segunda-feira, novembro 07, 2022

Não é tempo para complacência

 

Na sexta-feira passada o Banco de Cabo verde, como habitualmente em Outubro/ Novembro, trouxe a público a segunda edição do seu bianual relatório de política monetária. As informações sobre a performance do país foram melhores do que eram esperadas. No World Economic Outlook do Banco Mundial de Outubro último a previsão de crescimento da economia nacional era de 4% para o ano de 2022 e de 4,8% para 2023.

Para o BCV, porém, já se pode contar com um crescimento este ano à volta de 8% e esperar por 5% no ano de 2023. Pensava-se que o PIB do país só iria atingir o nível de 2019 em 2023 mas, segundo os dados agora revelados, isso será possível ainda em 2022. 

A par com outras boas notícias, como por exemplo, a de se ter garantido credibilidade do regime cambial do peg unilateral da moeda cabo-verdiana ao euro e a reserva em divisas correspondente a mais de sete meses das importações, no relatório do BCV veio uma série de recomendações para se manter o país estável e a crescer com sustentabilidade. O mundo não está fácil e incertezas e imprevistos tornam difícil antecipar o futuro, mesmo o mais próximo, e prevenir as dificuldades em forma de choques de vários tipos que eventualmente venham a surgir. 

A humanidade encontra-se numa encruzilhada perigosa. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a reacção dos países do Ocidente em apoiar os ucranianos na defesa da sua soberania e integridade territorial e do seu direito à liberdade e democracia lançou o mundo num mar de incertezas e de disrupções de vária ordem, designadamente geopolítica, comercial e militar em relação ao qual ninguém vê um fim à vista. A desglobalização já está a acontecer, blocos de nações rivais já são uma realidade e mesmo a possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser uma hipótese remota. 

Tudo isso ocorre tendo como pano de fundo as alterações climáticas de abrangência planetária cujo impacto no quotidiano de muita gente e na economia global é já praticamente incontornável. E a verdade é que, sem cooperação entre os vários Estados, particularmente as grandes potências políticas e económicas, dificilmente se vão tomar as medidas de protecção do ambiente, agir concertadamente para fazer a transição dos combustíveis fósseis para as energias renováveis e proceder à descarbonização da economia que se impõe no momento. Mesmo a muito curto prazo pouco se consegue prever considerando que imprevistos vários, sejam eles políticos, económicos e até logísticos acabam por afectar num sentido ou noutro. 

Da vitória ou derrota do Lula no Brasil, por exemplo, dependiam decisões com impacto nas alterações climáticas, o mesmo acontecendo com as eleições da próxima terça-feira nos Estados Unidos em que uma eventual derrota dos democratas poderá assinalar mudanças na política de protecção do ambiente com impacto global. Da evolução das relações com a China, a segunda maior economia do mundo, nos últimos tempos marcada por tensões geopolíticas, vai depender muito a possibilidade de avanços numa política global do clima. Também como se está já a constatar, falhas no fornecimento do gás ou do petróleo russo ou então perturbações nos transportes de cereais constituem uma fonte de graves problemas de abastecimento e escaladas de preços que acabam por criar instabilidade geral, em particular nos países mais frágeis. 

A estes, e em especial aos que como Cabo Verde ainda suportam os custos da insularidade, há que preparar para o mundo propenso a choques, de que fala Kristalina Georgieva do FMI, e não cair na tentação de pensar que à conta de alguns indicadores mais favoráveis já se pode dizer que a normalidade está aí mesmo à porta. Aliás, em matéria das exportações do turismo, que mais impacto têm sobre a economia nacional, o BCV veio relembrar que só em 2024 se estima que atinjam os níveis pré-pandémicos de 2019. Acrescenta ainda que há riscos à materialização das actuais projecções, entre os quais, a evolução adversa da guerra na Ucrânia e os seus efeitos nos preços de energia e alimentos e nas cadeias de abastecimento globais, a adopção de políticas monetárias agressivas que poderão expor a vulnerabilidade da dívida e levar ao sobre endividamento e, ainda, um possível ressurgimento da pandemia com uma nova variante. Por isso é que passa a recomendar que a prioridade nos próximos meses seja de combater a inflação e que nesse sentido se tenha atenção nas políticas redistributivas para que sejam direccionadas para quem realmente precisa e se equacione a tempestividade da sua retirada.

Outras recomendações com o mesmo objectivo de combater a inflação e lidar com a dívida incidem sobre a necessidade de coordenação dos agentes económicos para conter aumentos de salários geradores de pressões sobre preços. A solidariedade aí sugerida deverá ser acompanhada de um esforço visível e credível da parte de todo o Estado na contenção das despesas e num funcionamento mais eficiente e eficaz. Aliás, esse esforço deverá servir de elemento motivador do engajamento colectivo necessário para se pôr em prática as sugestões do relatório de se avançar com políticas públicas urgentes, como melhorias na infra-estrutura dos transportes e investimentos na saúde pública para melhor enfrentar eventuais pandemias, e de se proceder a reformas estruturais, abrangendo educação, ambiente de negócios e infra-estruturas digitais. 

É evidente que sem esse comprometimento de todos, neste momento de grandes mudanças e grandes incertezas no mundo, a tentação maior vai ser de gerir o país como se fez nas crises passadas. E da experiência tida sabe-se que não se conseguiu de facto debelar as vulnerabilidades e diminuir a precariedade das populações. Mas, a olho nu, nota-se que a dependência das populações e da sociedade em relação ao Estado aumentou. A tudo isso não é estranho o tipo de política de soma zero que se insistiu em perpetuar e que nem a alternância política no governo conseguiu realmente pôr cobro. Acompanhada de crescente personalização da política que não deixa espaço para diálogo e compromissos e para se criar vontade de reforma, as suas consequências são ainda piores. 

O primeiro-ministro, citado pela Lusa num despacho de 26 de Outubro, apresenta-se como uma espécie de treinador de futebol que toma decisões governativas não em função da reacção daquilo que alguns dirão, seja com que formato, seja com que membro de governo for, focado a fazer bom trabalho. Aos outros, políticos e entidades, provavelmente deverá restar o papel de denunciar situações e procurar tirar benefícios eleitorais das denúncias. Daí talvez se compreenda que nos confrontos políticos em Cabo Verde o que mais se ouve é discurso de abandono e de discriminação e acusações de favoritismo partidário. E também se justifique o frenesim de toda a classe política nas suas visitas às ilhas e nos encontros repetidos com a população que só a pandemia da covid-19 conseguiu travar, deixando a nu o desperdício visível que boa parte dessas deslocações e estadas representam em tempo, em dinheiro e em oportunidade de criação de uma consciência nacional dos problemas do país. Aparentemente não há perspectiva de ganho em dialogar, debater e chegar a acordos. 

Se isso é mau em geral, na actual conjuntura política e económica é muito pior. E nem a publicação agora dos novos indicadores macroeconómicos, aparentemente mais favoráveis do que o esperado, devia retirar gravidade à situação actual e convidar à complacência habitual no país. Tornar o país resiliente para enfrentar choques futuros impõe que se vá além da política rasa e sem imaginação que faz escola no país.

Humberto Cardoso


Texto publicado originalmente na edição nº1092 do Expresso das Ilhas de 02 de Novembro

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