfícies. Para ultrapassar isso há que ir para além dos modelos de desenvolvimento que geram ganhadores entre os que giram à volta do Estado e dos projectos de ajuda externa e perdedores entre aqueles que deviam ser os putativos benificiários dos mesmos.

Em tempo de Natal é de maior importância relembrar o papel da solidariedade na consecução de todos os direitos humanos e como base para cooperação entre as pessoas e a renovação da confiança indispensável para a construção da prosperidade. Uma solidariedade também acompanhada a nível individual de auto responsabilidade e sentido de dever para com a comunidade de modo a não ser pervertida pela tentação de culpar o outro, de se vitimizar e de se deixar consumir pelo ressentimento. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 995 de 23 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, dezembro 21, 2020

País de monólogos

 

A qualidade duvidosa do debate político em Cabo Verde leva muitos a pensar em como agir para o melhorar. Há quem considere que o surgimento de outros partidos, o fim do bipartidarismo e a eventualidade de governos de coligação ou mesmo de governos minoritários podiam trazer grandes benefícios para o sistema político.

Assumem que sem maiorias absolutas todas as forças políticas seriam forçadas ao diálogo. Apesar de não haver qualquer evidência que isso possa acontecer, considerando as experiências anteriores e recentes tanto a nível local como central, a crença existe e é generalizada. Aparentemente as pessoas estariam dispostas a sacrificar alguma estabilidade governativa se em contrapartida houvesse menos crispação entre os actores políticos e maior consenso nas grandes questões do país.

A verdade é que provavelmente a questão de falta de diálogo é mais profunda do que parece. Não é algo que se resolve naturalmente com mais intervenientes e mais fragmentação política. Primeiro, todos teriam que assumir que têm responsabilidade em fazer as instituições funcionar e em debater profunda e demoradamente as questões, evitando bloqueios e procurando eficácia na acção. Porém, ainda está-se longe de alcançar a cultura cívica e política que pudesse constituir-se no respaldo de que a democracia tanto precisa para funcionar na plenitude. O espaço público ainda é dominado por narrativas politico-ideológicas tributárias da origem histórica dos grandes partidos que de alguma forma continuam a reproduzir a bipolarização original com o seu cortejo de insultos, acusações e denúncias sem deixar muito espaço para compromissos em questões fundamentais.

Ouvindo o ruído criado pelas múltiplas interacções na esfera pública, facilmente pode-se constatar que Cabo Verde é um país de monólogos. O diálogo praticamente não existe. Nem a situação extrema da pandemia conseguiu que se levantassem as barreiras e fosse produzido um diálogo compromissório à altura dos desafios actuais. A discussão na semana passado do Orçamento do Estado para 2021, que podia ser uma novidade, porque feita no quadro da nova lei de bases do OE e com o objectivo de manter mais funcional a gestão financeira do Estado num ano de eleições, resvalou para a crispação do costume, com acusações de eleitoralismo e populismo à mistura. Mesmo face à ameaça da covid-19, é como se cada um se mantivesse no seu registo sem que houvesse intermediação, troca de ideias, o exercício construtivo do contraditório e mesmo o fact checking, a verificação dos factos.

Curiosamente não é uma falha que se limita à interacção na área política. Perpassa toda a sociedade, afecta a comunicação social, escolas e universidades e outros centros que deviam ser de cultura e conhecimento. Como diria Jonathan Rauch da Brookings Institution num artigo recente no National Affairs, a informação até pode circular vinda de vários lados, mas a constituição do conhecimento é deficiente. Por isso e por outras razões que é cada vez mais evidente a discrepância entre o investimento feito pelo Estado, pelas famílias e pelos indivíduos na educação a todos os níveis e o retorno global para o país em termos, designadamente de nível académico, de competitividade em sectores da economia do conhecimento e de capacidade de governança. A perda também se reflecte nos indivíduos que em vez de verem abrir oportunidades de carreiras e de negócios e outras possibilidades de mobilidade social e de realização pessoal acumulam frustrações num ambiente profissional e económico-social demasiado restrito para o seu potencial e ambição.

