Os efeitos da guerra na Ucrânia já se fazem sentir terrivelmente nos preços de todos os produtos a começar pelos combustíveis e bens alimentares. Inaugura-se um novo período de preços voláteis em produtos essenciais devido a tensões geopolíticas e a escassez no mercado a ponto de ruptura de stocks por razões que têm a ver com a diminuição da oferta na origem e por constrangimentos logísticos no transporte e na distribuição.
A tendência para o aumento dos preços já vinha do período da pandemia da covid-19. A guerra, as sanções económicas e financeiras e as tentativas de isolamento da Rússia só a agravou. A crise económica assim gerada tem uma abrangência tal que não deixa nenhum país incólume. Num pequeno país insular e arquipelágico os efeitos tendem a multiplicar-se ainda mais.
Reconhecendo a nova realidade, o governo tomou algumas medidas para diminuir o impacto da subida dos preços dos produtos petrolíferos e alimentares entre as quais a suspensão temporária do mecanismo de fixação de preços dos combustíveis entre Abril e Junho. Nesse período vai-se manter o preço do gás butano e do combustível para a produção de electricidade, enquanto os outros produtos ficarão sujeitos a ajustes até 5%. Já na resposta à alta de preços devido à pandemia já se tinha tomado medidas no sentido da baixa do IVA para energia de 15% para 8%, e de majoração às empresas em 30% dos custos de energia e água e aumento da tarifa social de 30 para 50%. Não se sabe é até quando esta conjuntura de alta de preços vai durar e se haverá recursos que permitirão por tempo mais longo amortecer o choque do aumento dos preços.
Na resolução do governo está-se a contar com alguns mecanismos de compensação para o diferencial entre o preço real e o praticado incluindo impostos e eventual escalonamento e diluição do remanescente a pagar em doze meses. Prevêem-se outras medidas se não houver uma mudança da conjuntura, mas dificilmente vai-se evitar que os aumentos de preços, a persistiram, não serão repassados para os consumidores, afectando a economia no seu todo e diminuindo o poder de compra das populações. A questão que agora se coloca – perante o que claramente se configura como um choque externo que vem em cima de um outro, a pandemia da covid-19 – é em que medida o país se tem preparado para esse tipo de contingências.
É verdade que não era fácil prever a invasão da Ucrânia e o seu impacto no mundo, mas de há muito que se sabe da transição energética que deve ser feita para que as alterações climáticas já manifestas não ganhem proporções catastróficas. Noutros países esse processo é extremamente complexo e com passagens faseadas de carvão ou fuel para gás natural e depois para as energias renováveis. Em Cabo Verde, com o potencial existente na energia o solar e na eólica e a menor dependência numa industrialização de base em combustíveis fósseis, o processo poderia talvez ter sido mais directo e expedito. Vários foram os projectos virados para uso e exploração da energia do sol e do vento que tiveram financiamento ao longo de décadas. Os resultados é que são diminutos em relação aos investimentos feitos.
Segundo o governo, as renováveis constituem 18% da energia actualmente disponível, mas com os financiamentos já acordados com o Banco Mundial espera-se 30% em 2030, e a partir de 2030, 50%. Não se pode dizer que o que existe actualmente e mesmo o que se projecta para o médio prazo seja uma posição adequada ou confortável em termos energéticos, em particular para fazer face a eventuais choques externos. Faz falta uma estratégia clara e assumida por todos para se conseguir a maior independência energética possível. De há muito que isso devia ser óbvio, considerando os preços extremamente altos da energia que enfraqueçam o poder de compra das pessoas e que aumentam os custos das empresas e diminuem a competitividade do país. Acrescenta-se a isso o facto de a transição energética para as renováveis ser algo globalmente incontornável e quem primeiro por aí enveredar mais possibilidades teria de aproveitar as oportunidades abertas no novo mercado energético.
Não agindo de forma compreensiva para as energias renováveis acaba-se por ficar com uma espécie de manta de retalho de projectos que não “somam” para dar o resultado que devia ser expectável de tantos milhões gastos. Em 2010 foram cerca de 30 milhões de euros de uma linha de crédito português que foi investido em parques solares na ilha do Sal e em Santiago. Deviam “produzir 4% do total da energia que existe na rede, mas está a produzir cerca de 1,5% para rede” segundo o então director do CERMI numa entrevista a este jornal em Setembro de 2017. A Cabeólica que segundo o ministro da Indústria e Energia é responsável por quase 20% da energia consumida na rede tem parques eólicos em Santiago, S. Vicente, Sal e na Boa Vista e funciona com um contrato “take or pay” que muitos consideram oneroso para a Electra. Na comemoração dos seus dez anos não se ficou a saber se vai investir para alargar ou criar mais parques eólicos ou se vai continuar com o mesmo contrato, não obstante os efeitos da pandemia na economia e a alta de preços dos combustíveis fósseis. Até agora o consumidor cabo-verdiano ainda não sentiu os efeitos dos investimentos feitos nas energias renováveis nos preços de electricidade.
Também quando não há essa perspectiva abrangente fica-se com um handicap duplo. Nas negociações com os parceiros a tendência é para adoptar a agenda e as prioridades que acompanham a promessa de financiamento sem a devida interligação e encadeamento com o já existente criando ineficiências várias. Por outro lado, sem uma visão própria não se contempla soluções a partir de uma gestão criteriosa de recursos próprios como por exemplo quando a cooperação luxemburguesa teve que financiar painéis fotovoltaicos no valor de cerca de 15 mil contos para que a Assembleia Nacional pudesse poupar 27% da sua factura de energia eléctrica. O uso generalizado de energia fotovoltaica nos serviços do Estado há muito que deveria ter sido feito e com recursos endógenos. Afinal, os serviços funcionam principalmente durante o dia quando o sol brilha e os painéis podem produzir electricidade suficiente para as necessidades das instalações.
Os ganhos teriam sido múltiplos e transversais como por exemplo na factura paga à Electra que diminuiria, nos postos de trabalho para instalação e a manutenção que seriam criados para os jovens formados no CERMI e noutros centros em todas as ilhas e, possivelmente, em menos combustível importado. Considerando ainda o peso do Estado nas compras de painéis solares talvez outras entidades e particulares interessados acabassem por ser beneficiados com preços mais baixos desse tipo de equipamento. O exemplo do parque fotovoltaico da Caixa Económica que em seis meses poupou mil contos na factura da Electra como veio em 2019 relatado neste jornal é ilustrativo a este propósito. Não se tinha, de facto, de esperar por um projecto do Banco Mundial para fazer, com recursos próprios e para criar poupanças múltiplas e dinamizar uma actividade com futuro, o que há muito se deveria ter encetado em nome de mais segurança energética para o país e de uma energia mais barata para todos.
Como nas energias renováveis, também noutros sectores o país precisa engajar-se com agenda própria e prioridades bem definidas. Em certos domínios como segurança, educação com qualidade e sistema de saúde competente e eficaz, que são pressupostos indispensáveis para o desenvolvimento do país, nada pode substituir a vontade própria da nação e dos seus governantes em conseguir resultados significativos e sustentáveis. Ter visão própria e ser perseverante é fundamental para vencer a batalha do futuro nestes tempos de incertezas.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1061 de 30 de Março de 2022.
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