segunda-feira, outubro 30, 2023

Por uma justiça em tempo útil

 A Justiça vai a debate parlamentar no início da próxima semana como já é habitual, em Outubro de cada ano, no início de mais uma sessão legislativa. O debate precedido de entrega dos relatórios do conselho superior de magistratura e do conselho superior do ministério público e também de audições parlamentares de várias entidades próximas do sector tem como objectivo a apreciação da situação da justiça com vista a uma melhor formulação e implementação das políticas para aí viradas. Em várias declarações à imprensa já se vai sabendo qual será o mote durante o debate.

Para o procurador-geral da república a insatisfação com o actual estado da justiça é geral. Também o bastonário da ordem dos advogados faz vincar que a persistir o número actual de pendências não se terá “paz social”. Já para a ministra da justiça, que reconhece a velha questão da morosidade, existem constrangimentos que, se ultrapassados, abrem boas perspectivas. Num registo similar vai o presidente do conselho superior da magistratura que põe o foco na redução das pendências. Todos parecem convergir na problemática da eficácia do sistema, algo que é crucial para o funcionamento das sociedades democráticas na perspectiva sustentada por muitos de que se a justiça não é feita em tempo útil, ela simplesmente não existe.

Nesse sentido, seria de todo o interesse que o debate sobre a situação da justiça efectivamente se centrasse à volta de como mobilizar a vontade política e institucional para fazer as reformas, alocar meios e motivar pessoas para tornar o sistema mais eficaz. A experiência das democracias mostra que se se tornar generalizada a percepção de que a justiça não é feita, ou tarda, ou é corrompida por interesses dificilmente se poderá confrontar com sucesso as actuais crises do sistema político. Crises essas que se manifestam designadamente na crise de representatividade, na crise dos partidos, na emergência e ascensão de movimentos populistas e em derivas iliberais da governação. Aliás, nos casos em que a democracia foi afrontada de forma particularmente violenta como aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil a integridade do sistema judicial foi fundamental para se pôr cobro às tentativas de subversão e para o regresso à normalidade democrática.

Não estranha, pois, que aqueles que procuram explorar as crises para criar espaço para soluções de governação autoritárias e iliberais tentem, por um lado, explorar o descontentamento dos cidadãos com a falta de eficácia da justiça para descredibilizar os tribunais. Por outro lado, movimentam-se para posicionar juízes particularmente nos tribunais superiores que lhes pode servir em momentos-chave em que podem estar em causa nomeadamente eleições ou resultados eleitorais, procedimentos democráticos que regem relações entre órgãos de soberania e constitucionalidade de leis e normas. Na Polónia, nas eleições de 15 de Outubro, a maioria dos eleitores votou para reverter anos de manipulação do sistema judicial pelo governo na sua deriva iliberal. Em Israel, durante meses seguidos ao longo deste ano de 2023, multidões de dezenas de milhares de pessoas manifestaram contra as tentativas do governo de Netanyahu de diminuir os poderes do sistema judicial no controlo dos actos da governação.

As consequências desse tipo de manipulação viram-se recentemente em Israel nas profundas divisões que causou na sociedade até ao ponto de forçar a tomada de posição de reservistas que deixaram em aberto a possibilidade de não prestar serviço militar nas suas unidades das forças armadas se fossem diminuídos os poderes do Supremo Tribunal de Justiça. Perante a forma como o país foi apanhado de surpresa pelos ataques terroristas do Hamas há quem pergunte se os meses de divisão e conflito aberto com o governo não terão projectado uma imagem de fragilidade do país e também baixado o nível de alerta dos serviços de segurança e inteligência e de prontidão das tropas. Também nos Estados Unidos o sucesso de forças conservadoras em criar maiorias favoráveis às suas causas nos tribunais superiores e em particular no Supremo Tribunal de Justiça tem sido um factor de divisão profunda da sociedade, alimentando guerras culturais e revendo precedentes já estabelecidos em direitos da mulher e das minorias e de regulação do ambiente.

