segunda-feira, novembro 01, 2021

Descobrir a origem das coisas

 

Findo o ciclo eleitoral, as pró­ximas eleições que serão para as câmaras municipais só vão realizar-se no último trimestre de 2024 ficando as legislativas para 2026. Este grande interva­lo de tempo sem eleições podia ser uma grande oportunidade para – num quadro plural, mas que também deve ser de conver­gência em aspectos fundamen­tais – a sociedade se mobilizar e encontrar vias para a constru­ção de uma prosperidade sólida e sustentável.

Os enormes desa­fios que se colocam neste mo­mento ao país e vão-se colocar nos próximos anos assim o exi­gem. Infelizmente não é o que provavelmente vai acontecer. A tentação é de continuar a fazer política da mesma forma venha seca, venha pandemia ou venha crise económica mundial. O re­cente ciclo eleitoral foi ilustrati­vo a esse respeito.

De facto, não se aproveita­ram os vários embates eleito­rais para trazer para a consciên­cias das pessoas os problemas do país. Os actores políticos limitaram-se a renovar as pro­messas e a fazer acusações mú­tuas do não cumprimento do que foi prometido no passado. Em consequência, a situação real do país não passou a ser mais conhecida e eventuais so­luções para sair da crise socioeconómica não foram realmen­te debatidas. O impacto da cri­se pandémica no mundo e dos efeitos nos bens e serviços, as­sociados aos aumentos no preço dos combustíveis, aos estran­gulamentos no shipping e nas cadeias de produção e de distri­buição, às alterações climáticas, e a dificuldades na transição energética, não foi explicado de forma inteligível à população.

Pelo contrário, deixou-se en­tender às pessoas que por acção ou por omissão o governo é de alguma forma responsável pela inflação nos preços que se já se fazem notar em todos os secto­res. Há mesmo quem atribua o desaire eleitoral do candidato apoiado pelo partido no gover­no ao mau “timing” dos aumen­tos do preço dos combustíveis e de energia e água e também à proposta intempestiva de au­mento do IVA. Entretanto, não se dá a devida atenção às razões de fundo das vulnerabilidades nacionais, às ineficiências em vários sectores que prejudicam a produtividade e a competi­tividade do país e a comporta­mentos avessos a critérios me­ritocráticos, à orientação por resultados e à valorização do conhecimento que são nocivos. E sem essa atenção, e sem a cla­rificação dos problemas reais, dificilmente será possível fede­rar vontades na sociedade para fazer as reformas necessárias do Estado, da educação e da economia e se ter, de facto, de­senvolvimento sustentável.

Todos dizem que a realidade actual de uma economia pouco diversificada, dependente do turismo, altamente endividada (mais de 155% do PIB) e sem possibilidade aparente de cres­cer a taxas superiores a 7% do PIB consideradas necessárias para debelar o desemprego, mesmo numa conjuntura fa­vorável como foi a anterior à pandemia, não pode continuar. Agir, porém, é mais difícil. Mesmo quando se procura fa­lar a verdade dos factos não se é ouvido. O governo através do ministro das Finanças tem-se referido em vários momentos ao problema da dívida pública que está a atingir níveis quase insustentáveis. Para 2022 o ser­viço da dívida pública, segundo ele, vai aumentar 9 milhões de contos com o fim das mora­tórias dos créditos contraídos entre 2008 e 2016, passando a totalizar cerca de 24 milhões contos. Perante esta declara­ção, aparentemente nem o país pestaneja e nem se vê razão suficiente para os partidos com assento no parlamento chega­rem a acordo e alterar na lei os mínimos dos valores do défice e da dívida interna para o Estado de Cabo Verde poder fazer face aos seus compromissos junto dos credores.

Caso para perguntar que si­tuação difícil ou crise consegue forçar as pessoas, a sociedade e os actores políticos a focar nas reformas que devem ser feitas e chegar aos compromissos ne­cessários para as materializar. O poeta Ovídio Martins dizia que “as secas já não nos me­tem medo porque descobrimos a origem das coisas”, mas na realidade parece que o que se descobriu foi a solução da aju­da externa quando há qualquer calamidade seja ela seca, pan­demia ou desastre natural. As reformas para diminuir vulne­rabilidades e ganhar resiliência são sucessivamente adiadas ou quando encetadas ficam aquém dos resultados pretendidos. O que parece perdurar é a con­vicção de que talvez o país seja “too small to fail” e qualquer ajuda, qual migalha a cair do prato dos outros, tem grande impacto na sua pequena econo­mia. Nesse sentido, ninguém se sente grandemente pressionado para fazer os arranjos políticos e sociais que poderiam apressar reformas e assegurar que tives­sem os resultados desejados.

Para responder ao grande fardo de cumprir com o servi­ço da dívida pública (capital mais juro) já se estão a mobi­lizar parceiros como o BAD, o Banco Mundial, Luxemburgo, Portugal e a União Europeia sendo todos os contactos feitos e as promessas de ajuda anun­ciados com grande fanfarra pelo governo. Do FMI vieram cerca de 30 milhões de dólares correspondentes a 21 milhões de SDR, de direitos especiais de saque. Foi o que coube a Cabo Verde em resultado da distri­buição feita pelo FMI por todos os países do mundo de acordo com as suas respectivas cotas a partir de um bolo comum cor­respondente a 650 bilhões de dólares. O interessante neste esquema para ajudar os países com dificuldades acrescidas devido à crise pandémica é que os SDRs recebidos não contri­buem para o aumento da dívida pública.

O FMI, através do fundo Poverty and Resilience Trust constituído a partir de SDRs cedidos por países sem difi­culdades orçamentais, preten­de alargar ainda mais a ajuda aos países mais pobres. Cabo Verde deve poder usar esse ca­nal multilateral para conseguir mais SDRs e reestruturar a sua dívida externa com esquemas que lhe permitam moratórias mais longas e juros mais bai­xos. Devia-se explorar também canais bilaterais com os países mais próximos e em particular com aqueles como Portugal em que uma parte da dívida é de natureza comercial (exemplo Casa Para Todos) e o serviço da dívida é mais pesado. Nos anos noventa inovou-se com a criação do Trust Fund para di­minuir o impacto do serviço da dívida interna acumulada na transição da economia estati­zada para economia de merca­do. Talvez seja agora o tempo para uma entidade igualmente inovadora para fazer face aos constrangimentos orçamentais que irão ser postos pela dívida externa a partir de 2022.

Não se deve é ficar por aí. O espaço ganho deve ser utilizado para se avançar com as refor­mas que podem tornar o Estado e a sua máquina mais eficiente e eficaz e também mais útil e competente enquanto agente do desenvolvimento. A rigidez das despesas do Estado que segundo o OE de 2022 atin­ge os 90 % deve ser diminuída consideravelmente. Para isso e também para se poder atingir os objectivos de resiliência e sustentabilidade, compromis­sos sociais e políticos terão que ser firmados. Se em tempo de crise profunda não se conseguir o que a realidade nacional e in­ternacional força todos a fazer para se poder construir um fu­turo de prosperidade, ninguém garante que mais tarde haverá motivação para isso. É respon­sabilidade de todos assegurar que esta crise não seja mais uma oportunidade perdida. Ao governo da República natural­mente cabe uma responsabili­dade muito maior.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1039 de 27 de Outubro de 2021.

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