Sem diálogo já se viu que fica difícil fazer a alternância política funcionar em prol de Cabo Verde. A falta de consenso em questões fundamentais abre caminho para eternos recomeços sempre que há mudança de governo. Também a ausência de debate construtivo não contribui para o amadurecimento das posições partidárias e governativas, ficando o país e a sociedade com a percepção que novas dinâmicas não são despoletadas mesmo com diferentes governos. Uma outra consequência dessa falta de diálogo é a dificuldade enorme de se desenvolver uma estratégia para contornar a extrema dependência do país em relação ao exterior. Como a cooperação com outros países e com instituições multilaterais pela sua natureza e impacto, tempo próprio e interesses de agenda dos parceiros não é substituto para um plano de desenvolvimento, a verdade é que sem uma vontade nacional consolidada para contrapor a logica dos projectos acaba-se por não aproveitar o potencial do que é disponibilizado. Ainda incorre-se no risco real de suportar custos presentes e futuros de opções erradas e de projectos mal concebidos e sem encadeamento, fazendo do país um cemitério de projectos ou um parque de elefantes brancos.

A verdade é que quando não se tem um plano e uma estratégia própria não há como escapar à agenda dos outros. Há que por exemplo liquidar, privatizar ou de outra forma alienar activos para continuar a receber ajuda orçamental. Também se adotam opções de parceiros em matéria de aplicação de investimentos para poder aceder a linhas de crédito mesmo que os custos futuros ultrapassem os benefícios. E ainda se aceitam políticas de combate à pobreza, à partida sem sustentabilidade futura, apenas pelo impacto esperado durante a vigência do projecto. Os custos disso tudo, porém, não ficam por aí. Acaba-se por perder de vista a relação entre meios e fins, investimento e retorno e custos e benefícios. Depois de décadas de ajuda, fica-se admirado como a administração do Estado ainda continua desfalcado em termos de competência governativa e expertise em várias áreas.

O impacto sobre a sociedade em se manter um modelo de desenvolvimento que reproduz dependência a todos os níveis não deixa de ser inibidor de iniciativas individuais e de expressões de criatividade e motivação para inovação, em suma, de se constituir num forte empecilho ao diálogo necessário entre as pessoas e as instituições para se forjar um caminho próprio. Por outro lado, as vulnerabilidades que têm sido reveladas e dramaticamente vividas pelas populações depois de décadas de crescimento económico deviam ser alertas suficientes de que o país não deve continuar como até agora. No mesmo sentido deviam-se ter os sinais de frustração e até de desespero que se vêem manifestando particularmente entre os jovens. Tal estado de coisas, na falta de alternativas viáveis de rendimento e oportunidades, tende a provocar uma corrida aos recursos e ao controlo dos poderes dos Estado com o fito de assegurar quem os deve aceder e onde os aplicar.

A persistir no mesmo caminho não há como não reproduzir o ambiente de polarização que sustenta o bipartidarismo. Ultrapassar a situação actual significaria cortar com o círculo vicioso que mantém Cabo Verde como um país de monólogos e passar a dialogar como só é possível num ambiente de liberdade e pluralidade. E nisso há que se mover, como diria Barack Obama, com “a feroz urgência do agora”

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 994 de 16 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, dezembro 14, 2020

Acabar com as lutas partidárias na administração pública

 

O impacto das eleições autárquicas e a proximidade das eleições legislativas em Março/Abril já se faz sentir nas estruturas do Estado tanto a nível central como local.

Sucedem-se movimentações de pessoal na administração central e nos municípios que uns dizem ser fruto de retaliação politicamente motivada e outros justificam como empregos criados sem possibilidade de sustentabilidade. Multiplicam-se denúncias de funcionários que terão feito a balança eleitoral pender para um lado ou para outro seguidas de exigência das bases partidárias para se tomar medidas em conformidade de promoção ou despromoção. Nota-se o alvoroço repentino que ataca muitos – tanto os que vêm o momento como oportunidade como os outros que se sentem apreensivos perante a imprevisibilidade dos resultados. No meio disto tudo, até a demissão inesperada da ministra da Educação, alegadamente a seu pedido, não escapou às especulações, acusações e manifestações de júbilo.