Sempre que actores políticos, por populismo ou tendências autoritárias, procuram explorar algum desencanto com a democracia para ascenderem à posição de líderes incontestados, escolhem como seus alvos privilegiados os média tradicionais e o sistema judicial. São precisamente os dois principais instrumentos de fiscalização do sistema político com poderes: um de denúncia pública de abusos e o outro de punir infracções à legalidade e de afirmar direitos fundamentais dos cidadãos. Com a agora ajuda providencial das redes sociais tais políticos cultivam a desconfiança em relação à informação disponibilizada pela imprensa e quanto aos tribunais aproveitam-se da morosidade para descredibilizar a justiça.

A resposta ao esforço de minimização do papel de intermediação dos media deve vir de renovado comprometimento com a democracia na perspectiva de que o exercício da liberdade de expressão, de informação e de imprensa só está garantido num ambiente seguro em que as regras do jogo democráticos estão a ser cumpridos por todos. Nesta perspectiva a independência dos tribunais e a eficácia na administração da justiça no sentido de justiça em tempo útil são fundamentais para se manter o ambiente que vai permitir à democracia ultrapassar as suas crises sem o perigo de divisões sociais inimigas da liberdade e da solidariedade. De facto, há que existir um consenso básico sobre os fundamentos do sistema para que o dissenso possa manifestar-se na sua plenitude e provoque a dinâmica necessária para criar, inovar e encontrar as vias para um futuro de progresso a todos os níveis.

Os tempos actuais de policrise agravados pela crise no Médio Oriente tornam urgente que se dê um sinal de que existe vontade para remover os obstáculos no caminho de uma melhor eficácia da justiça e reconquistar a confiança das pessoas no sistema. Um sinal também para garantir que as normas e procedimentos da democracia serão sempre respeitadas e a integridade do sistema judicial salvaguardada de interferência
política e de interesses estranhos.

O debate sobre a situação da justiça podia ser a sede ideal para isso. A luta política que vem a seguir e vai desembocar no novo ciclo eleitoral teria um outro valor e conteúdo. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1143 de 25 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 23, 2023

Assumir que se é livre para escolher o caminho

 Continuar a “fazer o mais do mesmo” pode ser uma opção de política. Conviria que fosse devidamente justificada quando os resultados até ao momento não são os mais encorajadores. Durante a visita do Presidente da Comissão da CEDEAO, o governo através do ministro dos negócios estrangeiros reiterou que “Cabo Verde está empenhado e determinado na integração regional efectiva”.

Sabe-se que um dos problemas com a integração é a dívida acumulada por falta de pagamento da taxa comunitária que já ascende a 30 milhões de dólares. Para a resolver, o governo, segundo o ministro, vai procurar parcerias, supõe-se para pagar a dívida, e promete não acumular mais atrasados a partir de 2024. Já quanto a eventuais ganhos para o país, mais uma vez, foi solicitado atenção especial à questão das ligações marítimas para que Cabo Verde possa beneficiar também dos grandes investimentos que são feitos no continente africano”.

Entretanto, os consumidores cabo-verdianos vão pagando a taxa comunitária mesmo que aparentemente não venha sendo repassada para a CEDEAO. O comércio com os países da região, quase cinco décadas após a independência, ainda não ultrapassa os 3% do total das trocas comerciais do país e não se espera alterações na estrutura das exportações e importações considerando o tipo de produtos produzidos na região, a condição insular do país e a actual política monetária com um peg unilateral no euro. Quer isso dizer que os benefícios continuarão a ser mínimos, e que os custos para economia e para as pessoas vão-se manter. Também, se apesar da promessa feita o Estado não quebrar o hábito de não repassar as receitas cobradas, haverá um outro custo, reputacional no caso, de mau pagador.

A grande questão que se coloca é por que manter um empenho numa integração económica que, mesmo entre os países do continente não deu grandes resultados - o comércio inter-regional não chegou a 19% comparados com os cerca de 65% da União Europeia – quanto mais para ser favorável para um país arquipélago a cerca 600 quilómetros da costa ocidental da Africa. As razões de fundo claramente que não podem ser comerciais numa perspectiva de desenvolvimento. Haverá outros interesses designadamente em captar financiamentos para grandes infraestruturas, comunicações e investimentos em capital humano promovidos no âmbito de estratégias como as da União Europeia relativamente aos Acordos de Parceria Económica (ARE) que num contexto continental terão impacto significativo. Mas pelo que se intui dos pedidos do ministro dos negócios estrangeiros ao presidente da CEDEAO, Cabo Verde não estará a beneficiar grandemente disso.

