A pandemia do vírus sars-cov-2 continua a ser o desafio central da actualidade em todo o mundo. Para além do impacto sanitário que já levou a quase duas centenas de milhões de infectados e a mais de 4 milhões de mortes pode-se constatar os seus efeitos sócio-económicos que, em alguns casos, só não têm sido mais devastadores por causa da pronta e abrangente intervenção do Estado.
Os custos do combate à pandemia têm sido enormes levando à contracção brusca da economia em muitos países e ao seu endividamento rápido. Em pequenos países insulares o choque externo provocado pela Covid-19 foi terrível levando, no caso de Cabo Verde, a uma contracção da economia em cerca de 15% do PIB e a uma dívida pública de 155% do PIB nos finais de 2020, de acordo com o relatório deste mês de Agosto do BCV sobre o estado da economia.
Todos anseiam pelo fim das contaminações e pela retoma da economia. Fizeram-se grandes avanços na criação de vacinas e muitos milhões de pessoas em todo o mundo já foram vacinadas. O coronavírus, porém, não ficou parado e contra-ataca. Sucedem-se mutações cada vez mais contagiosas e mesmo em países com elevados níveis de vacinação surtos de novas variantes, ontem alfa, hoje delta e talvez lambda amanhã, ameaçam as tentativas de retoma e de regresso à normalidade da vida em sociedade e põem em causa o grande objectivo de se atingir a imunidade de grupo e acabar com a pandemia. Como disse a expert em vacinas Kathleen Neuzil, citada pela Washington Post, vacinar pessoas deve continuar a ser a prioridade, mas o público também tem que mudar a sua relação com o vírus que certamente irá conviver com a humanidade no próximo futuro.
Compreender que não há soluções imediatas para a crise pandémica e as outras crises por ela gerada é sempre difícil para a generalidade das pessoas, considerando as enormes e abrangentes restrições a uma vida normal sustentados por todos há quase um ano e meio. A impaciência perante as medidas às vezes contraditórias das autoridades em matéria de combate ao coronavírus testemunha isso perfeitamente. O que não se compreende é que governantes e, em geral, a classe política alimentem essa impaciência em vários momentos. Quase em todos os países conhecem-se exemplos de medidas precipitadas ou precauções não tomadas que depois resultaram em surtos da covid-19 com as consequências que já se conhecem. Para além desses “ir e vir” minarem a confiança das pessoas nas autoridades sanitárias, traduzem-se muitas vezes em tentativas de conseguir ganhos políticos à custa dos adversários políticos. Com isso, semeia-se desconfiança e colocam-se obstáculos ao que devia ser uma frente unida perante uma ameaça existencial que para ser enfrentada com sucesso precisa do engajamento efectivo de todos.
Muitos pensaram e desejaram que a pandemia do coronavírus, ao expor a nossa humanidade comum, abrisse o caminho para uma maior solidariedade entre as pessoas e uma maior convergência na procura de soluções tanto a nível nacional como internacional e até planetário. A realidade ficou muito aquém dos desejos, mesmo assinalando os enormes feitos nos domínios da investigação, desenvolvimento, produção e distribuição de vacinas e também nos gestos de solidariedade dirigidos aos países menos desenvolvidos e carentes de meios médicos, sanitários e também financeiros para responder à pandemia. Os limites dessas solidariedades e convergências são, porém, muito evidentes e é grande a tentação de se voltar às práticas anteriores que privilegiavam o individualismo, secundarizavam o multilateralismo na relação entre as nações e ignoravam as mudanças climáticas e outras ameaças planetárias.
Nem a continuidade da pandemia em formas ainda não completamente previsíveis e que aparentemente não excluem ninguém – é só ver os surtos na Índia, Europa, Estados Unidos, Brasil, África do Sul e ultimamente a Indonésia – parece ser motivo suficiente para impedir algum tipo de retrocesso no que devia constituir-se num momento alto para a solidariedade global e para um olhar para dentro das sociedades e identificar o que não vai bem. A nível nacional continuam as rivalidades estéreis e tentativas de bloqueio e de descrédito das instituições e da democracia. Isso acontece porque nem mesmo com a perspectiva de convivência forçada com um vírus perigoso e altamente infeccioso, se consegue manter viva a noção central que a luta pelo bem comum não deve ser secundarizada sob pressão de interesses outros.
Também em Cabo Verde a pandemia ao expor as profundas fragilidades do país não foi vista como suficiente pretexto para uma reflexão mais profunda sobre as vulnerabilidades da população, sobre as dificuldades em tornar mais credíveis e eficazes as suas instituições democráticas e sobre a incapacidade em potenciar recursos existentes e em particular os recursos humanos para aproveitar oportunidades de inserção na economia global. Mesmo sendo a causa uma crise sem paralelo, a situação não deixou no fundo de ser vista como mais uma que o país vai atravessar com a ajuda da solidariedade internacional. Assim sendo, interesses outros contam mais do que efectivamente deveria ser o objectivo de procurar engajar todos num esforço colectivo à altura das fragilidades expostas pela crise pandémica.
Prefere-se, como se constatou no debate sobre o estado da Nação, usar a pandemia e as suas consequências brutais para demonstrar que antes estava tudo bem, quando é sabido que as vulnerabilidades e a precariedade vinham de longe e se tornaram mais visíveis com os três anos de seca. Mesmo quando ficam para trás as eleições, renova-se quase de imediato o antagonismo de sempre entre os partidos, ficando as questões de fundo e urgentes por discutir, equacionar e resolver e também as responsabilidades por assumir. O jogo de “culpar o outro” repetido incessantemente em todos os debates pelos dois partidos que se alternam a governar o país não pode deixar de ser um exercício estéril.
De facto, põe-se o país na posição de nunca realmente enfrentar os problemas e de simplesmente manter-se na proverbial posição de “empurrar com a barriga”. O que parece quebrar com a monotonia desses ataques e contra-ataques são as tiradas contra o sistema visando em particular o sistema de justiça e o parlamento. Aparece logo um grupo de claque constituído na sua maioria pelos mesmos descontentes com a democracia que nunca exigem que se cumpram as normas e os procedimentos do jogo democrático existente, mas queixam-se da sua eficácia como se fosse possível ter um bom jogo sem seguir as regras. Entretanto, sem escrutínio eficaz nem responsabilização efectiva, quem for governo continua a sua gestão corrente marcada por protagonismos pessoais que já nem se preocupam com a coerência governativa quando se desdobram em declarações na comunicação social, em iniciativas políticas e nomeações.
A situação pandémica não é uma questão simples nem passageira. A realidade vivida neste ano e meio mostra as enormes dificuldades que terão que ser enfrentadas se não houver uma retoma da economia. As incertezas até aí chegar são muitas e mesmo a vacinação geral não se apresenta como a solução completa para o problema do coronavírus. Mais do que nunca, uma outra atitude quanto à forma como o país é visto, vivido e governado pelas suas gentes, impõe-se. Resiliência nunca significou “deixar andar” e “repetir o mesmo”. Deve sim significar que a meio de dificuldades é preciso mobilizar energia e encontrar novas formas para se afirmar, vencer obstáculos e criar bases de prosperidade futura.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1027 de 4 de Agosto de 2021.
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