O frenesim que se sente actualmente em toda a administração pública repete-se em todos os ciclos eleitorais iniciando antes das eleições e perdurando durante vários meses na renovada realidade pós-eleitoral. Mesmo durante a legislatura nunca desaparece completamente porque a pressão das fileiras partidárias mantém-se seja para pressionar, seja para denunciar, conforme o caso. O país acaba por pagar os custos da instabilidade na função pública em tudo o que respeita ao pessoal, às carreiras e aos níveis de competências e expertise que consegue acumular. Juntando-se a outros factores, não espanta que anos e décadas passadas após a criação de uma máquina do Estado ela não se revela particularmente competente e eficaz em dar corpo às orientações e políticas dos sucessivos governos nem na prestação de serviços aos utentes. Num mundo em que todos voltaram a reconhecer a importância de um Estado apto e funcional é de maior importância não mais adiar as reformas necessárias para a administração pública ultrapassar as suas actuais ineficiências, garantir isenção e imparcialidade na prestação de serviços aos utentes e mostrar-se totalmente engajada na prossecução do interesse público, independentemente da cor político-ideológica do governo do momento.

A situação da pandemia da Covid-19 veio relembrar a importância crucial de se ter um Estado capaz, ágil e sábio para se poder enfrentar os vários desafios desencadeados, entre outros factores, pelas mudanças nas configurações das forças mundiais e pelas alterações climáticas e outras ameaças globais. A proximidade das eleições não deve servir de pretexto para se repetir os jogos do passado em que uns se preparam para substituir outros enquanto tudo fica na mesma ou pior. Nas legislativas de 2016 talvez se podia ter feito diferente. O primeiro-ministro de então, já no fim dos seus 15 anos de governo queixou-se em várias ocasiões da partidarização da administração pública. Segundo ele a AP precisava ser mais imparcial, mais universal e menos partidarizada e estar mais virada para a produtividade e para o bem comum. Em face desta constatação, apesar de tardia, talvez tivesse havido possibilidade dos actores políticos chegarem a algum tipo de consenso quanto a reformas que desembocassem na reconversão da administração do estado numa força profissional construída em base meritocráticas e com uma cultura de serviço que a fizesse mais amiga das empresas, dos cidadãos e do desenvolvimento global de Cabo Verde.

Não foi todavia o que aconteceu. Rapidamente as forças políticas voltaram-se a engalfinhar à volta dos lugares na AP na perspectiva de garantir lugares para correligionários e de assegurar alavancas de poder e a oportunidade esfumou-se. Um facto que se tem muitas vezes de conviver nas democracias é que ganhar eleições não se traduz automaticamente em poder, autoridade e influência na sociedade, na economia e mesmo nas instituições. Não poucas vezes quem assume o governo depois da vitória eleitoral depara-se com a realidade da penetração ideológica da outra força política no corpo social e político do país constituindo logo à partida numa forte resistência à implementação das suas políticas. A complicação é maior na ausência de uma administração pública profissional porque ela própria se torna no principal campo de batalha na luta para traduzir a vitória nas eleições em exercício efectivo do poder. Passados quase cinco anos infelizmente a lição ainda não foi apreendida e, em vésperas de eleições, todos se preparam para repetir as lutas passadas e nos mesmos moldes. Aparentemente, mesmo com a pandemia, não se tem consciência de quão crítico se tornou para o país ter uma administração pública à altura dos desafios da actualidade.

Cabo Verde nos índices do Doing Business e de Competitividade, colocado entre 119º e 137º lugar num total de 180 países, tem sido incapaz de ganhar posição que o podiam qualificar como um país atractivo para o investimento externo, um país competitivo e facilitador da actividade privada. Contribui fortemente para isso a ineficácia da actuação estatal que afecta grandemente os custos de contexto e constrange a actividade empresarial. E isso não é segredo para ninguém. A insensibilidade da administração pública perante as necessidades do mundo de negócio de há muito que foi constatada pelos sucessivos governos. O facto de ainda não ter melhorado nos índices de competitividade e do Doing Business demonstra que as tentativas de reforma não têm tido o sucesso desejado.