Por isso, as razões para o empenho na integração, serão fundamentalmente ideológicas contrariando o velho dictum que os países na condução da sua política externa não se deixam reger por sentimentos, mas sim por interesses. São razões que não são revistas nem mesmo quando os custos se acumulam - trinta milhões de dólares não é uma pequena quantia - ou se tornam permanentes com ramificações complicadas como são os encargos derivados da livre circulação de pessoas. Não é à toa que na Europa foi a última medida de integração comunitária.

Curiosamente, na CEDEAO foi a primeira e quando aplicada ao único país arquipélago da Comunidade, e com rendimento per capita superior ao da região, os custos podem ser exponencialmente maiores. Compreende-se assim que as Maurícias e as Seicheles também arquipélagos e pertencentes à Comunidade de Desenvolvimento dos Países da África Austral não ratificaram o acordo de livre circulação previsto. Não será mera coincidência que, sem a permeabilidade de fronteiras que isso implicaria, sejam os únicos arquipélagos africanos com entrada visa free por 90 dias na União Europeia.

A partir da Proclamação da Independência que pela voz do PAIGC se decretou que o povo das ilhas livremente tinha escolhido o seu destino africano foi introduzido um elemento ideológico que, mesmo não traduzindo a história, a cultura e o as relações comerciais do arquipélago, passou a ser um factor de condicionamento efectivo da política externa. Retirou-lhe flexibilidade e pragmatismo como em tudo o que tocava o núcleo ideológico do regime de partido único. Introduzia-se nas abordagens feitas uma rigidez perfeitamente insensível aos custos derivados ou associados das políticas e à realidade das oportunidades perdidas em certos momentos. Era como se fosse um tabu.

É interessante notar também que o problema não ficou só pela política externa e que em certas instituições do Estado, onde o simbolismo ideológico sempre pesou mais, foi difícil avançar com reformas, mesmo com o regime democrático e em qualquer governo. De facto, não se interiorizou totalmente que o povo não escolheu livremente o seu destino e que uma reflexão, suportada pela totalidade da história de Cabo Verde e não só pela historiografia oficial de um partido com pretensões de forjador de nações, deveria ser encetada para que o país encontrasse o seu próprio caminho. O resultado é que acabou por prevalecer um certo conformismo e tanto politicamente como socialmente aceitam-se os custos de disfunções institucionais ou de políticas claramente prejudiciais para o país. Tudo isso em nome de uma “coerência” que prima por negar a especificidade da experiência histórica cabo-verdiana de mais de cinco séculos e obriga a que, parafraseando Pedro Pires (2019), tem que se aceitar que Cabo Verde foi colonizado e tem que se aceitar que se teve uma sociedade escravocrata. A história e a cultura de um povo passam a ser o que a política quer e o que a ideologia impõe.

De facto, o que durante séculos foi produzido em termos de língua, manifestações culturais, música e literatura, e que há mais de um século se cristalizou na ideia da cabo-verdianidade e forjou uma consciência de nação muito anterior à independência, não foi patrocinada, dirigida, seleccionada ou filtrada pelo Estado. Os homens e mulheres que contribuíram decisivamente para a herança cultural que todos receberam não foram os escolhidos de alguma entidade visionária. Foram simples pessoas que souberam viver e sentir a sua terra e os seus tempos e pela sua arte e génio puderam exprimi-la de uma forma que contribuiu para a emergência de uma identidade nova.

