Nas vésperas da discussão na especialidade do Orçamento do Estado para o ano 2023 vai-se mais uma vez a debate com o Primeiro-Ministro na Assembleia Nacional com o tema “A Transparência como factor de desenvolvimento”.
No ano passado tinha sido o mesmo tema e, recorrentemente, volta-se às questões de governança e de acountability sem que, pelo tom e substância de debates subsequentes no parlamento, se perceba que houve algum progresso no sentido supostamente desejado. Os argumentos continuam primários, não são avançadas soluções e não se vê vontade para fazer reformas, presos como todos parecem estar aos cálculos eleitorais, independentemente da distância que no momento se está das eleições. Os debates acabam por traduzir-se em simples oportunidades para acusações mútuas, para suspeições de favoritismos e até de corrupção e para denúncias de partidarização da administração do Estado.
Dificilmente no debate de hoje, dia 23 de Novembro, será muito diferente. E é pena porque os tempos actuais de grandes incertezas exigem que se renove e se consolide confiança na democracia. Para isso, porém, é fundamental que, como alguém bem disse, sejam disponibilizados “instrumentos que poderão permitir uma maior transparência, verdade e clareza na defesa de uma sociedade aberta, na qual as políticas públicas resultem de opções realmente partilhadas por todos e adequadamente sujeitas ao controlo efectivo dos cidadãos”. Num ambiente em que se privilegie mais os supostos ganhos de deixar mal o outro, como se todos estivessem envolvidos num jogo de soma zero, não há muito espaço para se chegar a acordo sobre como afinar esses instrumentos. Nem mesmo para reconhecer o caminho em termos institucionais que já se percorreu nas três décadas da democracia para se combater a opacidade do Estado e fazer da transparência e da accountability um princípio fundamental do Estado de Direito democrático.
De facto, apesar das querelas constantes avançou-se e muito nestes trinta anos. Não é à toa a posição actual de Cabo Verde nos ranking de governação (51) e de corrupção (39). Poderia ser melhor se houvesse um comprometimento para que certas reformas chaves na administração do Estado tivessem continuidade para além das legislaturas. Diferentemente de países tão diferentes como as Maurícias e Botswana que, mesmo com alternância no governo, conseguiram manter uma orientação estratégica consistente e que lhes proporcionou crescimento e prosperidade e os colocou entre os primeiros de África, Cabo Verde deixou-se tolher no seu desenvolvimento pela crispação política. Com isso, quebrou-se o ritmo de reformas e alimentaram-se resistências às mesmas, enquanto o discurso político degradava-se e fixava-se completamente fora de contexto no passado das realizações no governo de cada partido. Depois perguntava-se porque não tiveram continuidade.
Quando se institui essa forma de fazer política corre-se o risco do país paulatinamente deixar de contar com visões de desenvolvimento dos diferentes partidos porque, de facto, da forma como politicamente se engajam já não estão virados para o futuro.
A democracia perde porque não apresenta à sociedade reais alternativas mas sim versões “do mais do mesmo”. Por outro lado, toda a acção política passa a configurar no que já foi chamado de técnicas de poder, de como ocupar e usar o Estado para dominar a sociedade e a economia. O calculismo eleitoral acaba por se impor e toda a oportunidade é tida como boa para ganhar pontos sobre o adversário. A tentação maior será de transformar o adversário no “outro” que, conforme as circunstâncias, se pode apresentar como não defensor dos interesses do país, de profeta de desgraças e até de anti-patriota. A democracia, porque baseada no respeito pela dignidade da pessoa humana, reconhece que os indivíduos e cidadãos são livres e têm interesses e que esses interesses são diversos. O facto de se suportar no pluralismo e na tolerância assumidos por todos como princípios permite que da interacção desses interesses resulte o interesse geral. Ninguém, seja ele indivíduo ou grupo, detém o monopólio da verdade ou encarna sozinho o interesse público. Da organização política social e económica que resultam dos princípios democráticos e do Estado de Direito espera-se que emerjam as mais ricas expressões de criatividade, de capacidade inovadora e de energia e vontade para correr riscos e criar o novo. E isso é provado historicamente pelas democracias a todos os níveis, designadamente de crescimento económico, de qualidade de vida, dos avanços científicos e tecnológicos e de expressão artística, quando comparadas com formas de poder autocrático, sejam eles autoritários ou totalitários. Empobrecese, pois, a democracia e o país quando se deixa instituir uma forma de fazer política que exclui e toma o adversário como inimigo e não representativo de interesses legítimos dentro da comunidade, os quais, pela sua expressão contribuem para se definir o interesse nacional.
Em Cabo Verde, nota-se ainda hoje resistências ao pluralismo e à expressão da diversidade de interesses. Sente-se na hostilidade aos partidos e ao multipartidarismo em certos círculos que, curiosamente, logo nos primórdios da democracia já denunciavam os males do bipartidarismo. Vê-se também na desconfiança como certos sectores da sociedade encaram a iniciativa privada e actividade empresarial e seu impacto nos rendimentos e bem-estar dos indivíduos que são bem sucedidos. Ainda tributários da ideia de que o Estado é o principal provedor de recursos no país não interiorizam como realmente se cria riqueza e como se pode organizar para garantir rendimentos e combater a pobreza de forma sustentada por outras vias que não a da mobilização de recursos externos. A relutância sentida à volta dessas questões não é de estranhar considerando a trajectória histórico- político do arquipélago ao longo da qual se cultivou o igualitarismo, se entregou a política a um grupo supostamente impoluto, porque na “luta” se suicidou como classe social, e se combateu a iniciativa e expressão individual enquanto se procurava enquadrar as pessoas em organizações de massa.
A política no presente ainda é marcada por confrontos que nos debates trazem ao de cima todo esse legado. Com certo tipo de acusações procura-se excluir o adversário e retirar qualquer legitimidade ou credibilidade aos seus argumentos. Com as suspeições cria-se o ambiente adequado para desconfiança em relação às intenções. Claramente que debates que tem como foco escrutinar a actividade estatal e do governo são os mais propícios para esse tipo de exercício. Em nome da transparência, em vez de procurar consolidar as instituições de controlo e aprimorar o sistema de pesos e contrapesos de forma a se exigir uma prestação de contas atempada e responsável e cada vez mais rigorosa e intransigente, opta-se por repisar velhos argumentos, repetir escaramuças antigas e sair de mãos a abanar depois de mais um debate.
Há que abandonar essa forma de actuação que não é salutar para a democracia e não ajuda o país e as suas gentes. Se não for agora, que o mundo e também Cabo Verde enfrentam crises múltiplas e sem precedentes, quando será?
Humberto Cardoso
Texto publicado originalmente na edição nº1095 do Expresso das Ilhas de 23 de Novembro
Sem comentários:
Enviar um comentário