Uma das razões para o fracasso tem sido precisamente a instabilidade da administração pública derivada da extrema partidarização. Uma outra razão é o protagonismo crescente de interesses corporativos que jogando muitas vezes com promessas e críticas feitas pelas forças políticas no governo e na oposição consolidam-se no seio da administração pública absorvendo cada vez mais recursos sem que a eficácia global do Estado aumente. Pelo contrário, nota-se uma tendência para mais reivindicações, mais greves mesmo nos sectores tradicionalmente mais comedidos com os de segurança. De acordo com as declarações do Vice-primeiro-ministro cerca de 40% dos mais de 7 milhões de contos de aumento nas despesas de funcionamento do Estado e verificados entre 2016 e 2020 foram para cobrir aumentos salariais, promoções, progressões e requalificações acordadas ou prometidas anteriormente. O país e a sociedade, entretanto, não deixam de notar que apesar dos agentes e estruturas do Estado absorverem um maior quinhão da riqueza nacional não viram maiores benefícios em termos de eficácia da acção estatal com impacto na actividade económica.

A desigualdade social crescente entre quem está no Estado e quem depende do sector privado formal ou informal poderá a prazo criar problemas. Com a pandemia viu-se que houve aqueles que ficaram com os salários intactos e os que tiveram de se contentar com os programas de lay-off ou com subsídio de desemprego à medida que as actividades económicas se iam reduzindo com o avanço da crise sanitária. Não é uma situação que deva perdurar. Melhorar a eficácia do Estado deve ser uma tarefa vital para os próximos tempos e não se compadece com a continuidade das lutas políticas pelo controlo da administração pública que até agora só tem levado a mais custos para os contribuintes sem que se vejam os benefícios. Melhorar o Estado para que se criem e se aproveitem as oportunidades é tarefa urgente e fundamental para se voltar aos caminhos de prosperidade com liberdade e paz social. Das próximas legislativas deve vir um pacto nesse sentido.

Humberto Cardoso 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 993 de 9 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, dezembro 07, 2020

Conflito despropositado

 

No passado dia 25 de Novembro o país foi surpreendido por uma declaração, assinada pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça com excepção da presidente, que no essencial diz que o poder judicial foi alvo de uma das investidas mais afrontosas à sua dignidade e que enquanto se mantiver o clima de hostilidade e de desconsideração à dignidade do poder judicial não vão comparecer a qualquer acto ou solenidade oficiais.

A investida afrontosa teria sido a intervenção de uma deputada no âmbito do debate anual sobre o estado de Justiça em que para demonstrar a necessidade de uma justiça eficaz e em tempo útil se serviu do caso em que magistrados judiciais depois de acusados de vários crimes e ilibados por uma investigação do ministério público apresentaram queixa por calúnia e difamação contra o autor e ainda estão à espera do julgamento. Em Fevereiro de 2019 o caso foi ao tribunal mas o juiz posteriormente pediu escusa e o julgamento ficou suspenso. Por decisão recente vai ser retomado em Janeiro de 2021.

Compreende-se o sentimento de frustração dos magistrados perante um caso que os afecta directamente na sua dignidade e que dura tanto tempo a ser resolvido. Não parece razoável é que queiram imputar à deputada na sua intervenção na plenária da Assembleia Nacional “o propósito de emprestar credibilidade a impropérios deferidos contra certos magistrados”. O discurso do deputado na plenária da AN goza de imunidade mas está sujeito ao contraditório das forças políticas presentes num parlamento que é plural. Partes do discurso até podem ser retiradas da acta por decisão do Presidente ou do plenário. Não foi o caso como os próprios magistrados reconhecem na declaração ao se referirem ao facto de em nenhum momento se ter uma só voz a convidar a deputada a respeitar o bom nome de cidadãos indefesos. Ou seja, o mais provável é que não houve propósito de desrespeito e o silêncio de todos os outros sujeitos parlamentares dificilmente pode ser interpretado como “quem cala, consente”.

No parlamento ninguém é calado e ninguém é forçado a consentir. As imunidades, o estatuto de oposição, os direitos das minorias e os procedimentos de garantia do exercício do contraditório existem para assegurar isso. Neste sentido, é claramente excessivo extrair da não contestação do discurso da deputada um eventual posicionamento do parlamento de hostilidade em relação ao poder judicial e presumir que mereceu aprovação dos demais órgãos de soberania porque de nenhum deles houve pronunciamento sobre o assunto nos 27 dias seguintes. Os factos, quanto à relação do poder político com o poder judicial, apontam no sentido oposto.