Essa realidade simples devia ser lembrada todos os anos no Dia Nacional da Cultura e das Comunidades para uma melhor calibragem da intervenção do Estado nesse sector importante da vida do país. Porque, contrariamente ao que acontece nos regimes autoritários e totalitários, nas democracias o Estado está constitucionalmente impedido de impor directrizes filosóficas, estéticas, políticas e ideológicas ou religiosas. O povo já é livre para escolher o destino, e pelo exercício das liberdades e no pluralismo, pode obstar que dirigismos culturais e interpretações ideológicas da história e da cultura do país façam escola e sejam patrocinadas oficialmente pelo Estado. E, de facto, ninguém tem que aceitar nada e ninguém deve poder impor a sua verdade. Principalmente quando é acompanhado de custos sem fim à vista e de ineficiências que deixam todos mais pobres. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1142 de 18 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 16, 2023

Um Estado oceânico precisa de Guarda Costeira eficaz

 

​Na semana passada o delegado de Saúde da Ilha Brava foi peremptório ao dizer que o “transporte de doentes deixou de ser um problema”. Segundo ele, o navio da Guarda Costeira está “sempre pronto” para qualquer emergência e o transporte é feito de maneira segura porque na tripulação há uma pessoa capacitada e experiente para acompanhar qualquer paciente. Para trás ficaram os tempos de grande ansiedade quando havia qualquer emergência e também de ter que arcar com custos enormes para garantir o pernoite de um navio na ilha. Uma simples decisão e expedita implementação quanto à relocalização de uma unidade da Guarda Costeira terá sido suficiente para resolver o problema.

É interessante notar que com isso foi-se ao encontro ao que, de facto, se espera de uma guarda costeira num país arquipélago de ilhas relativamente distantes umas das outras, nem todas com acesso aéreo e muito menos durante as vinte quatro horas por dia. Emergências de vária ordem, seja de busca e salvamento no mar, seja de resposta a desastres naturais numa ilha e ainda de emergências médicas, deviam de há muito deixar claro aos governantes do país a centralidade da aposta numa estrutura com valências várias para responder a esse desafio. Infelizmente, teve-se que esperar mais de 15 anos para equacionar o problema e foi finalmente criada a Guarda Costeira, por despacho, datado de 17 de Novembro de 1993, do então primeiro-ministro e ministro da defesa, Carlos Veiga, com missões-chave de patrulhamento, fiscalização, vigilância e protecção dos mares e ajuda na busca e salvamento.

Trinta anos depois, não se pode dizer que terá sido uma das grandes prioridades do país dotar a Guarda Costeira dos meios necessários para cumprir essas missões e as outras que posteriormente foram introduzidas na Constituição após a revisão de 1999, designadamente em matéria de prevenção e repressão da poluição marítima, do tráfico de estupefacientes e armas e ainda de contrabando. Ao longo dos anos foram adquiridos alguns meios entre os quais um avião e algumas unidades navais, mas a falta de uma grande visão do que devia ser uma guarda costeira num Estado que finalmente já se reconhece como sendo oceânico não foram potenciados.

O facto de a Guarda Costeira não ter sido tomada como central para a afirmação da autoridade do Estado nos mares, a exemplo do que se passa na generalidade dos países do mundo, contribuiu para que essa autoridade ficasse dispersa por várias entidades e, logo globalmente, pouco eficaz. É o que se pode constatar, até há bem pouco tempo, ao nível da fiscalização dos mares, da protecção das praias e costas e nas respostas às emergências. Por outro lado, sem que meios fossem facultados e sem uma clara definição do seu papel, porque chamado de guarda costeira, mas inserido nas Forças Armadas, até com as cores cinzentas da marinha de guerra e não as brancas quase universalmente usadas, acabou por ficar numa posição de quase de “filho de um deus menor”.

O cumprimento das missões que lhe tinham sido atribuídas exigiam que fosse uma força de segurança (law enforcement) com funções para assegurar a autoridade do Estado na maior parte do território nacional que é o oceano circundante e o mar entre as ilhas. Dificilmente, pois, poderia assumir o papel dela esperada enquadrada numas Forças Armadas com enraizada cultura do exército e sempre chefiadas por oficiais do exército. Chegou-se ao ponto de, por resolução do governo nº6/2010 de 5 de Abril, designar como patrono um combatente/oficial do exército e fazer do seu dia de nascimento a data comemorativa da Guarda Costeira. Só recentemente passaram a ter um oficial da marinha como chefe de estado maior, mas provavelmente não é suficiente para quebrar a inércia institucional existente e superar a falta de uma autoridade própria para garantir e impor a legalidade.

