segunda-feira, setembro 18, 2023

Acelerar o desenvolvimento com inovação e inclusão no digital

 

Na semana passada a transição para o digital mereceu atenção em vários fóruns do mundo como uma das grandes questões da actualidade. Na cimeira dos G20, no dia 9 de Setembro, a Índia, que presidiu o encontro, pôs o foco na necessidade da construção de uma Infraestrutura Digital Pública, DPI em inglês, que nas palavras do primeiro-ministro indiano Modi deve servir enquanto veículo de inovação e de inclusão como acelerador para se atingir os objectivos de desenvolvimento sustentável, ODS. Ou seja, a criação de uma espécie de plataforma (India Stack) sobre a qual diferentes entidades públicas ou privadas poderão desenvolver aplicativos para aceder a documentos de identificação, sistemas de pagamentos e dados governamentais e fornecer a utentes e consumidores um conjunto de serviços que vão de subsídios de segurança social a aplicações para crédito.

Na Estónia, um dos países com maior taxa de digitalização no mundo (99%), o primeiro-ministro cabo-verdiano participou no início da semana numa Cimeira Digital, em Tallinn, sob o tema “Reforço da Democracia” e prometeu envidar esforços para fazer de Cabo Verde uma Nação Digital. Aqui na Cidade da Praia no sábado numa reunião da IDC-África o tema foi também a transição digital em África. No final do encontro, o vice-primeiro-ministro, que é também ministro da Economia Digital deixou promessas de Cabo Verde ter os serviços públicos prestados de forma remota e digital até 2026 em 60 por cento (%) e até 2040 superior a 80 %.

Não se ficou a saber qual é a taxa actual de digitalização, mas até pelas metas definidas vê-se que o país claramente deixou-se atrasar no que devia ter sido uma prioridade nas políticas públicas para servir as pessoas, ter ganhos de eficiência e melhorar a sua competitividade, considerando a sua condição de país arquipélago, de população dispersa e de dificuldade de transporte. E não foi por desconhecimento porque de há muito, desde primeiros anos deste século que já eram visíveis oportunidades que se abriam com a noção de Cyber Island, uma ideia na época (2003) comungada pelas Maurícias e já cavalgada em força pela Estónia. Tempos em que se falava das back offices, call centres e das Business Processing Operations (BPO).

Também não foi por falta de acção porque desde os finais dos anos noventa com a RAF e posteriormente com o NOSi deram-se passos importantes no domínio da digitalização e da governação electrónica. Até promessas de exportação das experiências e de software desenvolvido no país e por técnicos nacionais se materializaram. Da mesma forma houve a possibilidade de criar um ambiente adequado de formação e troca de experiência onde pôde florescer capacidades e o gosto de inovar cujo potencial ficou evidente no trabalho de valor então realizado. Faltou talvez visão mais ampla, estratégias mais consistentes e acções encadeadas que resultassem numa abrangência maior de serviços cobertos pelo e-government, mais produtos e serviços disponibilizados ao público, mais oportunidades para o sector privado da economia digital e um estímulo maior para o desenvolvimento do capital humano no domínio do digital.

Infelizmente, não funcionou o que poderia ter sido um acelerador para o desenvolvimento do sector digital. Para um país remoto, longe dos principais mercados, sem recursos naturais e com população espalhada pelas ilhas e com um grave problema de desemprego entre os jovens, a possibilidade de criar e vender produtos e prestar serviços via Internet devia ser vista como uma via rápida e inclusiva para impedir a pobreza de ser uma fatalidade. De facto, pela própria natureza da Internet, consegue-se contornar os constrangimentos da geografia no emprego, passar ao lado das restrições colocadas pelo mercado exíguo e fragmentado, evitar o isolamento que põe obstáculos para se chegar ao conhecimento e a trocas profícuas de experiências e coloca dificuldades várias no acesso a serviços públicos rápidos e a sistemas de pagamentos atempados. Não ter compreendido isso e agido em consequência provavelmente fez da aposta no digital mais uma das várias outras oportunidades perdidas ou mal aproveitadas na história do país.

Saber fazer o melhor da insuficiência de recursos, de constrangimentos vários e até de desgraças naturais ou outras põe muitas vezes o criativo e o inovador numa posição excepcional de oferecer soluções para problemas que outros países não anteciparam e não conseguem dar uma resposta rápida e efectiva quando são por eles confrontados. É o que aconteceu com o App ucraniano DIIA que foi desenvolvido como resposta aos problemas graves que surgiram com a invasão russa. A guerra deslocou milhões de pessoas, deixou muita gente sem emprego e sem rendimento e criou dificuldades extraordinárias para, entre outras coisas, os cidadãos acederem aos serviços do Estado, para levar aos vulneráveis os subsídios da segurança social e para proceder a transacções essenciais numa economia funcional. O aplicativo do telemóvel dá a possibilidade de acesso a 120 serviços do Estado que vieram suprir as insuficiências criadas pela situação de guerra.

Para isso, houve que reorganizar os serviços, combater a corrupção, promover a transparência e promover a cibersegurança nas ligações com o Estado e garantir a estabilidade do sistema de pagamentos. Para além desses ganhos o App DIIA tornou-se um produto de exportação que até a Estónia com sistema sofisticado de e-government o está a utilizar. É atractivo também para outros países que enfrentam ineficiências várias e têm problemas de responsabilização e prestação de contas na administração local e central do Estado.

Perante este exemplo, pergunta-se que soluções inovadoras para os problemas específicos de Cabo Verde derivados da sua pequenez, dispersão da população e localização poderiam servir para os outros. O mesmo, aliás, podia aplicar-se para eventuais soluções criativas encontradas para problemas de energia renovável, produção e utilização eficiente de água numa terra árida, mas de intensa irradiação solar, ventos fortes e rodeado de mar. A grande questão é por que não se seguiu esse caminho de investir profunda e apaixonadamente no desenvolvimento do capital humano e por que, com visão e estratégia bem temperada pelo pragmatismo, não se procurou tirar partido das dificuldades para construir resiliência no país e para criar e inovar no sentido de dar sustentabilidade ao desenvolvimento preconizado. Deixou-se talvez seduzir por demasiado tempo pela ajuda externa, quase sempre demasiadamente focada numa matéria ou com agenda própria, em relação à qual não se soube responder com uma visão própria.

Uma resposta que deveria resultar em criar capacidade própria em termos científicos e tecnológicos que implicaria um sector privado nacional que se quereria envolvido na implementação dos projectos de milhões que, por doações, ajudas concessionais e créditos são disponibilizados ao país para o seu desenvolvimento. Assim já se poderia falar com mais certeza e propriedade em atingir taxas de penetração cada vez maiores na transição energética e no domínio da economia digital. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1137 de 13 de Setembro de 2023.

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