As sucessivas revisões constitucionais e particularmente a revisão de 2010 sempre traduziram-se em mais independência para os juízes e mais autonomia para o ministério público. As leis aprovadas pelo parlamento em sucessivas legislaturas, tanto em matéria organizacional e funcional dos tribunais e das procuradorias como em matéria cívil e criminal e de aumento da capacidade de autogestão das magistraturas, têm beneficiado de um elevado grau de consenso entre as forças políticas, algo que não se vê noutros sectores da governação. Da mesma forma, os sucessivos governos têm sido pródigos em dispensar meios e recursos para o sector dentro das normais limitações orçamentais. O que vem aumentando é a insatisfação com a administração da justiça traduzida em vários apelos para diminuir a morosidade, aumentar a produtividade e melhorar a qualidade, em particular quando está a ficar cada vez mais claro que a falta de eficácia não é só uma questão de meios insuficientes.

Agora parece que às frustrações das pessoas e do cidadão comum vêm-se juntar à insatisfação de magistrados judiciais que, de há muito, esperam que a justiça se realize e sejam reparados por alegadas calúnias e difamações dirigidas contra eles. Pode ser um bom momento para uma reflexão aprofundada sobre o sistema de justiça que não seja prejudicada por interesses político-partidários e por outros de natureza corporativa.

A democracia e o Estado de direito democrático tem na sua base o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, pelo primado da Lei e pela independência dos tribunais. O regime perdura se se assegurar a existência de um poder judicial em que todos podem confiar e que não se deixe condicionar ou limitar por outros poderes do estado e interesses privados. Nesse sentido, é de maior importância dotar as magistraturas da capacidade de autogestão para desempenharem as duas funções sem dependências e sem condicionalismos. Também serem capazes de adoptar uma ética e um ethos essenciais para o exercício da função com competência e sentido do bem público é fundamental para a credibilidade junto ao público, para manutenção de um ambiente de liberdade, paz e justiça e para o equilíbrio dos poderes no sistema democrático.

Na revisão da Constituição de 2010 o legislador constituinte revelou-se bastante inovador com o modelo de autogestão das magistraturas. Foi-se em vários aspectos muito além do que se encontra noutras democracias. Entre outras inovações, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deixou de ser o presidente do Conselho Superior de Magistratura (CSMJ), as secretarias judiciais passaram para a superintendência do CSMJ e alterou-se a composição do STJ que ficou aberto apenas a magistrados judiciais. Mais responsabilidades e mais meios foram disponibilizados nestes últimos dez anos ao sector da justiça mas é evidente que ninguém está satisfeito. Houve progresso visível em vários domínios mas a questão central da morosidade e as dificuldades em operacionalizar um serviço de inspecção judicial efectivo tem sido matéria sempre retomada no debate parlamentar anual do estado da Justiça. A isso tudo poderá não estar alheio algum corporativismo que por várias formas tende a emperrar o funcionamento de sistemas com perdas de eficácia visíveis.

Passados dez anos após a revisão da Constituição que adoptou o novo modelo de gestão do sistema de justiça talvez seja oportuno uma avaliação das suas virtudes e defeitos e dos seus custos e benefícios no sentido de se encontrar a melhor via para aumentar a eficácia da Justiça. O momento parece o mais apropriado considerando que todos, incluindo os próprios magistrados, se mostram insatisfeitos com a actual situação. É, porém, mais aconselhável para todos os actores no sistema democrático ir por uma via construtiva de diálogo alargado do que entrar por um jogo de culpas mútuas que, como em geral acontece nas críticas ao sistema políticos nas democracias, acabam por fazer do parlamento o alvo principal. Tão pouco é aconselhável subtrair-se aos momentos solenes do sistema democrático como é o do Início do Ano Judicial presidida pelo presidente da República e da responsabilidade do Supremo Tribunal de Justiça que nos últimos anos tem sido realizado nos primeiros quinze dias de Novembro, evocando um suposto “clima de hostilidade institucional”.

