segunda-feira, outubro 16, 2023

Um Estado oceânico precisa de Guarda Costeira eficaz

 

​Na semana passada o delegado de Saúde da Ilha Brava foi peremptório ao dizer que o “transporte de doentes deixou de ser um problema”. Segundo ele, o navio da Guarda Costeira está “sempre pronto” para qualquer emergência e o transporte é feito de maneira segura porque na tripulação há uma pessoa capacitada e experiente para acompanhar qualquer paciente. Para trás ficaram os tempos de grande ansiedade quando havia qualquer emergência e também de ter que arcar com custos enormes para garantir o pernoite de um navio na ilha. Uma simples decisão e expedita implementação quanto à relocalização de uma unidade da Guarda Costeira terá sido suficiente para resolver o problema.

É interessante notar que com isso foi-se ao encontro ao que, de facto, se espera de uma guarda costeira num país arquipélago de ilhas relativamente distantes umas das outras, nem todas com acesso aéreo e muito menos durante as vinte quatro horas por dia. Emergências de vária ordem, seja de busca e salvamento no mar, seja de resposta a desastres naturais numa ilha e ainda de emergências médicas, deviam de há muito deixar claro aos governantes do país a centralidade da aposta numa estrutura com valências várias para responder a esse desafio. Infelizmente, teve-se que esperar mais de 15 anos para equacionar o problema e foi finalmente criada a Guarda Costeira, por despacho, datado de 17 de Novembro de 1993, do então primeiro-ministro e ministro da defesa, Carlos Veiga, com missões-chave de patrulhamento, fiscalização, vigilância e protecção dos mares e ajuda na busca e salvamento.

Trinta anos depois, não se pode dizer que terá sido uma das grandes prioridades do país dotar a Guarda Costeira dos meios necessários para cumprir essas missões e as outras que posteriormente foram introduzidas na Constituição após a revisão de 1999, designadamente em matéria de prevenção e repressão da poluição marítima, do tráfico de estupefacientes e armas e ainda de contrabando. Ao longo dos anos foram adquiridos alguns meios entre os quais um avião e algumas unidades navais, mas a falta de uma grande visão do que devia ser uma guarda costeira num Estado que finalmente já se reconhece como sendo oceânico não foram potenciados.

O facto de a Guarda Costeira não ter sido tomada como central para a afirmação da autoridade do Estado nos mares, a exemplo do que se passa na generalidade dos países do mundo, contribuiu para que essa autoridade ficasse dispersa por várias entidades e, logo globalmente, pouco eficaz. É o que se pode constatar, até há bem pouco tempo, ao nível da fiscalização dos mares, da protecção das praias e costas e nas respostas às emergências. Por outro lado, sem que meios fossem facultados e sem uma clara definição do seu papel, porque chamado de guarda costeira, mas inserido nas Forças Armadas, até com as cores cinzentas da marinha de guerra e não as brancas quase universalmente usadas, acabou por ficar numa posição de quase de “filho de um deus menor”.

O cumprimento das missões que lhe tinham sido atribuídas exigiam que fosse uma força de segurança (law enforcement) com funções para assegurar a autoridade do Estado na maior parte do território nacional que é o oceano circundante e o mar entre as ilhas. Dificilmente, pois, poderia assumir o papel dela esperada enquadrada numas Forças Armadas com enraizada cultura do exército e sempre chefiadas por oficiais do exército. Chegou-se ao ponto de, por resolução do governo nº6/2010 de 5 de Abril, designar como patrono um combatente/oficial do exército e fazer do seu dia de nascimento a data comemorativa da Guarda Costeira. Só recentemente passaram a ter um oficial da marinha como chefe de estado maior, mas provavelmente não é suficiente para quebrar a inércia institucional existente e superar a falta de uma autoridade própria para garantir e impor a legalidade.

Não estranha, pois, que só muito lentamente se aproxima da plenitude das suas funções como, por exemplo, posicionar-se decisivamente para diminuir o isolamento da Ilha Brava em casos de emergência como se reconhece agora, abandonadas que foram as várias tentativas custosas e ineficazes com ferry-boats e navios de marinha mercantes para conseguir o mesmo fim. Uma outra dificuldade em conseguir os meios para cumprir missões veio também do nível de cooperação internacional que podia ter estabelecido ao longo dos anos. Claramente que seria mais fácil a colaboração com guardas costeiras de outros países, que também são forças de segurança (law enforcement) e autoridade marítima, se tivessem como contraparte uma força semelhante e não algo mais próximo de uma marinha de guerra e com constrangimentos intrínsecos. Imagine-se que o âmbito das relações de cooperação seria muito mais amplo, a troca de experiência mais profunda e as doações de meios apropriados para o cumprimento das missões muito mais fácil.

Pode haver vantagem para um país arquipélago, com grandes extensões de mar e costas por fiscalizar e proteger, em posicionar-se como útil para países vizinhos que eventualmente não tenham vocação marítima extensa ou não consideram prioridade maior desenvolver grandes capacidades na guarda costeira. As Seycheles, por exemplo, souberam aproveitar-se da relativa proximidade do Corno de África com os seus problemas de pirataria para conseguir cooperação vantajosa em vários domínios, e designadamente em doação de unidades navais e meios aéreos de países tão díspares com a Índia, a China, os Emiratos Árabes e Sri Lanka. Cabo Verde, por necessidade imperiosa de ter uma guarda costeira, devia ter feito uma aposta estratégica na sua capacitação para tornar mais abrangente a sua cooperação com os outros países no sentido de garantir a segurança dos mares e o livre comércio e ao mesmo tempo mostrar-se útil na região do Atlântico Médio e da África Ocidental nos combates aos diferentes tráficos.

Algo que passaria naturalmente por clarificar a sua natureza, deixando de ser estritamente militar para ser de uma força de segurança, e pela consolidação dos poderes exercidos pelas várias entidades no quadro da autoridade marítima. Pelo que se viu nestes trinta anos da Guarda Costeira não será uma tarefa fácil de realizar tendo em conta os muitos obstáculos corporativos, culturais e ideológicos que ainda persistem. Aliás, como em vários outros sectores. Agora que finalmente se reconhece que Cabo Verde é um Estado oceânico e que a economia azul é uma das bases da construção do futuro, não há tempo para mais procrastinação ou vacilações no desenvolvimento da Guarda Costeira. A segurança dos mares é fundamental. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1141 de 11 de Outubro de 2023.

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