Não estranha, pois, que só muito lentamente se aproxima da plenitude das suas funções como, por exemplo, posicionar-se decisivamente para diminuir o isolamento da Ilha Brava em casos de emergência como se reconhece agora, abandonadas que foram as várias tentativas custosas e ineficazes com ferry-boats e navios de marinha mercantes para conseguir o mesmo fim. Uma outra dificuldade em conseguir os meios para cumprir missões veio também do nível de cooperação internacional que podia ter estabelecido ao longo dos anos. Claramente que seria mais fácil a colaboração com guardas costeiras de outros países, que também são forças de segurança (law enforcement) e autoridade marítima, se tivessem como contraparte uma força semelhante e não algo mais próximo de uma marinha de guerra e com constrangimentos intrínsecos. Imagine-se que o âmbito das relações de cooperação seria muito mais amplo, a troca de experiência mais profunda e as doações de meios apropriados para o cumprimento das missões muito mais fácil.

Pode haver vantagem para um país arquipélago, com grandes extensões de mar e costas por fiscalizar e proteger, em posicionar-se como útil para países vizinhos que eventualmente não tenham vocação marítima extensa ou não consideram prioridade maior desenvolver grandes capacidades na guarda costeira. As Seycheles, por exemplo, souberam aproveitar-se da relativa proximidade do Corno de África com os seus problemas de pirataria para conseguir cooperação vantajosa em vários domínios, e designadamente em doação de unidades navais e meios aéreos de países tão díspares com a Índia, a China, os Emiratos Árabes e Sri Lanka. Cabo Verde, por necessidade imperiosa de ter uma guarda costeira, devia ter feito uma aposta estratégica na sua capacitação para tornar mais abrangente a sua cooperação com os outros países no sentido de garantir a segurança dos mares e o livre comércio e ao mesmo tempo mostrar-se útil na região do Atlântico Médio e da África Ocidental nos combates aos diferentes tráficos.

Algo que passaria naturalmente por clarificar a sua natureza, deixando de ser estritamente militar para ser de uma força de segurança, e pela consolidação dos poderes exercidos pelas várias entidades no quadro da autoridade marítima. Pelo que se viu nestes trinta anos da Guarda Costeira não será uma tarefa fácil de realizar tendo em conta os muitos obstáculos corporativos, culturais e ideológicos que ainda persistem. Aliás, como em vários outros sectores. Agora que finalmente se reconhece que Cabo Verde é um Estado oceânico e que a economia azul é uma das bases da construção do futuro, não há tempo para mais procrastinação ou vacilações no desenvolvimento da Guarda Costeira. A segurança dos mares é fundamental. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1141 de 11 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 09, 2023

Arranca a corrida pré-eleitoral

 

Começou já o ano político de 2023/24 que irá desembocar nas eleições autárquicas de Outubro ou Novembro do próximo ano. Claramente que será um ano pré-eleitoral com consequências não só nas eleições locais, mas com eventuais efeitos de arrastamento nas legislativas e presidenciais que vão marcar todo o novo ciclo eleitoral. Não se pode realmente dizer que com o novo ano político a crispação política vai aumentar, considerando que nunca diminuiu no quadro político já institucionalizado de campanha permanente. Períodos de tréguas pós-eleitorais, de abertura para compromissos em questões fundamentais, vêm-se tornando cada vez mais raros. Espera-se por isso o recrudescer dos ataques, a intransigência habitual e o adiar na procura de soluções para o país.

Hoje, dia 4 de Outubro, arranca efectivamente o ano parlamentar com as primeiras reuniões plenárias da nova sessão legislativa. Ainda não é desta que se agendaram as eleições para órgãos exteriores como a autoridade reguladora para a comunicação social, a comissão nacional de protecção de dados e a comissão nacional de eleições que há quase dois anos terminaram os respectivos mandatos. Muito menos prevê-se que haja condições para se avançar com as eleições para o Conselho Económico, Social e Ambiental (CESA) que desde 2014 se aprovou legislação própria. Constituído pelo conselho para o desenvolvimento regional, pelo conselho das comunidades e pelo já existente conselho de concertação social, o CESA poderia emprestar um outro valor e perspectivas mais abrangentes da problemática do país nesta fase crucial em que crises se multiplicam e o futuro não é claro. Aparentemente outras prioridades politiqueiras e ideológicas se sobrepõem.