Todos têm a responsabilidade de construir para a presente e futuras gerações um Cabo Verde de liberdade, paz e justiça. Como bem dizia alguém, não há maior privilégio do que estar presente no momento da criação. Há que assumir o papel histórico que a cada um coube desempenhar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 992 de 2 de Dezembro de 2020.

segunda-feira, novembro 30, 2020

País do faz de conta

 

Na semana passada os meios de comunicação social e as redes sociais estiveram saturadas de notícias e posts a descrever, a opinar e a reagir às eleições da mesa de assembleia municipal, primeiro em S. Vicente e depois na Boa Vista.

Controvérsias diversas surgiram à volta da interpretação de vários artigos entre os quais o 67º n.2 , o 68º n.1, e o 81º n.1 a) dos Estatutos dos Municípios que incidem sobre o processo de instalação do órgão autárquico e sob o modo de eleição do presidente, vice- presidente e secretário. Para uns, é claro que o n.2 do artigo 67º estabelece que a “mesa provisória presidida pelo primeiro nome da lista mais votada e secretariado pelos dois membros mais novos” deve proceder “à eleição dos outros membros da mesa”. Para outros, a eleição deve ser feita como se o articulado da norma fosse a mesma do n.1 do artigo 45º da lei portuguesa sobre as autarquias, que diz que a mesa deve presidir a primeira reunião para efeitos de “eleição do presidente e secretários da mesa”.

Esgrimidos todos os argumentos e feitas todas as jogadas políticas e deixando de lado eventuais diferenças na interpretação sistemática da lei, a verdade é que pelos resultados das eleições nas duas ilhas, fica-se com a impressão que algo não bateu certo. Nos dois casos, a força política com a maioria de votos conseguidos nas urnas ficou excluída da mesa da assembleia municipal. Como justificar a falta de correspondência entre a representação na mesa e a configuração das forças políticas saída das eleições quando se sabe que essa é uma regra seguida em todos os órgãos colegiais, a começar pela Assembleia Nacional que distribui os cargos de presidente, vice-presidentes e secretários de acordo com os resultados eleitorais?

Há quem argumente que é a democracia a funcionar no seu pleno, outros que dizem que é um possível ensaio de uma “geringonça” nacional para futuros usos no plano nacional e há quem simplesmente diga que perante a vontade da maioria todos têm que se dobrar. Razões à parte, o mais provável é que se trata de uma jogada política com eventual desgaste de uns e proveito de outros com vista às eleições legislativas que se prevêem para Março próximo. De facto, não se pode realmente falar de uma “geringonça à portuguesa” porque das assembleias municipais não saem soluções de governação dos municípios visto que o órgão executivo, a câmara municipal, é directamente eleito e o presidente da CM é o primeiro da lista mais votada. Por outro lado, é duvidoso que é pelo controlo da mesa da assembleia municipal e exclusão de outros que se melhora o grau de fiscalização da câmara municipal ou se cria o ambiente próprio para os acordos, compromissos e consensos necessários à prossecução dos interesses dos municípios.

Se é legítimo que forças políticas procurem posicionar-se com vantagem para futuros embates eleitorais não é razoável que no processo acções que mais parecem “chicanas políticas” ponham em causa a efectividade dos órgãos eleitos e desvirtuam o sentido do voto dos cidadãos. Já tinha acontecido acontecido algo similar em São Vicente em que na primeira Assembleia Municipal da ilha um representante da força política menos votada nas autárquicas de 1991 foi eleito presidente da mesa pela força do voto maioritário do grupo de cidadãos MPRSV. Ninguém então ganhou com essa jogada política e muito menos o partido que se prestou a isso, como se pode comprovar ainda hoje.

Nas democracias a vontade da maioria só é legítima se exercida no quadro constitucional e legal. Outrossim, é fundamental que haja um consenso alargado sobre a necessidade de cumprimento das normas existentes para que negociações entre os partidos sejam produtivas, os compromissos assumidos sejam honrados e a confiança que mantêm intacto o pacto social e político seja renovada. Para alguns que avaliam o diálogo actual entre as forças políticas como difícil e aconselham ou desejam resultados eleitorais que não garantem maiorias absolutas podem ir já se preparando para grandes sobressaltos. Governos minoritários terão muitas dificuldades num quadro constitucional que exige a aprovação por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções da moção de confiança indispensável para iniciar a governação e não simplesmente a inexistência de uma moção de rejeição como em Portugal. Também dificilmente se poderá governar se as leis têm que ser aprovadas por maiorias absolutas e não com maiorias simples em que abstenções não contam.

