segunda-feira, dezembro 12, 2022

Por um regular funcionamento das instituições

 

Por decreto presidencial publicado no B.O. de 1 de Dezembro renovou-se o mandato do presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Foi nomeado para o cargo o juiz de Direito Bernardino Delgado sob proposta dos membros do CSM.A nomeação do presidente não foi, porém, precedida da completa renovação do órgão de autogoverno da magistratura judicial como seria de esperar. Apesar da assembleia dos juízes ter eleito os representantes no conselho e do presidente da república ter nomeado um juiz para o integrar não foi possível ter os quatro eleitos da Assembleia Nacional para substituir os que de há muito terminaram o mandato ou exerceram mandatos consecutivos, em alguns casos desde 2011 e outros desde 2015.

Como a composição do conselho com juízes e não juízes na actual proporção de 5-4 não é algo indiferente e, muito pelo contrário, é essencial para se contrabalançar tentações corporativistas, faria todo o sentido que se esperasse a renovação dos conselheiros não juízes para se escolher o presidente. Num momento em que a situação da justiça é uma preocupação central da sociedade, como ficou evidente nas intervenções do arranque do ano judicial, devia ser de todo interesse que houvesse a percepção de um regular funcionamento das instituições no sector. Deu-se recentemente o exemplo com a normalização do funcionamento do Supremo Tribunal de Justiça, após a saída, há quase dois anos, dos juízes conselheiros jubilados, e espera-se ver mais nesse mesmo sentido proximamente com uma inspecção judicial efectiva.

De facto, não se tem procurado assegurar o regular funcionamento das instituições com suficiente vigor e perseverança. E é pena porque revela-se essencial para melhor credibilizar a democracia e as regras do jogo democrático e plural e também garantir a liberdade e a segurança a todos níveis. O que se viu por exemplo na Assembleia Nacional em Outubro a propósito da eleição dos novos membros para o conselho superior da magistratura é paradigmático dessa atitude de descaso. Tudo serviu para não se avançar com um acordo que devia ser para renovação do CSM: desde disputas interpretativas quanto aos procedimentos a seguir, como se fosse a primeira eleição para os órgãos externos por lista plurinominal exigindo maioria de dois terços que se estava a fazer, até o interesse em manter candidatos que não era razoável propor, em primeiro lugar porque há muito que já tinham completado um tempo superior a dois mandatos.

Num ano que foi de muita contestação e crítica dirigida ao sector da justiça, o parlamento perdeu a oportunidade de enviar um sinal de que com a eleição de novos representantes querer imprimir uma outra dinâmica e uma outra sensibilidade e capacidade de gestão ao órgão para, entre outros objectivos, responder aos problemas da morosidade e às acusações de denegação de justiça. A aparente precipitação em se avançar com a proposta e a nomeação do presidente do CSM pelo presidente da república, num quadro em que quase 45% dos proponentes ultrapassaram o seu tempo ou estão de saída, certamente que não qualifica de melhor forma o sinal a enviar para a sociedade. A compor e a melhorar ainda mais o sinal podia-se eleger um vice-presidente não magistrado estatutariamente previsto para coadjuvar o presidente do CSM. Até agora não foi possível ir por esse caminho apesar de o Tribunal Constitucional (TC) num acórdão de 2016 ter unanimemente estabelecido que não tinha razão quem tinha questionado a constitucionalidade da norma que estabelece que o vice-presidente deve ser escolhido entre um dos não-magistrados.

Determinar o nível óptimo de representatividade dos membros não magistrados nos órgãos de autogoverno das magistraturas não tem sido matéria pacífica em Cabo Verde como aliás também não é noutras paragens. Há quem considere que os juízes devem ter a maioria e há quem ache que para se conseguir conter o espírito corporativista há que coloca-los em minoria. Todos, porém, parecem estar de acordo que a presidência deve ficar com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), mas cedendo a maioria no conselho aos não-juízes. Em Cabo Verde, na última revisão constitucional datada de Maio de 2010, foi-se por uma solução sui generis do presidente do STJ não ser também presidente do CSM podendo sê-lo porém qualquer magistrado eleito pelos seus pares ou nomeado pelo presidente da república para integrar o órgão. Na mesma revisão inverteu-se ainda a tendência que tinha sido vincada na revisão constitucional anterior de 1999 e afirmou-se em seu lugar uma maioria dos magistrados no CSM. O lugar de vice-presidente que devia traduzir-se em algum reequilíbrio foi contestado e mesmo com o acórdão favorável do TC não foi preenchido nos seis anos que se seguiram.

Uma dinâmica dessas que passa por as instituições não funcionarem regularmente como planeadas e desenhadas não deixa de indiciar eventuais interesses que muitos consideram de corporativistas e que levam à protecção da classe face aos críticos que clamam por uma justiça mais célere, de maior qualidade e com maior eficácia. Numa democracia em que todos os órgãos de soberania estão vinculados pelo princípio da separação e interdependência é fundamental que haja o regular funcionamento das instituições para que o sistema de peso e contrapesos (checks and balance) se faça sentir e o equilíbrio político, económico e social seja mantido. Nos tempos actuais, em que certo tipo de activismo político se torna cada vez mais atractivo para ganho pessoal ou de grupo, fazer as instituições sair de práticas já consolidadas e ignorar interpretações de procedimentos de há muito assentes com argumentos disruptivos, é fundamental seguir-se por caminhos que privilegiem conhecimento, maturidade e memória institucional.

Já se viu recentemente o ridículo das acusações de “golpes e contragolpes” que se seguiram ao fracasso do parlamento em eleger personalidades para o órgão de governo da magistratura no momento de maior tensão social dos últimos tempos e em que a justiça é visada. Também não se deixou de notar as várias tentativas de bloquear a competência da comissão permanente de exercer os poderes da assembleia nacional relativamente aos mandatos dos deputados como manda a Constituição, o regimento e os estatutos dos deputados e tem sido a prática estabelecida ao longo dos trinta anos de democracia constitucional. A impressão que se fica é que se quer passar tudo para o Plenário de forma a propiciar espectáculos potencialmente descredibilizadores da instituição.

Práticas similares que mexem com o regular funcionamento das instituições já se notam com maior ou menor gravidade em várias actuações de actores políticos. Na Câmara da Praia e de S. Vicente já levaram à quase paralisação da vida político-institucional desses municípios. Outros alvos poderão estar em mira, mas não se pode esquecer que para o populismo e outras derivas iliberais o principal objectivo é descredibilizar o parlamento e a justiça. Por aí é que se procura ferir de morte a democracia. Fazer cumprir as regras democráticas e assegurar o regular funcionamento das instituições é a via para se manter o sistema de liberdade e pluralismo a funcionar de forma a conservar sempre viva a esperança de uma vida de paz, justiça e prosperidade. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1097 de 7 de Dezembro de 2022.

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