Entretanto, enquanto tudo neste começo do ano político parece estar a postos para continuar na via do “mais do mesmo” o mundo lá fora move-se de forma imprevisível por caminhos marcados por incertezas várias. A guerra na Ucrânia não parece ter fim à vista e eventuais negociações de paz poderão ser prejudicadas por sinais de fractura no apoio do Ocidente contra a ameaça russa. O impacto que tudo isso vai tendo nos preços dos combustíveis e dos produtos alimentares e globalmente na inflação continuará a agravar a situação particularmente para os países mais pobres. Acrescenta-se a isso a polarização crescente no mundo que cria tensões geopolíticas com efeitos negativos no comércio internacional e na movimentação de capitais e aumenta os custos de transacção num ambiente de maior risco e de taxas de juro mais elevadas.

Há poucos dias o Banco Mundial fez a revisão em baixa das projecções de crescimento na China e nos países do sudeste asiático para níveis que não tinham sido vistos há várias décadas. Considerando que a região constitui um dos principais motores de crescimento da economia mundial, imagine-se o impacto que terá actual conjuntura em que a Europa também lida com falta de dinâmica na sua economia. Não melhora a situação as dificuldades de avançar com a transição energética já visíveis na relação com os produtores de combustíveis fósseis que querem aproveitar no máximo o período de transição. O mesmo acontece com os países do chamado Sul Global que não se sentem obrigados ao mesmo nível que os países do Ocidente em fazer os sacrifícios com o argumento que não foram os maiores poluidores e que não tiveram a possibilidade como os outros de crescer com energia barata. Por aí se vê o caminho cheio de solavancos e muito incerto que se vai ter de percorrer nos próximos tempos.

Cabo Verde, segundo a proposta de Orçamento do Estado apresentado pelo governo, projecta crescer 4,7 % em 2024. Depois dos três anos a recuperar da grande recessão provocada pela Covid e que permitiu crescimento de 6% em 2021, 17% em 2022 e, espera-se, de 5,7% em 2023, fala-se agora de abrandamento, em linha com o potencial de crescimento que o ministro das Finanças coloca à volta dos 5%. O problema, segundo o governante num post na sua página do Facebook , é que esse “nível de crescimento económico não é suficiente para ultrapassar os desafios que o país enfrenta ao nível da eliminação da pobreza, da redução do desemprego jovem e do crescimento que é preciso para colocar Cabo Verde no patamar do desenvolvimento” desejado.

A solução que ele avança é de se “manter o foco na estabilidade macroeconómica e social e acelerar as reformas para aumentar o potencial de crescimento da economia”, reformas essas que terão de abranger sectores como energia, conectividades, recursos humanos e instituições. Não se vê é como isso será feito tendo em conta o ambiente político pouco dado a compromissos e que vai ficar ainda mais polarizado num ano que será uma antecâmara para um novo ciclo eleitoral. Também o ambiente externo marcado pela policrise poderá não ser o mais propício para impulsionar investimentos e aumentar de forma expressiva o fluxo turístico. E sem taxas de crescimento económico mais elevadas não se vislumbra como se vai eliminar a pobreza extrema de forma sustentável no horizonte 2026 como preconiza o governo.

A verdade é que pelos discursos feitos e pela forma como cada vez mais se faz política no país percebe-se que o foco da atenção geral não está fundamentalmente no que deve ser feito em termos de reformas, de mudança de atitude e de acção governativa para que o país possa aumentar o seu potencial de crescimento e, como o ministro das Finanças preconiza, “passar de 5 e 7 % para crescimento a dois dígitos”. Conquista e manutenção do poder é o que parece interessar mais. Mesmo quando se é desafiado por instituições internacionais vitais para o financiamento do país para discutir o modelo de desenvolvimento que mostra sinais de esgotamento, prefere-se desvalorizar a questão e mudar de assunto, de preferência para qualquer matéria que sirva de arma de arremesso político, atice paixões, incite inveja e provoque ressentimentos.