É caso para pensar que é preciso ter algum cuidado com os desejos ou sonhos. Uma maior fragmentação do espectro partidário no país poderá não trazer mais diálogo entre as forças políticas mas certamente que resultará em maior instabilidade governativa. Está-se para ver como vai evoluir a “inovação” introduzida na Boa Vista de se permitir a apresentação de candidaturas só num dos dois órgãos do poder local quando aparentemente soluções viáveis de governação requerem presença nos dois. A pergunta que fica é se nos próximos embates eleitorais haverá candidaturas só para as câmaras e outras só para as assembleias.

A cultura política prevalecente de pisar os direitos das minorias sempre que a situação se propiciar não ajuda a que se crie a confiança necessária a um diálogo entre as partes. Por várias razões a alternância política verificada tanto ao nível nacional como ao nível local ainda não se mostrou suficiente educativa a esse respeito. O país, porém, assim como noutras coisas, faz de conta que vive uma outra realidade onde não existem as insuficiências várias em termos de autonomia das pessoas e fragilidades da sociedade civil que deixam a democracia aberta a ataques de demagogos e populistas de toda a espécie. Nem os efeitos da pandemia da Covid-19 se têm revelado capazes de moderar as posições e abrir caminho para o diálogo que vai ser necessário para enfrentar os desafios enormes que o país tem à frente.

Há que arrepiar caminho porque as próximas eleições não devem ser pretexto para uma maior polarização do país. Mais do que nunca o futuro vai depender da convergência de posições que se conseguir produzir neste momento crucial. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 991 de 25 de Novembro de 2020.

segunda-feira, novembro 23, 2020

Parar de Cavar

 

Sempre que a questão da TACV vem à baila o governo é peremptório a dizer que “a CVA continuará a existir e a ser a companhia de bandeira”. Para qualquer observador não deixa de ser temerário fazer uma afirmação dessas nos tempos actuais da pandemia da Covid-19, de forte recessão mundial e de crise profunda no sector da aviação comercial.

Se para países altamente desenvolvidos como a Alemanha a decisão de financiar a Lufthansa para sobreviver os momentos difíceis que os especialistas do sector dizem que vão prolongar-se até pelo menos 2024, para outros mais modestos como a Islândia essa não é uma opção que possam considerar.

No caso de Cabo Verde com as fragilidades estruturais da sua economia e a dívida pública a aproximar-se dos 150% do PIB uma decisão de tal envergadura pelas suas implicações financeiras deveria merecer a maior ponderação. Não é porém o que recebe. Qualquer debate sobre o estado actual e o futuro da TACV desperta paixões avassaladoras e é motivo de troca de acusações mútuas entre as forças políticas. Em geral, soluções não são apresentadas e dos embates só se depreende que há acordo genérico e vontade em preservar a empresa aparentemente mesmo à custa do endividamento.

O último aval do Tesouro para a empresa se financiar foi concedido com a justificação que se impunha pagar os salários em atraso aos trabalhadores. Avales anteriores de várias centenas de milhares de contos procuraram viabilizar operações da companhia em vários momentos quando procurava desenvolver um hub na ilha do Sal que iria ser instrumental na movimentação de passageiros entre Europa e América do Sul e entre Africa e América do Norte. Os mais recentes avales porém têm suportado financiamentos de custos fixos existentes não obstante a companhia aérea ter deixado de voar desde 19 Março com o fecho das fronteiras devido à pandemia da Covid-19.

