segunda-feira, maio 08, 2023

Pela liberdade de imprensa

 

Comemora-se, hoje, 3 de Maio, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, uma data que deve focar a atenção de todos no que há de mais essencial para se garantir liberdade e democracia. Ter essa garantia significa que, como disse James Madison, “o povo não será privado ou abreviado de seu direito de falar ou publicar seus sentimentos” e que não será coarctada “a liberdade de criticar e se opor ao governo”, como bem lembrou George Orwell.

Também significa estar-se ciente, na linha de Albert Camus, que “a imprensa livre pode ser boa ou má, mas que sem liberdade não será outra coisa senão má” e que, por isso há que, a exemplo de Alexis de Tocqueville, “a amar por consideração aos males que ela evita muito mais do que pelo bem que faz”.

Cabo Verde actualmente na posição 36 entre 188 países no ranking (2022) dos Repórteres sem Fronteiras (RSF) é, segundo aquela organização, um país onde os profissionais do jornalismo podem exercer livremente, mas que a autocensura é generalizada. A contradição é explicada pela posição hegemónica dos órgãos do sector público no cômputo geral da comunicação social, pelo seu peso excessivo sobre o mercado publicitário e pelas vantagens que oferece na contratação de jornalistas. Acresce-se ainda “uma cultura de sigilo e as restrições do Estado no acesso a informações do interesse público.

O fenómeno da autocensura tem sido identificado pelos RFS ao longo de décadas e nos diferentes governos, não desaparecendo com a alternância dos partidos no poder. Provavelmente será mais complexo do que parece e poderá estar a revelar um fenómeno mais geral marcado pela fragilidade da sociedade civil, por uma cultura de dependência, pela falta pensamento crítico e autónomo e por uma relação com a verdade e a realidade dos factos baseada na conveniência do momento. Ou talvez traduza o medo colectivo reminiscente de um medo de outrora, mas que perdura, de, parafraseando John Kennedy, deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto de ideias, privilegiando pelo contrário narrativas ideológicas polarizantes da sociedade e promovendo tabus.

O ambiente de crispação não só política como institucional e cultural que daí resulta serve como forte inibidor da busca pela verdade que a liberdade de expressão, de informar e de imprensa devia proporcionar. Nos debates na esfera pública nota-se como as partes se quedam nas suas posições rígidas, ou como negam factos evidentes ou, de forma aparentemente contraditória, como às vezes são cúmplices na secundarização ou mesmo na ocultação de elementos que poderiam clarificar uma situação. Prefere-se eternizar o conflito colocando a identificação e lealdade partidária à frente do interesse público. E para preencher ou explicar o que não é dito, especula-se quanto aos interesses em jogo e insinua-se que há corrupção.

Não é de estranhar que os profissionais da comunicação social como, aliás, os servidores públicos, académicos e grupos de interesses empresariais, profissionais e outros vejam um tal ambiente quase como um campo minado que se deve atravessar com muito cuidado. Compreende-se assim por que a autocensura não acontece apenas entre os jornalistas e por que paralelamente o stock de cinismo na comunidade cresce e a confiança nas pessoas e nas instituições cai na mesma proporção. As declarações da presidente da Autoridade Reguladora para a Comunicação Social (ARC), que atribuiu a um “conflito que que opôs os órgãos e jornalistas ao poder judicial” a queda de Cabo Verde, em 2022, de 9 pontos no ranking da Liberdade de Imprensa dos Repórteres sem Fronteiras, podem ser interpretadas como um alerta contra esse estado de coisas.

A reacção do Procurador Geral da República (PGR) foi considerar inadmissível a posição da ARC, um órgão colegial eleito por uma maioria qualificada de dois terços dos deputados e que tem, como uma das suas competências constitucionalmente estabelecidas, garantir o direito à informação e à liberdade de imprensa. Alguma cortesia institucional deveria ser esperada na interacção entre os dois órgãos públicos. É verdade que ninguém está acima da Lei e que o Ministério Público deve ter todas as condições para investigar crimes e esclarecer situações que causam apreensão e angústia na opinião pública. Difícil fica porém compreender que da investigação de um caso de morte de um indivíduo, crivado de balas segundo o PGR numa entrevista à TCV no dia 2 de Fevereiro de 2022 num encontro com forças policiais, só terminada oito anos depois, se tenha concluído pelo arquivamento do processo por se ter encontrado “prova bastante” de legítima defesa enquanto jornalistas e órgãos de comunicação são constituídos arguidos por “desobediência qualificada” por terem trazido o caso à ribalta depois de tantos anos.

Casos de violência aparentemente desproporcional envolvendo polícias e cidadãos são motivo de preocupação em todo o mundo. O caso de George Floyd e de outros similares envolvendo inocentes, mas também alegados criminosos quando vêm a público, na maior parte das vezes por espectadores ou investigação jornalística, obrigam a resposta rápida das autoridades para tranquilizar a opinião pública e reforçar a confiança da população que a polícia procura sempre agir com sentido de proporcionalidade. Suspendem os policiais envolvidos, fazem inquéritos internos, pedem auditoria externa em certos casos, informam o público das conclusões e das medidas para melhorar práticas. Também há casos que vão para os tribunais e daí resultam absolvições, mas também condenações.

Não se pode é deixar arrastar situações do género por anos seguidos sem qualquer informação, sem sinais de medidas tomadas para mudar práticas e sem assunção de responsabilidade. Mostra que o Estado de Direito funciona sempre que vem a público situações que também causaram apreensão na opinião pública como foi o caso do polícia morto alegadamente pelo colega que já foi julgado, mas, de acordo com o Santiago Magazine, vai-se repetir o julgamento na primeira instância. Ter-se-ia, segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, cometido um erro notório na análise das provas. É reconfortante ver o sistema a funcionar independentemente dos resultados.

Mas quando não funciona ou se mostra autista é fundamental que a comunicação social e seus profissionais sejam ousados e não se deixem amarrar pela autocensura, nem por receio de acções judiciais. Sabe-se que a Liberdade de expressão e de informação é a rainha das liberdades, mas não é absoluta. Aos tribunais cabe fazer caso a caso a devida ponderação dos vários direitos. A liberdade de imprensa é prejudicada sempre que há a percepção de que se está a agir enviesadamente em relação ao mensageiro quando, no que respeita à mensagem, não se mostra urgência em que ela chegue, clara e completa, ao público, para tranquilidade de todos e maior confiança nas instituições.

Melhorar Cabo Verde no ranking da liberdade de imprensa passa por diminuir o peso do sector público na comunicação social e por desanuviar o ambiente de crispação no país ao mesmo tempo que se perde o medo de deixar o povo julgar a verdade e a falsidade em um mercado aberto. É nesse sentidode que todos devem trabalhar para garantir liberdade e democracia. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1118 de 3 de Maio de 2023.

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