As crises sucessivas que o país e o mundo vêm enfrentando nos últimos anos deviam ter servido para construir mais solidariedade, tornar as instituições mais merecedoras de confiança e promover mais autonomia e sentido de responsabilidade das pessoas. Infelizmente não foram aproveitadas nesse sentido e, pelo contrário, deixou-se aumentar a dependência do Estado e cultivar a descrença nas instituições e na política. Os períodos pré-eleitorais tornam tudo muito pior porque o que passa a prevalecer é o que a curto prazo serve para a conquista do poder.

Há que chegar um momento em que se terá que quebrar o círculo vicioso que não deixa o país ir além do “mais do mesmo” e, de seguida, aprofundar as reformas de modo a subir para um outro patamar. De outra forma, milhões serão gastos em transições energéticas e digitais e a criar economias azuis e verdes correndo o risco de mais uma vez os resultados ficarem muito aquém dos pretendidos. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1140 de 4 de Outubro de 2023.

segunda-feira, outubro 02, 2023

Por uma cultura do cumprimento da Constituição

 

A Constituição democrática de Cabo Verde completou 31 anos no passado dia 25 de Setembro. É interessante notar a sobriedade com que a data foi marcada. Mereceu uma conferência de imprensa do presidente da república e um encontro com dois conferencistas, organizado pelo grupo parlamentar do MpD. Da comunicação social pública não se notou na sua programação o entusiamo habitual dedicado normalmente aos feriados e outras referências históricas do regime do partido único, algo visível no dia anterior nos 50 anos da Guiné-Bissau. Dos meios académicos e universitários não houve registos também de reflexões sobre a magna carta do país, em contraposição com a preocupação da universidade pública em organizar o evento “Diálogo de gerações” por altura do 99º aniversário de Amílcar Cabral, o fundador e ideólogo do PAIGC.

É de se perguntar se esses sinais de indiferença resultam de uma suposta “paz constitucional” que se teria chegado na sequência da revisão de 2010, como postulam certos estudiosos e personalidades. Ou, se pelo contrário, têm a sua origem na hostilidade latente que mantém sempre activo o velho reflexo conformista e obriga a omissões graves na celebração dos princípios e valores da democracia liberal e constitucional. Quando aparentemente se sai da indiferença é muitas vezes para mostrar as insuficiências constitucionais em particular na materialização dos direitos de segunda e terceira geração. Quer-se repetir de forma mais ou menos disfarçada a velha disputa de qual vale mais: a liberdade ou o pão.

A história, porém, demonstra que quando se cai na ilusão de pôr primeiro o pão perde-se a liberdade e sacrifica-se o pão. Prosperidade continuada e sustentável depende da capacidade de criação de riqueza que por sua vez é favorecida pela iniciativa individual, o espírito criativo e inovador e a disponibilidade em correr riscos. Liberdade é o ingrediente básico e indispensável porque pressupõe a igualdade de todos perante a lei, a segurança dos indivíduos, da propriedade e dos contratos, o Estado de direito, governos democráticos e a existência de tribunais independentes.

Não é apontando as insuficiências e o quanto se está aquém do ideal constitucional e da democracia como fazem os populismos de direita e de esquerda é que se renova a vontade de garantir o respeito pela dignidade humana, da realização da igualdade e de assegurar o direito à busca pela felicidade. A democracia é, de uma certa perspectiva, um jogo em que os indivíduos na diversidade dos seus interesses e no pluralismo das suas ideias vão traçando um caminho nem sempre linear para a realização do bem comum. Para isso, porém, é fundamental o cumprimento das normas constitucionais. E a cultura democrática adquire-se cumprindo as normas assim como para ser um bom jogador de xadrez e traçar estratégias ganhadoras tem que se conhecer bem as regras do jogo e não procurando introduzir outras regras a meio da partida.

