Polarização política, confrontos partidários estéreis e falta de consenso em questões-chave da vida dos países têm sido cada vez mais vistos como sinais de grave crise da generalidade das democracias.
O debate político, crescentemente sequestrado por questões mais próximas das identidades partidárias do que da substância das políticas públicas, ajuda a vincar a ideia que “tudo é política” e que com tudo se pode fazer política. No ambiente assim criado em que sentimentos tendem a prevalecer sobre os factos dificilmente se consegue esquivar do rótulo de pertencer a uma facção ou outra. A grande habilidade é sempre encontrar temas que alimentam essa polarização reforçando o sentido de pertença de uns e identificando outros como adversários ou inimigos.
Claro que não se pode manter uma situação dessas sem que haja custos para a qualidade da vida política e para o nível de participação da sociedade civil na discussão das grandes questões do país. Há ainda um outro custo importante que são as instituições que ficam resistentes a reformas e cativas de interesses que se revêem e se legitimam nas questões fracturantes. De qualquer forma, o que se nota é que, a par da polarização que empobrece a vida política e enfraquece a vontade de encontrar soluções para um presente e futuro diferentes, há o frequente retorno a questiúnculas que sempre que invocadas reforçam a marca ideológica de uns em contraposição a outros.
Um exemplo recente desses retornos que amiudamente acontecem na democracia cabo-verdiana é a controvérsia à volta da iniciativa diplomática do governo junto de Marrocos. Pelas reacções nos media e nas redes sociais percebe-se que foi uma oportunidade para vincar credenciais de “libertadores”, supostos defensores do princípio de autodeterminação e independência, versus os “outros” “ligados a outros interesses”. Era a polarização a trabalhar com o seu motor de sempre. Pareceu não interessar que o governo anterior procurou normalizar a relação com Marrocos, a exemplo da maioria dos países africanos e da própria União Africana (2007), deixando congelada a questão do Saara Ocidental. Também se esquece que em matéria do direito dos povos há quem não pode ser exemplo porque quando devia ser a vez de Cabo Verde de exercer o seu direito à autodeterminação, no pós-25 de Abril de 1974, a palavra de ordem era “Não ao referendo, independência já, mas com o PAIGC”.
No mesmo sentido convergem outros momentos como os que se seguiram à discussão e aprovação do SOFA, o acórdão favorável do Tribunal Constitucional e a sua ratificação pelo presidente da república. Deixa-se no ar que interesses do país poderão não estar a ser servidos pelo governo acompanhado de um quê de antiamericanismo que cola bem com roupagens de anti-imperialismo do passado. Mais uma vez a tentação do reforço das credenciais ideológicas se sobrepõe. Não se vê qualquer contradição com posições de governo anterior que autorizou exercícios da NATO em Junho/Julho de 2006, celebrou SOFAs com a NATO e a Espanha, recebeu ex-prisioneiros do Guantánamo em 2010 e assinou acordo de parceria militar com os Estados Unidos em 2015.
Aparentemente nessa investida não é de exigir coerência governativa. Veja-se, por exemplo, a politica de reaproximação da África e a recomendação recente de estimular o desenvolvimento da cooperação com os países vizinhos. Depois de quase cinquenta anos após a independência não se vê alterações na estrutura das relações comerciais que poderiam sugerir que houve progresso significativo e nem se vê sinais que poderá haver avanços no futuro próximo. A opção pela África, porém, continua não como parte de uma estratégia governativa de desenvolvimento, mas para se manter uma identidade ideológica que dá fundamento à polarização política mesmo que os interesses do país não sejam realmente bem servidos no processo.
Num outro sentido, a reafricanização dos espíritos que também sustenta a polarização encontrou, na suposta defesa do crioulo, um terreno propício para os autênticos e os resistentes se demarcarem dos outros eventualmente lusotropicalistas, macaronésios ou simplesmente duvidosos. A verdade é que todos os cabo-verdianos falam o crioulo e não há perigo de nenhuma criança deixar de aprender a sua língua materna. Não obstante isso, e o facto de ao mais nível do Estado os titulares dos órgãos de soberania se expressarem em crioulo, criou-se a ideia que ela é desprestigiada e secundarizada. O objectivo aí é claro de mobilizar paixões supostamente para a causa da oficialização quando já existe desde 1999 a directiva constitucional para se criar as condições para estar em paridade com o português, a começar pela padronização enquanto língua formal e escrita. Curiosamente nem um jornal se procurou criar para habituar as pessoas a ler em crioulo como acontece em Aruba e Curaçau.
Os custos da polarização que certos sectores se empenham em reproduzir acabam por atingir as instituições do país com consequências nem sempre visíveis ou previsíveis. No caso do projecto lei sobre a língua portuguesa, apresentado na Assembleia Nacional, viu-se um ministro e um instituto público a extravasar as suas competências num confronto com uma maioria de votos de deputados a favor mesmo que insuficiente para passar a lei. A efectiva estatização da cultura claramente reconhecida no preâmbulo do regime jurídico do património cultural, mas não assumidamente extirpada das competências da instituição, representa de facto o entrincheiramento da política de reafricanização dos espíritos. Uma política que vem do regime de Partido Único e que se mantém imperturbável na democracia na qual o Estado, constitucionalmente, está impedido de impor correntes estéticas, ideológicas e filosóficas ao país e aos cidadãos. Desse choque entre dois sistemas de valores vem muito da paixão, do ressentimento e da nostalgia que alimenta a polarização política e cultural que dificulta o avanço do país.
Há dias, e a propósito da tragédia na Serra de Malagueta em que morreram oito militares num acidente de viação, algumas vozes, algumas delas surpreendentes por que já tinham ocupado posições ministeriais no sector, fizeram-se ouvir a pedir um debate alargado sobre o papel das forças armadas, a necessidade do serviço militar obrigatório e as missões que deve ou pode desempenhar. Realmente há muito que isso devia ter sido feito. Em primeiro lugar porque sendo Cabo Verde um país arquipélago de 10 ilhas e ilhéus as suas forças militares deviam ser concebidas de forma a responderam às ameaças e emergências e desafios que se colocam a um país insular. Não foi o que aconteceu porque se quis que as forçar armadas reproduzissem uma cultura de uma luta de libertação em que nunca participou e tivesse como objectivo principal a segurança interna do regime.
Em consequência, mesmo no período democrático, a polarização política serviu para assegurar que reformas de fundo, mais consentâneas com a natureza dos constrangimentos e ameaças do país, não fossem levadas adiante. Muito menos qualquer debate na transformação das forças armadas que tirasse os comandantes dos seus pedestais e mexesse com as suas datas revolucionárias. Os custos estão à vista de todos, mas mesmo quando se propõe debate, da forma enviesada com que é colocada, fica no ar a ideia que, de facto, o que se quer manter é a tensão que permite que a polarização se perpetue. Ou seja, quer-se, parafraseando Giuseppe de Lampedusa, que se dê sinais de mudança para que tudo fique na mesma.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1120 de 17 de Maio de 2023.
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