segunda-feira, dezembro 19, 2022

Fugir das armadilhas

 

A problemática dos transportes em Cabo Verde, em particular dos transportes aéreos, tem sido matéria quase permanente de discussão pública, de debates parlamentares e arma de arremesso que as forças políticas atiram umas contra as outras. É verdade que a questão é de maior importância, senão vital para o país, e compreende-se que focalize muita atenção não só da classe política como de toda a sociedade. Mas difícil de entender é que, iniciada a discussão, a tendência é para todos se distraírem do que é essencial para se se transformar num misto de jogo de culpas e de promessas muitas vezes irrazoáveis.

Até agora o embate de posições do como fazer para enfrentar a situação é que não tem sido muito produtivo e as soluções já tentadas pelos diferentes governos em boa medida só prestaram para acumular ainda mais a dívida pública. Também com a destruição de valor, perda de oportunidades provavelmente irrepetíveis e pesados custos de estrutura vê-se que se vai tornando cada vez mais remota a possibilidade de o sector aéreo vir a cumprir as expectativas estratégicas para o desenvolvimento do país que todos parecem acreditar que possui. No processo de discussão não ajuda que não se tenha como pano de fundo uma visão realista do que podem ser os custos dos transportes num país insular, arquipelágico, população diminuta, mercado restrito e relativamente remoto dos espaços continentais. E muito menos como assumi-los considerando que Cabo Verde não beneficia dos subsídios e transferências públicas com que os restantes arquipélagos da Macaronésia são privilegiados no quadro das regiões ultraperiféricas.

Às dificuldades mais evidentes em conduzir um debate mais frutífero em matéria dos transportes no país, junta-se uma aparente insensibilidade em procurar compreender por que iniciativas empresariais no sector têm dificuldades e até acabam por descontinuar, como aconteceu com o Icelandair e a Binter, ou já mostram dificuldades em expandir os negócios como a Bestfly. No caso desta companhia de aviação, que tem todo o tráfico doméstico do arquipélago, o mais normal seria que no último debate na Assembleia Nacional fosse questionado o governo pelas razões por que a empresa ainda não avançou com os seus planos de expansão. No mês de Junho trouxe um avião Embraer que se veio juntar aos dois ATRs que já operam supostamente para entrar em operação com conexões para Europa, África Ocidental e os Açores. Recebido com pompa e circunstância e presença de três ministros, o avião até agora continua sem voar, porque não certificado e os Twin Otters, que deviam seguir-se para aumentar a frota, parece que foram adiados.

Em entrevista a este jornal, na edição de 7 de Dezembro, o Director-geral da Companhia explicou que para essa expansão “primeiro de tudo, tínhamos de aumentar o fluxo de tráfego e era aqui que entrava o Embraer”. Como não foi certificado, tiveram de cancelar o projecto Embraer. Acabaram por não desistir e agora estavam a avaliar o retorno do projecto Embraer e que o plano B, provavelmente para contornar o ambiente pouco facilitador, seria de registá-lo noutro sítio. Nas entrelinhas percebe-se a dificuldade em operar em Cabo Verde com rotas ineficientes para os aparelhos ATR e com os altos custos dos bilhetes e a impossibilidade de aumentar frequências que afectam a procura e a que vem somar o ambiente de negócios um tanto rígido.

Ou seja, promove-se o investimento e depois não se faz o seguimento da implementação de modo a assegurar que bloqueios diversos, designadamente de regulação, de práticas monopolistas ou de concorrência informal, sejam com segurança ultrapassados e que se desenvolvam sinergias e criadas cadeias de fornecedores e de outros operadores conexos. Sem isso, tanto os objectivos directos pretendidos com a iniciativa empresarial como os indirectos, através do arrastamento do resto da economia, não se materializam. Para garantir que se vai no sentido desejado, é fundamental que o Estado assuma na plenitude o seu papel em todas as suas capacidades, designadamente de promotor, facilitador, regulador e de garante da segurança jurídica da propriedade e dos contratos.

Do governo que orienta e dirige o Estado não se pode esperar que tenha uma postura passiva quando dele se espera uma abordagem compreensiva, coordenada e dirigida para resultados, num quadro da legalidade vigente. De outro modo arrisca-se a que eventualmente se ficar na posição de não ter disponíveis certos bens e serviços públicos essenciais como recentemente se vislumbrou em mais de que uma situação com a quase paralisação dos voos internos. Também, para se ter crescimento sustentável e inclusive, há que qualificar a intervenção estatal de forma a abranger – como diria a economista Mariana Mazucatto na defesa do seu conceito de Estado empreendedor – doações, créditos, benefícios fiscais e aprovisionamento público. A perspectiva é que com essas medidas de política e em combinação com o sector privado, e a partilhar tanto nos ganhos como nos riscos dos investimentos na inovação e crescimento, é possível maximizar o valor público dos mesmos.

A dificuldade em se mover pela via óbvia de procura de resultados que é deixada transparecer nas discussões estéreis, onde não se identificam as causas dos problemas e não se fazem correcções, pode ser sintoma de uma armadilha (trap) em que o país foi apanhado e que pode estar a se revelar no maior entrave ao seu desenvolvimento. São famosas as várias armadilhas que se podem apresentar no processo de desenvolvimento. Há países onde se fala, por exemplo, de “middle income trap” que não deixa países de rendimento médio dar o salto para o desenvolvimento, ou de “resources curse” que lança países ricos em recursos naturais numa espiral de endividamento e empobrecimento acompanhada de grandes desigualdades sociais. Nem os países mais desenvolvidos estão livres de armadilhas como o Japão bem o provou nos anos noventa com a “liquidity trap” que deixou o país mais de uma década na quase estagnação económica.

Saber identificar a armadilhas que ameaçam o país é fundamental para se pôr cobro ao que vai ficando claro a todos. Despeja-se dinheiro na educação, na segurança, na saúde, na justiça, nos transportes, mas não se está a conseguir inverter a percepção de que os serviços estão a se deteriorar e as instituições a se mostrarem cada vez mais frágeis. Criam-se ecossistemas, mobilizam-se linhas de crédito de milhões, formam-se empreendedores em todos os cantos do país e descobrem-se talentos aos magotes, mas os resultados não se notam na actividade empresarial, na criação de empregos e na criação de riqueza. A economia continua fortemente atracada às vicissitudes de um turismo que tarda em crescer para os números que eram expectáveis, a população diminui com a emigração e a confiança no futuro revela-se precária. Orientar-se para resultados com base no aumento da competitividade e da produtividade deve ser o caminho para se libertar da armadilha (trap). Há que, com visão e liderança realista, pragmática e competente mobilizar energia e vontade para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1098 de 14 de Dezembro de 2022.

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