Infelizmente, muito do que vem sendo apresentado como iniciativas para ultrapassar a crispação política, manifestações de partidocracia e actos que configuram tirania da maioria não vai no sentido de pressionar para o cumprimento da Constituição. Nem tão pouco de exigir dos titulares de órgãos públicos o exercício efectivo das suas competências, respeitando a separação dos poderes, e de responsabilização plena de todos os actores pelos actos de governação. Prefere-se muitas vezes ficar pelo “atirar pedras contra o sistema” num exercício que gera frustrações e ressentimentos, abre espaço para o cinismo em relação à política e aos políticos e mina as possibilidades de desenvolvimento de uma cultura cívica essencial para restaurar a confiança e criar capital social. No fim do dia só se vêem os vestígios dispersos do que foram movimentos, associações, fóruns e grupos de candidatura a eleições autárquicas.

Também não fiscalizando os órgãos de soberania e o conjunto da classe política no sentido de uma maior conformidade constitucional e entretendo-se só com denúncias de corrupção, outros fait divers e pelo espectáculo de manifestações desmedidas de poder de certos políticos, muitas vezes deixa-se passar ao lado disfunções graves da democracia. Se ao nível central tais situações podem acabar por ser notadas já no poder local nos municípios é mais difícil. O que se passa em particular nos municípios da Praia e de S. Vicente é paradigmático a esse respeito.

De facto, o grau de escrutínio que os órgãos municipais são submetidos pelos próprios munícipes é muito menor do que acontece ao nível nacional. A atenção dos media não se foca nos problemas locais e os órgãos municipais que deviam primar pela colegialidade no seu funcionamento são vincadamente dependentes do órgão executivo singular que é o presidente da câmara. A situação complica-se com a fraca pressão social e política para forçar os eleitos nas assembleias municipais e os vereadores a chegar a entendimentos sobre o que fazer e que recursos alocar na resolução dos problemas locais. Também não ajuda a tendência para o caciquismo do órgão executivo singular que curiosamente nem está previsto na Constituição.

Porque os dois órgãos municipais são directamente eleitos, em caso de falta de diálogo e de um acordo negociado e na impossibilidade de um dissolver o outro só pode resultar num bloqueio institucional. A existir uma cultura de responsabilidade e de credibilização das instituições, essa constatação devia servir de incentivo para se chegar a compromissos com mais facilidade. Infelizmente, prevalece uma atitude de pôr à frente as conveniências do momento e até de sacrificar princípios para conseguir ganhos tácticos na luta politico-partidária. Na falta dessa cultura de compromissos, situações como a de S.Vicente não acontecem mais vezes nos 22 municípios só porque na generalidade funcionam com maioria absoluta e o diálogo político que domina não é o centrado nos problemas locais, mas no que repete a agenda nacional dos partidos.

Mais complicado e prenhe de consequências é o que aconteceu no município da Praia em que se fugiu às normas legalmente estabelecidas e aplicadas em todos os municípios, ao longo dos mais de trinta anos do poder local, na discussão e aprovação do orçamento municipal. A um ano das próximas eleições autárquicas ainda não houve uma resposta institucional efectiva e atempada para repor a legalidade. A impunidade reinou e a expectativa é que seja legitimada nas urnas daqui a um ano.

É um grave precedente que se abre e que da parte dos órgãos de soberania, da classe política e da sociedade não mereceu atenção adequada. Já se conhece da história recente de alguns países de como políticos e partidos singram na busca do poder atirando-se ostensivamente contras as normas e as instituições democráticas. Ganham áurea de autênticos e intocáveis ao ficarem repetidamente impunes perante os sucessivos atropelos dirigidos contra as instituições, perante a complacência geral.

Evitar que tanto essa estirpe daninha de políticos se espalhe e contamine toda a política nacional, deve ser uma preocupação de todos. O antídoto para esse tipo de desvio é o cultivo de uma sólida cultura constitucional e a rejeição de ideologias revolucionárias. A instituição do Dia da Constituição, uma ideia a que o PR se associou durante a conferência de imprensa do passado dia 25 de Setembro, podia ser um bom começo para isso. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1139 de 27 de Setembro de 2023.