segunda-feira, novembro 22, 2021

Não adiar o futuro com divisões

 

Pela primeira vez num acto solene de primeira grandeza como é o de investidura do presidente da república o discurso do presidente eleito foi proferido num modo bilingue, parte em português, parte em crioulo. Ninguém ficou grandemente surpreendido considerando que há muito que o uso da língua materna cabo-verdiana pelos titulares dos órgãos de soberania é corriqueiro no país. O PR, o PM, os ministros e os deputados em várias circunstâncias fazem declarações, debatem no parlamento e dirigem-se às pessoas e ao país em crioulo, usando as diferentes variantes conforme a audiência ou a origem do orador. Os cidadãos também podem tratar os seus assuntos com administração pública e depor nos tribunais em crioulo. A língua é falada de forma generalizada no país por todos os estratos sociais e é um instrumento fundamental de expressão da alma cabo-verdiana particularmente na sua música, em todos os géneros cultivados nas ilhas e nas comunidades no estrangeiro. Se para alguns ainda houvesse algum sentimento que o crioulo era oficialmente discriminado seria de esperar que com esse acto do novo PR, num momento alto da vida da república, tal dúvida fosse completamente dissipada.

Estranhamente não é o que aconteceu. Em vez da acalmia dos ânimos num momento único que devia ser de união, o que se seguiu foi o recrudescer da militância em prol de uma oficialização que supostamente estaria a ser preterida. De facto, o artigo 9º da Constituição da República sob a epígrafe línguas oficiais estabeleceu desde 1999 que todos os cidadãos têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las. Também determina que o Estado promova as condições para a oficialização da língua materna a par com a língua portuguesa, o que evidentemente implica que tenha escrita aceite por todos. Ou seja, está-se a perseguir um fantasma, visto que a oficialização é real, como o seu uso normal nos mais diferentes actos deixa transparecer, em vez de concentrar na criação de condições para se ter a língua escrita. Até parece que convém excitar paixões apontando exemplos de discriminação, identificando vítimas e alimentando ressentimentos em vez de se estimular os impulsos e sentimentos positivos de perseverança, criatividade e espírito de união necessários para a realização prática das condições exigidas pela constituição.

Não mais existindo razões reais para continuar a pressionar o sistema político no sentido da oficialização, para além da vontade de uns de se mostrarem “mais puros e autênticos” à custa de adversários fictícios, o foco desvia-se para o sistema de ensino. Não se tem a língua escrita padronizada, mas quer-se que seja ensinada nas escolas e liceus do país. Não há professores formados nem se produziram manuais, mas tudo aponta que as aulas para os alunos do secundário a partir do 10º ano vão começar no próximo ano lectivo. O que, segundo declarações feitas na TCV, no domingo dia 14, por membros do governo e outras personalidades, parece ser uma decisão assente, curiosamente ainda não foi levada para discussão e aprovação no órgão próprio, no Conselho de Ministros. Também não se sabe se mais tempos lectivos vão ser adicionados aos alunos ou se se vai subtrair de disciplinas fulcrais o tempo para leccionar a língua materna e nem se conhecem os outros custos tangíveis e intangíveis a incorrer com a iniciativa. Entretanto, para muitos pais apreensivos, observando de fora esta ofensiva militante que já vem de longe, só lhes resta, se tiverem sorte e meios, procurar outras escolas com outro currículo e outra gestão como, aliás, vem acontecendo há vários anos.

Todo este conflito fictício em que o crioulo é apresentado como uma língua discriminada tem tido custos pesadíssimos que estão à vista de todos, mas que são ignorados como, aliás, muitas outras coisas no país. Posto em confronto de natureza identitária com o português, torna-se num sério obstáculo à aprendizagem afectando transversalmente a qualidade do ensino em Cabo Verde. Ninguém, porém, parece preocupado com o facto dos enormes investimentos no sistema educativo não trazer os retornos desejados. O facto de se exigir aos estudantes cabo-verdianos que vão para universidade em certos países lusófonos prova de proficiência no português não parece ser motivo de preocupação, nem tão pouco o facto de entre os países de expressão portuguesa serem os cabo-verdianos a ficar para trás no domínio da língua com prejuízo para a sua empregabilidade entre os emigrantes em Portugal. Para quem alimenta este conflito o que interessa são os reflexos da polarização em outras disputas políticas e culturais pois, fazendo muitos deles parte de uma elite que envia os filhos para as melhores escolas, não são prejudicados com as consequências. Antes pelo contrário, consolidam a sua posição.

Cabo Verde tem ganho uma grande reputação pela sua estabilidade política na democracia ao longo dos últimos 30 anos. Para essa estabilidade contribui extraordinariamente o facto de Cabo Verde ser um povo e uma nação unido pela cultura, pela língua e por um destino comum no decurso de séculos e em condições adversas dentro de um império colonial. É fundamental não permitir que esse ganho extraordinário seja diminuído com divisões que opõem ilhas e regiões do país numa luta por recursos, com importações de preconceitos de raça e de cor de há muito sem sentido no país em termos sociais, económicos ou políticos e com questões identitárias desconhecidas para uma gente de há muito imbuída de uma consciência de nação. Aprecia-se a riqueza que se tem quando se observa o desastre terrível que se abateu sobre a Etiópia, um país que estava em pleno progresso e um exemplo de sucesso em África, por causa de conflitos étnicos. Por outro lado, há que ter em atenção que a democracia, porque tem na sua base a liberdade e o pluralismo, pode na sua dinâmica levar a polarizações, impasses e mesmo ao extremar de posições com base em conflitos políticos, sindicais e outros. Manter a unidade de propósitos em questões fundamentais evitando fractura divisivas e artificiais é essencial para se beneficiar da dinâmica democrática e para fazer avançar o país sem que se incorra no perigo de paralisia e regressão que podem advir de instabilidade política com impacto duradoiro nos domínios económico e social.

No mundo de hoje com as grandes crises, a pandémica e a económica e social, e os grandes desafios, a transição energética e as alterações climáticas, é de maior importância que se construa nas sociedades democráticas um capital de confiança traduzido na confiança nas instituições, no alto grau de civismo e no foco no interesse comum. Países com esse capital conseguem com mais facilidade e mais solidariedade enfrentar as dificuldades presentes como os surtos de covid-19, as resistências à vacinação, os altos preços de energia, a inflação que vai fazer subir o custo de vida e diminuir o poder de compra e as dificuldades em conseguir emprego de qualidade. Central para se conseguir esse capital de confiança vai ser o comportamento dos governantes e da classe política em geral. Mais do que nunca, o país precisa de uma liderança de qualidade, competente e comprometida com o interesse comum e que não se deixa levar pelo caminho fácil, mas custoso do ilusionismo. Do presidente da república, órgão singular e suprapartidário, espera-se que aja para reforçar a unidade da nação para que a dinâmica da governação democrática mostre os seus frutos sem perigo de divisões que criam ineficiências, distracções e bloqueios e deixam o futuro permanentemente adiado.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1042 de 17 de Novembro de 2021.

 

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