Uma nova legislatura inicia-se hoje, dia 19 de Maio. Irá desenrolar-se nos próximos cinco anos sob a égide do Movimento para a Democracia que conseguiu uma maioria absoluta de deputados nas eleições legislativas de 18 de Abril.
O desejo de estabilidade política e de continuidade governativa expresso na votação e que fez a balança cair por um dos concorrentes deveu-se em boa parte à actual crise pandémica que restringe radicalmente a actividade económica ao nível global e local e às outras crises económica e social a ela associadas que afectaram profundamente a vida, os rendimentos e as expectativas das pessoas. Sem vontade para aventuras, o eleitorado mostrou querer governos estáveis e especialmente sensíveis às dificuldades das populações em vários domínios básicos como emprego, saúde, educação e segurança. Com o arranque de uma nova legislatura é o que as pessoas esperam ter e o que o partido vencedor deve poder oferecer.
Para isso é fundamental projectar uma imagem de visão, determinação e competência na condução dos assuntos do Estado e por essa via manter mobilizada a vontade da população, não só para enfrentar com sucesso a pandemia como também para preparar o país para uma retoma que em muitos aspectos não irá repetir o que já existia. Não é, porém, uma tarefa fácil em particular quando se está em processo de transição de uma legislatura para outra. O tempo demasiado longo (vinte dias) para a inauguração do novo parlamento e a posse do novo governo não ajuda. Piora a situação se durante esse período de forma inexplicável se sucedem dúvidas quanto aos procedimentos a seguir como se tratasse da primeira vez que se está a fazer a transferência de poder, quando na realidade já se vai no VIII governo constitucional desde 1991.
A perplexidade aumenta quando na eleição dos membros para a mesa da nova assembleia nacional avança-se, para de seguida recuar, com um candidato que dificilmente podia traduzir a vontade de renovação e de inversão da descredibilização do parlamento visível nos dados do Afrobarómetro publicados em Fevereiro último. Foi a oportunidade dada às forças políticas da oposição de mostrarem frontalmente a sua discordância em matéria normalmente de largo consenso no parlamento e condicionar as opções assumidas pela maioria. Naturalmente que isso acabou por afectar a imagem do partido maioritário ao trazer dúvidas quanto ao grau realmente existente da sua coesão interna. E o novo governo gratuitamente deixou escapar sinais de fraqueza quando pelo contrário, considerando a situação pandémica do país, quer-se sinal forte da estabilidade política desejada pela maioria dos eleitores e que o país precisa.
Foi um exemplo de desperdício de capital político que não se deve repetir. Os tempos estão difíceis e podem ainda agravar-se até ao momento que se espera seja o mais breve possível em que com as vacinas se consiga travar a marcha da covid-19 e passar à tarefa de colocar o país no caminho do crescimento económico. Também não vai ser fácil superar o efeito acumulado da quebra da actividade económica, do peso da crescente dívida pública e das incertezas que eventualmente vão acompanhar a retoma do turismo e da procura externa de produtos e serviços nacionais. Conseguir que se avance com segurança vai exigir que mais do que nunca se conjugue ousadia com realismo, se focalize mais em resultados do que em espectáculo e se aposte mais em educar e formar do que em obras e projectos que são não pontes palpáveis para o futuro.
Para isso é necessário usar bem o capital de confiança recebido e não deixa-lo perder-se nos passos falsos que descredibilizam as instituições, confirmam os piores sinais da partidocracia e põem em causa o engajamento real dos políticos com o interesse público. A aderência a factos e o comprometimento com a verdade também são fundamentais para renovar a confiança. Na criação e implementação das políticas públicas não se pode ir pelo caminho do ilusionismo. Mais cedo ou mais tarde os custos que com o tempo se tornaram esmagadores serão sentidos. O que na última semana se passou com os transportes aéreos no arquipélago não devia mais repetir-se, mas infelizmente ninguém parece querer garantir isso.
De facto, nas intervenções públicas insiste-se em dizer que o mercado dos transportes aéreos em Cabo Verde pode ser rentável e comportar um, dois e até três operadores. A realidade de todos conhecida de décadas da aviação comercial no mercado domésticos não corrobora em nada essa afirmação. Isso não impediu que em Novembro de 2016 quando a Binter começou a operar e a TACV também fazia voos interilhas se tenha repetido isso. Seis meses depois viu-se o que aconteceu. Em Maio de 2017 anunciava-se que a Binter iria ficar com todo o mercado doméstico de transporte aéreo de passageiros e que o Estado passaria a deter 30% do capital do seu capital social em troca de posição comercial da TACV nesse mercado. Dias atrás fez-se oficialmente público que a Binter depois de várias ameaças ia finalmente embora e que seria substituído através de um contrato de concessão emergencial de seis meses pela companhia BestFly. Entretanto a Binter parece ter voltado atrás na sua decisão e em consequência o país vai ter mais uma vez dois operadores aéreos.
Não se sabe até quando o “armistício” vai durar, mas ouve-se mais uma vez das autoridades que é possível pela via do mercado resolver os problemas dos transportes aéreos. O facto é que toda a gente sabe por experiência que não é assim e está ali a TACV com as suas dívidas monstruosas a provar isso. Em matéria de transportes aéreos e também marítimos como, aliás, em vários domínios, Cabo Verde tem um problema de escala e, em consequência, pela via simples do mercado dificilmente vai poder fornecer certos serviços e produtos de forma rentável. Outros arquipélagos como as Canárias, Madeira e Açores têm problemas similares de transportes aéreo e marítimo apesar de poderem contar com uma parte da procura nos transportes interilhas nos milhões de turistas que as visitam. Não é o caso de Cabo Verde, onde essa percentagem é ainda pequena. Mais uma razão para se aderir à realidade e produzir políticas públicas que reflictam isso e que por isso mesmo gozam da confiança das pessoas para as quais são dirigidas ou para outras que delas precisam para poder investir, expandir negócios e exportar.
Fazer um esforço para aderir à realidade dos factos e à verdade e evitar a tentação de cair no ilusionismo devia ser um dos grandes objectivos de todas as entidades e de toda a sociedade nesta nova legislatura. A democracia só se realiza em pleno e demonstra as suas virtualidades se esse comprometimento com a verdade for aceite por todos e houver um consenso geral da necessidade urgente de o adoptar e cumprir. Conseguir arrepiar o caminho já feito no sentido oposto seria de maior importância para se obter o grau de confiança cívica e social imprescindível para se obter vitórias em tempo de pandemia. Que a responsabilidade imposta aos vencedores das eleições e a quem forma governo para renovar a confiança das pessoas e manter capital político necessário para conduzir reformas, reorientar o país e adoptar a atitude certa de um país que quer criar riqueza e desenvolver seja assumida em pleno.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1016 de 19 de Maio de 2021.
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