segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Omissões criam desconfiança

 

Notícias recentes que jornalistas e jornais foram constituídos arguidos num caso de violação do segredo de justiça têm sido motivo de apreensão de vários segmentos da população.

Pelos órgãos de comunicação social, pelas redes sociais e nos encontros informais multiplicam-se debates de peritos e conversas simples de pessoas sobre como entre outros aspectos conciliar o direito de informação com o respeito pelo segredo de justiça. A atenção do público que a questão vem merecendo não se deve simplesmente ao facto o de se estar ou não a atentar contra a liberdade de imprensa. A razão principal é que parece dar corpo à suspeição de que se quer tirar o foco de um assunto candente e sensível para o colocar numa outra questão que é importante, mas acessória.

A alegada violação do segredo de justiça pelos jornalistas consistiria no facto de se ter avançado elementos tirados de um processo de investigação judicial em curso lançando uma nova luz sobre a morte violenta de uma pessoa há sete anos atrás no âmbito de uma operação policial. Até à publicação dos relatos na imprensa, de acordo com comunicado do Ministério Público ninguém tinha sido constituído arguido e aparentemente nem chamado a testemunhar. Naturalmente que a generalidade das pessoas fica perplexa ao verificar que o MP, que não se ouviu durante vários anos em que ponto se encontrava a investigação do caso da morte do indivíduo, agora se mostra muito activo em descobrir como se processou a fuga de informações. Mais perplexas ainda ficam quando se deixa passar a impressão que o foco estaria nos jornalistas e não em quem seria óbvio, ou seja, nos envolventes na investigação e na instrução do processo.

A verdade é que o que aconteceu há sete anos atrás precisa ser esclarecido de uma vez por todas. Acusações directas publicamente feitas contra um membro do governo durante anos seguidos nas redes sociais e em artigos de jornais não podem deixar de ser investigadas e clarificadas, particularmente quando vêm de personalidades que ocuparam altos cargos na polícia. Mais urgente se torna esclarecê-las se são aventadas em sede de debate parlamentar e suscitando suspeições de todo o tipo acabam por contribuir para a degradação do discurso político e a descredibilização das instituições. Um maior protagonismo do MP se esperaria na linha do que em 2017 o então presidente da república Jorge Carlos Fonseca disse na tomada de posse do novo PGR: o Ministério Público “está colocado no vértice da pirâmide de fiscalização da legalidade”, e espera-se “coragem de poder desagradar e causar incómodos, (…) mesmo em relação àqueles que pensam estar acima dela, julgando que as suas acções não estão submetidas à sindicância”.

Infelizmente não é esse o sentimento que muitos têm em relação ao funcionamento global da justiça em Cabo Verde. Não se vê que ela seja suficientemente eficaz para em tempo útil clarificar situações, dirimir conflitos e proteger direitos fundamentais. As deficiências e omissões são geralmente maiores quando se trata de acusações de abusos de autoridade, de violência policial e de mortes em encontros com a polícia. Demasiados casos ficam por esclarecer, não se vê investigação de falhas que depois leve à introdução de boas práticas, nota-se excesso de corporativismo que impede transparência na relação com o público e sente-se que a falta de cooperação entre as forças, apesar de identificada há muito, ainda não foi ultrapassada prejudicando a eficácia da investigação criminal. Aliás, os últimos acontecimentos que levaram à constituição de profissionais da PJ como arguidos e que deixam entender que há tensões entre os diferentes órgãos da polícia criminal não augura nada de bom para o sistema.

Por isso focar nos jornalistas e no eventual papel que tiveram na violação do segredo de justiça quando há tanta coisa urgente a rever e a resolver não pode deixar de causar mal-estar na sociedade. Em todo o mundo democrático depara-se com situações em que se confrontam a liberdade de imprensa com outros direitos como o direito à honra e à imagem e também com a necessidade de se salvaguardar o segredo de justiça para assegurar investigação e instrução criminal. Um outro confronto é com o segredo do Estado em que é preciso ponderar o direito de informar e de ser informado com questões de segurança do Estado. Mesmo em países onde há um forte balanceamento em direcção à protecção do direito de informar como nos Estados Unidos na América acções judiciais são dirigidos contra jornais e jornalistas como no célebre caso dos “Papéis do Pentágono” em que se procurava evitar a sua publicação no Washington Post e no New York Times.

Em qualquer das circunstâncias são sempre os tribunais a decidir caso a caso qual dos direitos deve prevalecer, sendo certo que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa em geral acabam quase sempre por prevalecer, como se verificou no caso referido. Quando, porém, se deixa instalar um clima de desconfiança em que as pessoas se sentem compelidas a ver em certas decisões “vingança dos magistrados ou do sistema de justiça”, tudo fica mais complicado. Casos que podiam ser com tranquilidade dirimidos pelos tribunais são exacerbados, dão origem a denúncias internacionais e as pessoas alvo dessas acções judiciais sentem-se genuinamente intimidadas pessoalmente e no exercício da sua profissão, o que não devia acontecer num Estado de Direito democrático.

A experiência dos últimos tempos que muitos consideram de crise das democracias tem mostrado que o mesmo tipo de desconfiança e de descredibilização das instituições que para gáudio de alguns se vê afectar os partidos políticos, o parlamento e a classe política em geral, nem sempre fica por aí. Já há vários exemplos que tendem avançar e atingir o sistema de justiça ameaçando destabilizar os alicerces do Estado de Direito democrático. Quem também não fica incólume neste processo de perda de confiança nas instituições é a imprensa. Como se viu claramente de casos como o da presidência de Trump e de Bolsonaro a liberdade de imprensa é um dos alvos a abater escolhidos por todos os aspirantes a autocratas que cavalgam as ondas de desconfiança e de cinismo que têm levado ao enfraquecimento da democracia.

Para os media chamados de “fake news” por esses autocratas na tentativa de as denegrir é importante perceberem também o papel que têm desempenhado em alimentar essa desconfiança e o cinismo das pessoas. Há talvez na sua actividade que ir além das razões de audiência e de outros interesses para se poder ultrapassar o estado actual de falta de confiança. Nesse sentido é preciso garantir a todos e a todo momento o direito de informar, de se informar e de ser informado. O comprometimento com uma cidadania plena que se realiza num ambiente sócio-político suportado por instituições sólidas e credíveis é fundamental para se evitar a erosão das liberdades. Mesmo nos piores momentos das democracias, este não é combate que se deve abandonar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1053 de 2 de Fevereiro de 2022.

Sem comentários: