A última vaga do coronavírus em Cabo Verde protagonizada pela variante Ómicron parece estar a perder impulso há algumas semanas e o número de novos casos de infecção tem diminuído consideravelmente. O mesmo vem acontecendo em vários países e nos diferentes continentes.
Passado o momento de grande mobilização e também de ansiedade para responder à ofensiva do que veio a revelar-se uma variante do Sars-cov2 muito contagiosa, mas menos letal, já há países que a exemplo da Dinamarca diminuíram extraordinariamente as restrições impostas e sinalizaram que a partir de agora vão entrar num quadro de normalidade de convivência com o vírus. Um quadro que não será muito diferente do que existe para a gripe com a sua sazonalidade, com o risco acrescido de doenças respiratórias e a preocupação especial com os mais idosos.
Acredita-se que é possível ir por essa via porque hoje com as taxas elevadas de vacinação acompanhadas de “boosters” anuais, a disponibilidade de remédios capazes de atenuar os efeitos dos sintomas e de combater complicações da covid-19 e também com a instalação de sistemas de detecção e de resposta rápida a surtos já é possível enfrentar com sucesso qualquer eventualidade. Um senão poderá vir do aparecimento de mais uma variante que se mostre igual ou mais contagiosa que a Ómicron e ao mesmo tempo mais letal. Um outro senão viria do caso de persistir resistências à vacinação no país e de no resto do mundo por escassez de vacinas ou por deficiências diversas o coronavírus continuar a ter na população não vacinada a possibilidade de fazer mutações que lhe permitiriam provocar novos surtos de reinfecções.
Em qualquer dos casos uma resposta rápida e vigorosa das autoridades e da sociedade e das pessoas será fundamental para se evitar o regresso aos confinamentos, lockdowns e outras medidas que tão profundamente têm prejudicado a economia, as relações sociais, a vida cultural e mesmo a saúde mental de muita gente em todo o mundo. O problema é saber quais é que seriam os contornos certos de uma eventual resposta a mais uma emergência pandémica. A experiência dos diferentes países nestes dois anos de pandemia enfrentando vagas sucessivas de variantes Alfa, Delta e Ómicron sugere que aparentemente ninguém tem a fórmula certa.
Acontece muitas vezes que se é-se bem-sucedido no combate a uma vaga, já na vaga seguinte não se consegue conter o aumento de casos e mitigar os efeitos da pandemia apesar dos avanços feitos na prevenção, nos testes e nos cuidados médicos. O maior exemplo da complexidade do problema é o que se passa nos Estado Unidos da América, o país cujos indicadores de segurança sanitária colocavam em primeiro lugar no mundo para responder a uma ameaça global do tipo que se verificou com o Sars-cov2. Paradoxalmente tem sido o país onde aconteceram mais casos de contágio e mais mortes devido à covid-19. Importa, pois, saber com mais alguma certeza o que fazer para além de aconselhar o uso de máscaras, promover vacinas, determinar confinamentos e tomar outras medidas para que com alguma eficácia se enfrentar epidemias futuras.
Um estudo publicado na revista científica The Lancet referenciado num artigo do jornal New York Times de 6 de Fevereiro procura elucidar as razões por detrás dos resultados do combate ao coronavírus tão díspares entre os diferentes países. Ajustando os dados de infecções e de mortes recebidos, considerando várias variáveis como estrutura etária, PIB per capita, densidade populacional, obesidade, existência de um serviço nacional de saúde, número de camas, infecções anteriores de coronavírus, verificou-se que embora haja uma correlação clara entre a taxa de letalidade entre os infectados (IFR) e a idade da população, em relação às outras variáveis não se nota impacto significativo nem no número de infecções, nem na taxa de letalidade. Curiosamente, os resultados do estudo apontam que o que parece ter realmente impacto na capacidade de controlo da pandemia e mitigação dos seus efeitos é a confiança no governo e confiança interpessoal. Para vários autores e comentadores a tragédia da covid-19 na América é o exemplo paradigmático do que acontece quando há disfunções na governação e perda de confiança nas instituições.
Ainda segundo esse estudo publicado na revista The Lancet “para promover a resiliência na resposta e recuperação de desastres, deve-se aprofundar “a confiança dentro e entre as comunidades, desde os desfavorecidos económica e socialmente até aqueles em posição de autoridade”. Essa é uma recomendação com uma pertinência muito especial para Cabo Verde. A pandemia deixou o país extremamente endividado, com uma população cada vez mais dependente do Estado, empresas fragilizadas e perspectivas de retoma sem muitas certezas considerando as dificuldades do sector do turismo, a fraca diversificação da economia e conjuntura internacional marcada pela inflação e pelas perturbações nas cadeias de abastecimento. Entretanto a crise sanitária ainda não terminou e, por razões várias de desconfiança natural ou induzida o ímpeto das vacinações tem diminuído em particular para a terceira dose que ainda só chegou aos 10%, não obstante a disponibilidade de vacinas. Com uma parcela significativa da população ainda por vacinar aumentam as incertezas porque fica sempre o perigo de reinfecções e no caso de surtos pode haver medidas de contenção que acabam por ter impacto na actividade económica.
Como o estudo referido aponta, é fundamental o investimento no capital social para se construir a confiança nas instituições e crucialmente também para gerar a confiança interpessoal e enfrentar a situação extraordinária que o país vive actualmente. De facto, sem isso não se tem a solidariedade necessária para se pôr de lado tacticismos político-partidários, protagonismos pessoais, interesses corporativos e de grupos que levam a polarizações excessivas e tornam legítima as pretensões de todos e cada um de procurar tirar a sua parte sem preocupação com o bem comum. E sem espírito solidário não é possível focar no essencial que neste momento é vencer a crise sanitária e económica e social, definir prioridades para o futuro, fazer o melhor dos recursos existentes e lançar o país num outro caminho que privilegie o conhecimento, o empreendedorismo e um engajamento com o mundo que contribua para a criação de riqueza no país e para a prosperidade de todos.
Infelizmente vários sinais no país sugerem que se está a ir na contramão. Há que arrepiar caminho e não permitir que descontentamentos, frustrações e ressentimentos das pessoas levem à descredibilização das instituições. Uma especial responsabilidade cabe aos dirigentes das instituições que não poucas vezes contribuem com omissões e protagonismos para esse processo de descrédito. Fazer da “dignidade a pedra angular do nosso compromisso, de nossa paixão cívica”, como disse o presidente italiano Mattarella no seu discurso recente de tomada de posse, pode ser a via a trilhar para construir confiança nas instituições e nas relações interpessoais, indispensável para se combater a crise da democracia e a crise social e ainda reacender a esperança no futuro.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1054 de 9 de Fevereiro de 2022.
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