Sem estar a gerar receitas e com o próprio plano de negócios inviabilizado com a crise no sector é evidente que os avales do Estado tornaram-se operações de alto risco com implicações no défice orçamental e dívida pública. A empresa dificilmente hoje ou no futuro próximo terá condições de cumprir as suas obrigações junto dos credores deixando o Estado completamente exposto. Significativamente, quem parece que não ficou exposto no negócio é o grupo Icelandair. No seu relatório de contas deixa claro que a sua exposição ao associado TACV/CVA é zero e que nas transacções com a empresa as receitas geradas pela Cabo Verde Airlines ascenderam a 37,2 milhões de dólares e as despesas a 1,1 milhões de dólares.

Privatizações de empresas estatais acontecem por várias razões. São essenciais, por exemplo, quando se faz a transição de uma economia estatizada para uma economia do mercado como aconteceu nos anos noventa do século passado em Cabo Verde e nos vários países que deixaram o bloco soviético para se juntarem à economia mundial. Privatiza-se também para se liberalizar ainda mais a economia e potenciar a iniciativa privada como aconteceu na América e na Europa na sequência das políticas de Reagan e de Margaret Thatcher. Noutras situações, opta-se por privatizar empresas para diminuir o risco fiscal e conseguir receitas extraordinárias. No caso da TACV, era óbvio que devia ser privatizado por ser um risco sério para as finanças do Estado. Nos fins de 2015 e início de 2016 viu-se que também se tinha tornado num risco político para qualquer governo particularmente em tempo eleitoral. Desencadeou-se o processo sob a batuta do Banco Mundial que para o efeito fez questão de reter a ajuda orçamental (40 milhões de dólares) até que o processo ficasse completo. O grande problema é que mesmo com a privatização os riscos não foram eliminados e com a Covid-19 estão a ganhar proporções assustadoras.

A opção feita de privatização centrou-se na construção de hub na ilha do Sal que iria movimentar passageiros entre os vários continentes. Para além do impacto geral na economia que se esperava dessas operações ainda se queria incentivar o turismo no país através da promoção de Cabo Verde como um stopover na travessia da Atlântico. Para isso, ter como parceiro estratégico uma das empresas que constituem o grupo Icelandair mostrava-se promissor considerando a experiência e o sucesso do grupo em construir um hub no Atlântico Norte com stopover na Islândia. Seria uma jogada de risco mas que permitiria potenciar vários activos da TACV em algo que, se bem-sucedido, poderia constituir-se num grande ganho para o país.

Pelo relatório de contas do quarto trimestre de 2019 do grupo Icelandair ficou claro porém que sem um forte financiamento das operações do hub, o negócio correria sérios riscos. Aparentemente, a parceria estratégica não incluía uma componente financeira como normalmente se vê nos casos de privatização de companhias aéreas. Estranhamente, parece que o parceiro estaria a contar com o Estado para comparticipar do esforço financeiro quando, ao mesmo tempo, o governo com a venda das restantes acções até Dezembro de 2019, queria cumprir com o Banco Mundial e ver-se livre do risco associado. A meio do impasse criado, veio a pandemia e tudo parou. Não se realizaram mais voos mas continuaram os custos com os trabalhadores e supõe-se também com o leasing dos três aviões que, entretanto, foram estacionados na Flórida.

A questão que se coloca é se o plano de negócios do hubjá não existe, desapareceu”, como disse o Vice-Primeiro Ministro (VPM), por que é que os accionistas até agora não chegaram a acordo em como agir para conter e controlar os prejuízos e tomar uma decisão em relação ao futuro. Está-se a pagar o leasing dos aviões nos mesmos termos de antes? Será possível rentabilizar a empresa regressando ao plano de negócios anterior dos voos étnicos e de conexão com Lisboa, como foi sugerido pelo VPM, quando já se descontinuaram as operações domésticas e a regional? Vai-se continuar com um accionista que mais parece ser fornecedor de serviços de leasing de aviões do que o parceiro estratégico que aposta no negócio de criação de um hub no Atlântico? Vai-se deixar protelar uma situação que tudo leva a crer só irá piorar no estado actual da pandemia com custos impressionantes para o país porque mais uma vez a TACV está-se a revelar um risco político e os accionistas sabem disso? Há que pôr fim ao impasse que se vem arrastando ao longo de largos meses desde Março. Como bem disse alguém “Quando estiver no fundo do poço, a primeira coisa a fazer para sair dele é parar de cavar”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 990 de 18 de Novembro de 2020.